A noite caiu sobre a Vila Kennedy como um cobertor quente e pesado. As luzes improvisadas tremulavam nos postes tortos, a fumaça de churrasco subia de alguma laje distante, e os rádios dos soldados ecoavam ordens rápidas. Cada viela escondia um sussurro de guerra.
Catarina caminhava de um lado para o outro na laje da avó, incapaz de ficar parada.
O sentimento era simples: ansiedade e medo, tudo misturado.
Ela tremia — não pelos tiros que poderiam vir a qualquer momento, mas pelo que tinha acontecido horas antes.
A dúvida de V.K.
O olhar dele.
A forma como a respiração dele encostou na dela.
A verdade era incômoda:
Ela precisava dele.
E ele precisava dela.
Mesmo que nenhum dos dois admitisse.
Um barulho na viela chamou sua atenção.
Um assobio baixo, curto, conhecido.
Catarina se afastou da janela tentando proteger a avó.
Mas era tarde.
— Abre a porta. — disse a voz que ela reconheceria em qualquer lugar.
O peito de Catarina apertou.
Dona Nilva fez o sinal da cruz.
— Menina… se prepara.
— Pra quê?
— Pra desastre.
Catarina abriu a porta.
V.K estava lá.
Encostado no batente, camisa preta colada ao corpo, tatuagens à mostra, respiração pesada.
Os olhos dele não estavam como antes — estavam escuros, carregados, inquietos.
Como se ele tivesse passado horas lutando com a própria cabeça e perdido todas as rodadas.
— A gente precisa conversar. — ele disse.
Catarina engoliu seco.
— Agora?
— Agora.
— Minha avó está aqui.
— Eu sei.
— Eu não quero falar na frente dela.
— Não precisa.
Ele virou ligeiramente o corpo, apontando a cabeça para o lado.
— Vamos lá pra fora.
Catarina sentiu as pernas ficarem moles.
— Eu… tá.
Dona Nilva bateu no braço da neta antes dela sair.
— Cuidado, menina. Homem que chega com esse olhar… vem cheio de pecado junto.
— Vó!
— Tô avisando. Ele tá com mais problema no peito do que tu imagina.
Catarina corou.
Mas saiu.
V.K subiu a escada lateral até a laje vazia de um vizinho.
Era um lugar silencioso, onde o vento batia e a visão da favela parecia mais ampla.
Ele parou no meio da laje, passou a mão no rosto e respirou fundo.
— Fecha a porta atrás de tu.
— Eu fechei.
— Verifica de novo.
Ela voltou, verificou e retornou.
— Tá fechada.
Ele assentiu.
— Bom.
— O que você quer falar?
— Quero primeiro ver se tu tá calma.
— Eu não tô calma.
— Eu sei que não tá.
Ele caminhou devagar até ela.
Cada passo aumentava a tensão no ar.
— O que eu fiz agora? — ela perguntou.
— Nada.
— Então por que você tá assim?
— Porque tu tá me tirando o sono.
Ela piscou rápido.
— Eu… o quê?
— Eu disse.
— Você não dormiu?
— Não dormi.
Era raro ele ser tão direto.
— Por quê?
— Porque eu não sei o que tu tá fazendo comigo.
Catarina sentiu o ar escapar.
— Eu… não tô fazendo nada.
— Tá.
— Não tô!
— Tá sim.
Ele parou a dois passos dela.
— Tu mexeu com a minha cabeça.
— Eu não quis.
— Mas mexeu.
— Eu…
— E isso me irrita.
Ele passou a mão no peito, como se aquilo doesse.
— Me irrita porque eu não posso confiar.
— Eu já disse que não vou—
— TU FALA COISA DEMAIS.
— Não falo!
— Fala sim.
— Só falei a verdade.
— E é isso que me irrita. Verdade demais.
Catarina suspirou.
— Então pra quê você me chamou aqui?
— Pra resolver isso.
Ela franziu o cenho.
— Resolver como?
— Assim.
Ele deu um passo.
Agora estavam perto demais.
Ela recuou um centímetro.
Só um.
Mas suficiente para ele notar.
V.K sorriu de canto.
— Com medo?
— Não.
— Tá sim.
— Não tô.
— Tá tremendo.
Ela olhou para as próprias mãos.
Sim, tremiam.
— Isso não é medo. — ela sussurrou.
— É o quê então?
— Eu… não sei.
— Eu sei.
Ele aproximou mais.
Ela sentiu o cheiro dele: suor, pólvora, menta.
— Tu tá com medo do que pode sentir.
— Não tô.
— Tá sim.
— Não—
— Cala.
Ele tocou o rosto dela com o dedo indicador.
Um toque tão leve que pareceu absurdo.
A pele dela queimou.
— Tua pele tá quente.
— É o clima.
— Não é, não.
— Pode ser.
— Não é.
— Você fica dizendo que sabe tudo.
— E eu sei.
Ele deslizou o dedo da têmpora até o queixo dela.
Ela fechou os olhos sem perceber.
E ele notou.
— Viu?
— Viu o quê?
— Tu fecha os olhos quando eu toco.
Ela abriu os olhos rápido.
— Eu… não fecho.
— Fecha.
— Não.
— Tu fecha, e tu sabe.
O coração dela batia rápido, forte, desesperado.
— Eu não devia estar aqui. — ela murmurou.
— Devia sim.
— Não devia.
— Devia.
Ele ergueu a mão.
Ela recuou um centímetro.
Mas ele segurou o pulso dela — firme, mas sem força.
— Eu não vou te machucar. — ele disse.
— Eu sei.
— Então por que tu treme?
— Porque é errado.
— Errado pra quem?
— Pra mim.
— Então sai.
Ela respirou fundo.
Mas não saiu.
Ele sorriu com a boca, não com os olhos.
— Tu diz que é errado…
— É.
— Mas tu não vai embora.
Ela engoliu.
— Eu devia ir.
— Devia.
— Mas não vou.
— Eu sei.
Ele aproximou mais, até seus p****s quase se tocarem.
— Sabe por quê tu não vai? — ele perguntou.
— Por quê?
— Porque tu sente.
Ela ficou sem ar.
— Eu não sinto.
— Sente.
— Não sinto!
— Sente, c*****o.
— EU NÃO SIN—
Ele segurou o rosto dela com as duas mãos.
— Olha pra mim.
Ela olhou.
E então ele tocou a testa dele na dela.
Um gesto íntimo.
Perigoso.
Quase proibido.
— Eu sinto. — ele sussurrou.
A respiração dela falhou.
— Você… sente?
— Sinto raiva.
— De mim?
— De tu me fazer sentir outra coisa.
Ela não conseguia respirar direito.
Ele continuou:
— Eu devia te mandar embora do morro.
— Então manda.
— Não vou.
— Por quê?
— Porque eu quero tu aqui.
O coração dela derreteu.
Ela tentou falar, mas a voz sumiu.
— Eu quero tu aqui. — ele repetiu, mais baixo. — E eu quero te tocar.
Ela tremeu.
— Mas não posso.
— Por quê? — ela sussurrou.
— Porque se eu tocar… não paro mais.
Silêncio.
Pesado.
Quente.
Ela respirou bem devagar.
— Então… não toca.
— Eu não falei que não ia tocar.
— Você acabou de—
— Eu falei que não posso.
— E… vai fazer o quê?
— A pior escolha.
Ele aproximou mais.
Os lábios quase se encostando.
O calor dele invadindo o corpo dela.
— Eu vou te tocar uma vez. — ele disse.
— Uma vez?
— Só pra saber.
— E depois?
— Depois eu me viro.
Ela fechou os olhos.
Ele tocou.
Primeiro a bochecha.
Depois o queixo.
Depois a linha do maxilar.
O dedo dele desceu até o pescoço dela, quase encostando no peito — mas parou antes.
— Tu é macia demais. — ele murmurou.
— Eu…
— Tu treme.
— É… você.
— Eu sei.
Ele aproximou o rosto.
O nariz dele roçou o dela.
— Tu quer? — ele perguntou.
— Eu…
— Fala.
— Eu não sei.
— Sabe sim.
Ela respirou fundo.
— Eu quero. — ela sussurrou.
E então…
Ele encostou a boca na dela.
Não foi beijo completo.
Foi só o toque.
O primeiro toque.
Os lábios roçando, leves, perigosos.
Ele prendeu a respiração.
Ela também.
Mas antes que o beijo acontecesse de verdade, um tiro ecoou no morro.
BAM!
Eles se afastaram rápido.
V.K sacou a arma na mesma hora.
— p***a!
— O que foi?! — Catarina perguntou, ofegante.
— Alguém tá testando território.
— Quem?
— Rival. Ou teu pai.
O rádio chiou:
—“CHEF! Temos movimento estranho na parte de baixo!”
V.K xingou baixo.
— Catarina, entra pra tua laje AGORA.
— E você?
— Eu vou ver o que tá acontecendo.
— Cuidado!
— Sempre tenho.
Ele deu dois passos para sair, mas parou.
Virou para ela.
E disse a frase que destruiu o ar entre eles:
— Esse toque não aconteceu.
Ela ficou estática.
— V.K…
— E não vai acontecer de novo.
— Por quê?
— Porque isso é errado.
— Errado pra quem?
Ele encarou ela.
— Pra mim.
E saiu correndo, arma em punho.
Catarina tocou a boca, ainda trêmula.
O toque tinha acontecido.
Eles dois sabiam.
E aquilo não era pecado.
Era começo.
Um início proibido, perigoso, inevitável.
E agora, não havia mais volta.