Catarina acordou antes da avó naquele dia, sem saber se era o calor, a ansiedade ou a sensação estranha de estar começando uma nova vida num lugar onde tudo parecia respirar mais forte do que ela.
A laje da Dona Nilva era pequena, mas tinha uma vista tão bonita que parecia impossível ser a mesma Vila Kennedy que aparecia no noticiário. Ali em cima, dava para ver crianças correndo entre becos, mães chamando filhos pelo nome, homens carregando sacolas, e soldados observando a rua com cara de quem nunca dormia direito.
O morro não era só perigo.
Era movimento.
Era som.
Era gente.
E Catarina observou isso por longos minutos até ouvir o barulho da porta abrindo atrás dela.
— Tu acordou cedo, menina. — disse Dona Nilva, ajeitando o óculos no rosto.
— Tô me acostumando com a claridade daqui.
— Aqui o sol acorda antes de todo mundo.
Catarina riu e voltou a olhar para baixo.
— Vó…
— Hm?
— Quem é aquele ali?
A avó se aproximou, seguindo a direção do olhar.
V.K estava parado na escadaria que dava acesso às lajes mais altas, conversando com dois soldados. Ele usava bermuda larga, chinelo e uma camisa simples — mas a postura dele não era simples. Era de quem carrega uma coroa invisível.
Dona Nilva suspirou.
— Ah… esse aí é problema.
— Pra quem?
— Pra quem abre a boca demais.
— Mas quem ele é?
— O dono disso aqui tudo.
— V.K.
— Esse mesmo.
Catarina engoliu seco, lembrando-se do olhar que ele lançou na noite anterior.
— Ele vive aqui?
— Vive onde quer.
— E por que tá sempre olhando pra tudo?
— Porque nada acontece aqui sem ele saber.
Dona Nilva virou de frente para a neta.
— E se tu puder evitar irritar ele… melhor.
— Eu não quero irritar ninguém.
— Às vezes tu irrita sem querer.
Catarina entendeu o aviso — mas entendeu apenas metade.
A outra metade ela aprenderia naquele dia.
Mais tarde, enquanto ajudava a avó a lavar roupas na bica comunitária, Catarina percebia olhares curiosos das mulheres. Não eram olhares ruins — apenas curiosos.
Uma das moradoras, Suzana, se aproximou.
— Tu é a neta da Nilva, né?
— Sou sim. Catarina.
— Eu sou Suzana. Mora ali no beco oito.
— Prazer.
— O povo tá comentando de tu.
— Comentando?
— É.
— O que tão falando?
— Que tu é bonita.
Catarina riu.
— Bonita?
— É, ué.
— Mas tão falando o quê exatamente?
— Que tu chamou atenção ontem.
— De quem?
Suzana levantou a sobrancelha.
— Do homem que ninguém quer chamar atenção.
Catarina sentiu a pele arrepiar.
— Do V.K?
— É.
A conversa terminou ali porque três soldados passaram por perto.
Suzana apenas fez o sinal de fechar a boca e se afastou.
Catarina segurou a bacia de roupas, tentando ignorar o incômodo no peito.
Ela não tinha feito nada. Só tinha chegado.
Ainda assim…a vila inteira parecia ter reparado.
E alguém muito mais perigoso também.
À tarde, Catarina decidiu subir na laje para estender as roupas da avó. A brisa ajudava a secar mais rápido, e ela gostava daquele vento.
Enquanto pendurava um lençol, ouviu passos.
Pesados. Firmes. Lentos.
Virou-se.
V.K estava parado no topo da escada.
Ele não dizia nada.
Só olhava.
Era como encarar uma tempestade chegando — silenciosa, mas impossível de ignorar.
Catarina engoliu seco.
— A… a senhora Nilva não tá aqui agora. — ela disse, sem saber exatamente por quê.
— Eu não tô procurando ela.
A voz dele era grave, calma demais para alguém com aquela postura de comando.
Ele deu dois passos à frente.
— Tu é a neta nova da velha?
— Sou.
— Nome?
— Catarina.
— Idade?
— Vinte e dois.
— De onde tu veio?
— De Realengo.
— Sozinha?
— Sim.
Ele analisava cada resposta como quem avalia ameaça.
— E por que veio?
— Porque quis.
— Ninguém vem pra cá porque quer.
— Eu vim.
— Então tu não sabe onde tá pisando.
— Eu sei sim.
V.K levantou a sobrancelha.
— E tu acha que sabe mais do que eu?
— Não.
— Então por que falou que sabe onde tá pisando?
— Porque não sou i****a.
Ele estreitou os olhos.
— Tu é corajosa ou só atrevida?
Catarina cruzou os braços.
— E você faz essa pergunta pra todo mundo?
— Eu pergunto o que quero.
— E eu respondo o que quiser.
Tigrão, que vinha subindo logo atrás, quase engasgou com o atrevimento dela.
— Eita… — ele murmurou baixinho.
V.K deu mais um passo, ficando próximo o suficiente para Catarina sentir o cheiro dele — uma mistura de suor leve, cigarro apagado e algo quente, masculino, poderoso.
— Tu fala muito pra alguém que acabou de chegar.
— Eu falo o necessário.
— E o necessário é me enfrentar?
— Não tô te enfrentando.
— Tá sim.
— Não tô.
— Tá.
— Não estou.
— Tá, p***a.
Ela riu — e aquilo o irritou.
— Por que tu tá rindo?
— Porque você tá dizendo que eu tô enfrentando você… e eu só tô falando.
Ele inclinou levemente o rosto, encarando-a como se tentasse decifrá-la.
Ninguém falava com ele assim.
Ninguém.
Catarina, sem perceber, já tinha quebrado uma regra invisível.
E ao invés de puni-la…ele parecia intrigado.
— Tu não tem medo de mim? — ele perguntou.
— É pra ter?
— Todo mundo tem.
— Eu não.
— Por quê?
— Porque medo não serve pra nada.
Ele riu — não como Zulu ouvira mais cedo no galpão, mas de um jeito curto, surpreso, quase… satisfeito.
— Tu não sabe do que eu sou capaz.
— Não sei mesmo.
— Então devia ter medo.
— Talvez quando eu souber, eu penso no assunto.
Tigrão arregalou os olhos.
— Chefia…
— Cala, Tigrão. — V.K disse, ainda olhando Catarina.
Ele deu a volta ao redor dela, como quem examina um terreno novo.
— Tu é gordinha, né?
Ela ergueu o rosto, sem recuar.
— E?
— A maioria das meninas daqui não gosta que chama assim.
— E eu não sou maioria.
— Tu não se incomoda?
— Não.
— Por quê?
— Porque é verdade. Eu sou gordinha mesmo.
O olhar dela era firme.
— E gostosa. — ele completou.
Ela travou por um segundo.
Ele percebeu.
Catarina respirou fundo e respondeu:
— Se você usa isso com todo mundo, comigo não funciona.
— Eu não uso com todo mundo.
— Usa sim.
— Não uso.
— Usa.
— Tá dizendo que me conhece?
— Tô dizendo que reconheço o tipo.
— Que tipo?
— O tipo que acha que um elogio derruba qualquer mulher.
— E não derruba tu?
— Não.
Ele sorriu de lado.
Um sorriso perigoso.
— Tu me irrita.
— Não tô tentando te agradar.
— Eu percebi.
— Então estamos entendidos.
Ele não respondeu.
Só ficou ali, olhando para ela como se tentasse entender por qual motivo uma mulher daquele tipo — simples, verdadeira, teimosa — não recuava diante dele.
Catarina voltou a estender o lençol como se a conversa tivesse acabado.
Mas V.K não tinha terminado.
— Fica longe das bocas.
— Eu não tenho interesse nelas.
— E fica longe dos meus homens.
— Eles vão ficar longe de mim também?
— Vão.
— Por quê?
— Porque eu tô mandando.
— E o que te faz achar que pode mandar em mim?
Ele respirou fundo — um fundo carregado de orgulho e poder.
— Eu mando nesse morro inteiro.
— E eu não sou morro.
Silêncio.
Um silêncio que queimava.
Tigrão murmurou:
— Chefia… ela te deu um drible agora.
— Cala a boca, Tigrão.
Catarina riu de novo.
Não porque queria.
Mas porque aquela discussão era tão absurda que beirava o cômico.
V.K deu dois passos para trás, aproximando-se da escada.
— Tu vai dar trabalho.
— Eu não pedi pra você se meter na minha vida.
— Não pedi tua opinião.
Ela levantou o rosto.
— Então por que veio aqui?
Essa pergunta, simples, direta, atravessou ele como faca.
Tigrão tapou a boca, segurando o riso.
V.K respondeu devagar:
— Pra ver quem era a gordinha atrevida que tá chamando atenção no meu morro.
— Agora já viu.
— Já.
— E o que achou?
— Que tu fala demais.
Catarina ergueu o queixo.
— E eu achei que você se acha demais.
Os olhos dele brilharam — não de raiva, mas de desafio.
Era oficial.
Aquela mulher era problema.
— Até logo, Catarina. — ele disse, virando-se.
— Até nunca, V.K.
Ele parou.
Só um segundo.
E desceu a escada sem olhar pra trás.
Mas Tigrão ficou.
Quando Catarina passou por ele, ele murmurou:
— Parabéns.
— Pelo quê?
— Por ter feito o impossível.
— O quê?
— Ter entrado na cabeça do chefia sem nem tentar.
Catarina não respondeu.
Mas sentiu o impacto.
Porque, mesmo sem querer…ela tinha acabado de acender um pavio dentro do Don da Vila.
E aquilo era o começo de tudo.