A Gordinha da Laje

1522 Words
Catarina acordou antes da avó naquele dia, sem saber se era o calor, a ansiedade ou a sensação estranha de estar começando uma nova vida num lugar onde tudo parecia respirar mais forte do que ela. A laje da Dona Nilva era pequena, mas tinha uma vista tão bonita que parecia impossível ser a mesma Vila Kennedy que aparecia no noticiário. Ali em cima, dava para ver crianças correndo entre becos, mães chamando filhos pelo nome, homens carregando sacolas, e soldados observando a rua com cara de quem nunca dormia direito. O morro não era só perigo. Era movimento. Era som. Era gente. E Catarina observou isso por longos minutos até ouvir o barulho da porta abrindo atrás dela. — Tu acordou cedo, menina. — disse Dona Nilva, ajeitando o óculos no rosto. — Tô me acostumando com a claridade daqui. — Aqui o sol acorda antes de todo mundo. Catarina riu e voltou a olhar para baixo. — Vó… — Hm? — Quem é aquele ali? A avó se aproximou, seguindo a direção do olhar. V.K estava parado na escadaria que dava acesso às lajes mais altas, conversando com dois soldados. Ele usava bermuda larga, chinelo e uma camisa simples — mas a postura dele não era simples. Era de quem carrega uma coroa invisível. Dona Nilva suspirou. — Ah… esse aí é problema. — Pra quem? — Pra quem abre a boca demais. — Mas quem ele é? — O dono disso aqui tudo. — V.K. — Esse mesmo. Catarina engoliu seco, lembrando-se do olhar que ele lançou na noite anterior. — Ele vive aqui? — Vive onde quer. — E por que tá sempre olhando pra tudo? — Porque nada acontece aqui sem ele saber. Dona Nilva virou de frente para a neta. — E se tu puder evitar irritar ele… melhor. — Eu não quero irritar ninguém. — Às vezes tu irrita sem querer. Catarina entendeu o aviso — mas entendeu apenas metade. A outra metade ela aprenderia naquele dia. Mais tarde, enquanto ajudava a avó a lavar roupas na bica comunitária, Catarina percebia olhares curiosos das mulheres. Não eram olhares ruins — apenas curiosos. Uma das moradoras, Suzana, se aproximou. — Tu é a neta da Nilva, né? — Sou sim. Catarina. — Eu sou Suzana. Mora ali no beco oito. — Prazer. — O povo tá comentando de tu. — Comentando? — É. — O que tão falando? — Que tu é bonita. Catarina riu. — Bonita? — É, ué. — Mas tão falando o quê exatamente? — Que tu chamou atenção ontem. — De quem? Suzana levantou a sobrancelha. — Do homem que ninguém quer chamar atenção. Catarina sentiu a pele arrepiar. — Do V.K? — É. A conversa terminou ali porque três soldados passaram por perto. Suzana apenas fez o sinal de fechar a boca e se afastou. Catarina segurou a bacia de roupas, tentando ignorar o incômodo no peito. Ela não tinha feito nada. Só tinha chegado. Ainda assim…a vila inteira parecia ter reparado. E alguém muito mais perigoso também. À tarde, Catarina decidiu subir na laje para estender as roupas da avó. A brisa ajudava a secar mais rápido, e ela gostava daquele vento. Enquanto pendurava um lençol, ouviu passos. Pesados. Firmes. Lentos. Virou-se. V.K estava parado no topo da escada. Ele não dizia nada. Só olhava. Era como encarar uma tempestade chegando — silenciosa, mas impossível de ignorar. Catarina engoliu seco. — A… a senhora Nilva não tá aqui agora. — ela disse, sem saber exatamente por quê. — Eu não tô procurando ela. A voz dele era grave, calma demais para alguém com aquela postura de comando. Ele deu dois passos à frente. — Tu é a neta nova da velha? — Sou. — Nome? — Catarina. — Idade? — Vinte e dois. — De onde tu veio? — De Realengo. — Sozinha? — Sim. Ele analisava cada resposta como quem avalia ameaça. — E por que veio? — Porque quis. — Ninguém vem pra cá porque quer. — Eu vim. — Então tu não sabe onde tá pisando. — Eu sei sim. V.K levantou a sobrancelha. — E tu acha que sabe mais do que eu? — Não. — Então por que falou que sabe onde tá pisando? — Porque não sou i****a. Ele estreitou os olhos. — Tu é corajosa ou só atrevida? Catarina cruzou os braços. — E você faz essa pergunta pra todo mundo? — Eu pergunto o que quero. — E eu respondo o que quiser. Tigrão, que vinha subindo logo atrás, quase engasgou com o atrevimento dela. — Eita… — ele murmurou baixinho. V.K deu mais um passo, ficando próximo o suficiente para Catarina sentir o cheiro dele — uma mistura de suor leve, cigarro apagado e algo quente, masculino, poderoso. — Tu fala muito pra alguém que acabou de chegar. — Eu falo o necessário. — E o necessário é me enfrentar? — Não tô te enfrentando. — Tá sim. — Não tô. — Tá. — Não estou. — Tá, p***a. Ela riu — e aquilo o irritou. — Por que tu tá rindo? — Porque você tá dizendo que eu tô enfrentando você… e eu só tô falando. Ele inclinou levemente o rosto, encarando-a como se tentasse decifrá-la. Ninguém falava com ele assim. Ninguém. Catarina, sem perceber, já tinha quebrado uma regra invisível. E ao invés de puni-la…ele parecia intrigado. — Tu não tem medo de mim? — ele perguntou. — É pra ter? — Todo mundo tem. — Eu não. — Por quê? — Porque medo não serve pra nada. Ele riu — não como Zulu ouvira mais cedo no galpão, mas de um jeito curto, surpreso, quase… satisfeito. — Tu não sabe do que eu sou capaz. — Não sei mesmo. — Então devia ter medo. — Talvez quando eu souber, eu penso no assunto. Tigrão arregalou os olhos. — Chefia… — Cala, Tigrão. — V.K disse, ainda olhando Catarina. Ele deu a volta ao redor dela, como quem examina um terreno novo. — Tu é gordinha, né? Ela ergueu o rosto, sem recuar. — E? — A maioria das meninas daqui não gosta que chama assim. — E eu não sou maioria. — Tu não se incomoda? — Não. — Por quê? — Porque é verdade. Eu sou gordinha mesmo. O olhar dela era firme. — E gostosa. — ele completou. Ela travou por um segundo. Ele percebeu. Catarina respirou fundo e respondeu: — Se você usa isso com todo mundo, comigo não funciona. — Eu não uso com todo mundo. — Usa sim. — Não uso. — Usa. — Tá dizendo que me conhece? — Tô dizendo que reconheço o tipo. — Que tipo? — O tipo que acha que um elogio derruba qualquer mulher. — E não derruba tu? — Não. Ele sorriu de lado. Um sorriso perigoso. — Tu me irrita. — Não tô tentando te agradar. — Eu percebi. — Então estamos entendidos. Ele não respondeu. Só ficou ali, olhando para ela como se tentasse entender por qual motivo uma mulher daquele tipo — simples, verdadeira, teimosa — não recuava diante dele. Catarina voltou a estender o lençol como se a conversa tivesse acabado. Mas V.K não tinha terminado. — Fica longe das bocas. — Eu não tenho interesse nelas. — E fica longe dos meus homens. — Eles vão ficar longe de mim também? — Vão. — Por quê? — Porque eu tô mandando. — E o que te faz achar que pode mandar em mim? Ele respirou fundo — um fundo carregado de orgulho e poder. — Eu mando nesse morro inteiro. — E eu não sou morro. Silêncio. Um silêncio que queimava. Tigrão murmurou: — Chefia… ela te deu um drible agora. — Cala a boca, Tigrão. Catarina riu de novo. Não porque queria. Mas porque aquela discussão era tão absurda que beirava o cômico. V.K deu dois passos para trás, aproximando-se da escada. — Tu vai dar trabalho. — Eu não pedi pra você se meter na minha vida. — Não pedi tua opinião. Ela levantou o rosto. — Então por que veio aqui? Essa pergunta, simples, direta, atravessou ele como faca. Tigrão tapou a boca, segurando o riso. V.K respondeu devagar: — Pra ver quem era a gordinha atrevida que tá chamando atenção no meu morro. — Agora já viu. — Já. — E o que achou? — Que tu fala demais. Catarina ergueu o queixo. — E eu achei que você se acha demais. Os olhos dele brilharam — não de raiva, mas de desafio. Era oficial. Aquela mulher era problema. — Até logo, Catarina. — ele disse, virando-se. — Até nunca, V.K. Ele parou. Só um segundo. E desceu a escada sem olhar pra trás. Mas Tigrão ficou. Quando Catarina passou por ele, ele murmurou: — Parabéns. — Pelo quê? — Por ter feito o impossível. — O quê? — Ter entrado na cabeça do chefia sem nem tentar. Catarina não respondeu. Mas sentiu o impacto. Porque, mesmo sem querer…ela tinha acabado de acender um pavio dentro do Don da Vila. E aquilo era o começo de tudo.
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