Catarina correu escada acima como se fugisse de algo invisível. O coração martelava no peito, o ar entrava cortando, e os olhos ardiam com lágrimas que ela tentava, sem sucesso, segurar.
As palavras do pai ecoavam sem parar:
“Eu prefiro ela morta do que ligada a você.”
E a resposta de V.K vinha logo atrás:
“Ela já tá.”
Quando chegou à laje da avó, jogou o corpo contra a parede e deslizou até o chão. A mão tremia. O peito ardia. O mundo parecia pequeno demais para a revolta que subia dentro dela.
Dona Nilva saiu correndo.
— Menina! O que foi?
— Ele… — Catarina soluçou. — Ele disse que preferia eu morta!
— Quem?
— O meu pai!
Dona Nilva fechou os olhos, respirando fundo, como se já esperasse aquilo.
— Aquele homem é doido.
— Ele me usaria como isca!
— Catarina…
— Ele quer matar o V.K!
— Claro que quer! Ele sempre quis!
Catarina sacudiu a cabeça, desesperada.
— Ele não tem limite, vó… nenhum!
A avó ajoelhou-se ao lado dela.
— Me escuta. O capitão… ele não nasceu pra ser pai. Nasceu pra mandar.
— Eu sei, mas…
— E tu nasceu pra escolher teu caminho.
— Eu não posso escolher isso!
— Pode.
— É perigoso demais.
— A vida sempre foi.
Catarina respirou fundo, tentando se recompor.
— Vó… ele vai matar o V.K.
— Ou o V.K mata ele.
— Isso é horrível!
— É o mundo deles.
— Mas eu tô no meio!
— Pois é… tá.
Catarina apertou as mãos com força.
— Eu preciso falar com ele.
— Com quem?
— Com o V.K.
— Menina—
— Eu preciso!
Ela se levantou, a determinação crescendo no peito.
— Se eu não falar agora… vai ter morte.
— Vai ter mesmo.
— E eu não quero que seja culpa minha.
— Não é tua culpa.
— É sim.
Dona Nilva segurou o braço dela.
— Catarina… não escolhe entre eles.
— Eu não tô escolhendo entre eles.
— Tá sim.
— Não… eu tô escolhendo entre o que é certo e o que é errado.
A avó a soltou, com um olhar triste.
— Então vai.
— Eu volto logo.
— Se voltar.
Catarina engoliu seco.
E desceu.
A viela estava mais tensa que o normal. Soldados falavam baixo, armas trocavam de mãos, rádios chiavam sem parar. Todos olhavam para ela como se fosse parte de uma equação que ninguém entendia.
Quando ela dobrou a esquina, V.K estava sentado num degrau, encostado no joelho, a arma ao lado, a respiração pesada. Tigrão e mais dois soldados estavam perto, falando sobre rotas de fuga, caso o BOPE resolvesse invadir.
Assim que Catarina apareceu, Tigrão cutucou o chefe.
— Chefia…
— O que foi?
— Olha quem tá vindo.
V.K levantou a cabeça.
Ao vê-la, o olhar dele mudou.
Não suavizou — mas ficou mais atento.
Catarina parou na frente dele.
— A gente precisa conversar. — ela disse, firme.
— Agora?
— Agora.
Tigrão arregalou os olhos.
— Vou dar um tempo. — ele murmurou, puxando os outros dois para longe.
V.K bateu a mão na calça, limpando a poeira, e levantou.
— Fala.
Catarina respirou fundo.
— Eu ouvi tudo.
— Tudo o quê?
— O que meu pai disse.
O maxilar dele travou.
— Tu não devia ter ouvido aquilo.
— Eu ouvi.
— Mudou alguma coisa?
— Mudou tudo.
Ele cruzou os braços.
— Que p***a mudou?
— Eu recuso.
— Recusa o quê?
— Ser isca.
— Ele não vai te perguntar.
— Eu não vou obedecer.
— Catarina…
— Eu não vou ser usada pra matar ninguém.
— Não é tu que decide.
— Mas devia ser.
— Não é.
— Eu tô dizendo que EU NÃO VOU FAZER PARTE DISSO!
O grito dela ecoou pela viela.
V.K ficou parado, olhando para ela como se tentasse entender onde essa coragem começava e onde ela terminava.
— Tu tá com medo? — ele perguntou.
— Tô.
— De mim?
— Não.
— Do teu pai?
— Também não.
— Então de quê?
— De ser obrigada a escolher um lado.
Ele piscou lentamente.
— E que lado tu escolheria?
— Nenhum.
— Isso não existe.
— Existe sim!
— Aqui não.
— Mas eu não quero guerra!
— A guerra não quer saber.
Ela passou a mão no rosto, frustrada.
— Eu não quero ser inimiga do meu pai.
— Tu já é.
— Não fala isso.
— É verdade.
— Ele… ele é meu pai.
— E daí?
— Eu não posso virar as costas.
— Ele virou as costas pra tu primeiro.
— Não assim!
— Tu ouviu o que ele falou.
— Eu ouvi, mas…
— Mas nada.
V.K deu um passo para frente.
— Ele prefere tu morta do que perto de mim.
— Ele tava com raiva.
— Ele tava falando a verdade.
— Não tava!
— Catarina…
Ele tocou o queixo dela, forçando-a a olhar nos olhos dele.
— Teu pai te odeia desde que tu começou a pensar por conta própria.
O peito dela doeu.
— Ele me criou.
— E daí?
— Ele fez o melhor que pôde.
— Fez nada.
— Você não sabe.
— Sei sim.
— Não sabe!
— Sei porque conheço homem como ele.
— Ele não é bandido!
— É pior.
— Não fala assim!
Ele soltou o queixo dela.
— Tu tá com medo de admitir.
— Admitir o quê?
— Que teu pai não te ama.
Catarina deu um tapa no peito dele.
V.K não se mexeu.
Nem piscou.
— Cala a boca! — ela gritou.
— É a verdade.
— Não é!
— É.
Ela sentiu as lágrimas queimarem.
— Por que você tá fazendo isso comigo? — ela perguntou, tremendo.
— Porque tu tem que escolher.
— Eu não vou escolher!
— Vai sim.
— Não vou!
— Vai.
— Eu não quero escolher nenhum dos dois!
— Mas tu já escolheu.
Ela bufou, chorando.
— Eu não escolhi você!
— Escolheu sim.
— NÃO ESCOLHI!
— Escolheu quando veio aqui.
— Eu vim porque eu queria impedir morte!
— Tu veio porque confiou.
— Não confi—
— Confiou.
Catarina ficou sem chão.
— Eu não confio em bandido.
— Mas confia em mim.
Ela ficou em silêncio.
Um silêncio que dizia tudo.
V.K respirou fundo, como se controlasse algo dentro dele.
— Catarina…
— Não fala meu nome assim.
— Assim como?
— Assim… desse jeito.
— Tu treme.
— Não tremo.
— Treme sim.
— Não.
— Treme.
Ela passou a mão nos braços, tentando parar o tremor.
— Eu não vou ajudar meu pai. — ela disse, finalmente.
— Claro que não vai.
— Porque eu não quero ser usada.
— Tu não vai ser.
— Mas também…
Ela respirou fundo.
— …eu não vou te ajudar.
Ele arqueou uma sobrancelha.
— Como é?
— Eu disse que não vou te ajudar.
— A não morrer?
— A matar ele.
Ele ficou sério.
Muito sério.
— Catarina… tu tá achando que eu tô pedindo tua ajuda?
— Eu sei que você não pediu.
— Então por que tá falando isso?
— Pra deixar claro.
— Claro o quê?
— Que eu não fico do lado de assassino.
Por um instante, o rosto dele endureceu.
Mas não de raiva — de mágoa.
E isso doeu mais nela do que imaginava.
— Tu acha que eu sou assassino? — ele perguntou, sem ironia.
— Você mata.
— Pra sobreviver.
— Meu pai também mata.
— Pra se sentir deus.
Ela engoliu seco.
— Eu não quero escolher entre vocês.
— Tu vai ter que.
— Não vou.
— Vai.
— Não vou!
— Vai porque o morro vai obrigar.
— Eu posso ir embora.
— Teu pai te busca.
— Então eu—
— E eu te busco também.
Ela arregalou os olhos.
— Você não tem direito!
— Tenho.
— NÃO TEM!
— Tenho sim.
— Por quê?
— Porque tu já é minha responsabilidade.
Ela ficou sem ar.
— Eu não sou sua.
— Nunca falei que é.
— Então por que fala assim?
— Porque eu cuido.
— Eu não pedi!
— Eu cuido do que eu quero.
— Eu não sou coisa!
— Não falei que é.
O silêncio pesou.
Ela respirou fundo.
— Eu… eu não vou ser usada.
— Não vai.
— Nem pelo meu pai.
— Nem por ninguém.
— Nem por você.
— Eu nunca te pedi nada.
— Mas quer que eu fique aqui.
— Quero.
— Isso é pedir.
— Então eu tô pedindo.
O coração dela bateu tão forte que doeu.
— Por quê? — ela sussurrou.
Ele passou a mão pelo rosto, cansado.
— Porque eu não quero que tu morra.
— Eu não vou morrer.
— Vai sim, se sair.
— Eu preciso sair.
— Não.
— Preciso viver minha vida!
— A tua vida agora tá aqui.
Ela recuou um passo.
— Eu não pertenço a esse lugar.
— Pertence enquanto eu disser.
— Eu não sou tua.
— Eu sei.
— Então me deixa ir.
— Não deixo.
Ela sentiu o mundo girar.
— Por que você quer que eu fique aqui?
— Porque eu tenho medo.
— Medo de quê?
— De tu escolher ele.
O silêncio cortou o ar.
Catarina sentiu o peito apertar.
— Eu…
Ela respirou fundo.
— Eu não vou escolher meu pai.
Ele ergueu o rosto, surpreso.
— Mas também…
Ela apertou as mãos.
— …eu ainda não escolhi você.
Por um instante, algo brilhou nos olhos dele.
Não raiva.
Não ódio.
Vulnerabilidade.
Mas durou pouco.
Ele apagou rápido.
— Tá certo. — ele disse.
— Você entende?
— Entendo.
— Então me deixa viver minha vida.
— Não posso.
— Por quê?
— Porque o morro não deixa.
— Não é o morro.
— O quê então?
Ele deu meio sorriso.
— Eu.
Ela sentiu as pernas fraquejarem.
Mas antes que pudesse responder, o rádio dele chiou violentamente:
—“CHEF! O capitão tá fazendo movimentação na entrada! Parece emboscada!”
V.K xingou baixo.
— Vai pra tua laje.
— Eu—
— AGORA!
— Mas—
— AGORA, CATARINA!
Ela deu um passo atrás, assustada com a mudança brusca de tom.
Ele respirou fundo.
— Depois a gente termina isso.
Ela virou-se para ir embora.
Mas antes de sumir na curva, falou:
— Eu não sou sua inimiga.
V.K fechou os olhos.
— Eu sei. — respondeu.
E, no fundo, sabia que ela estava dizendo a verdade.
O problema era:
o pai dela era.
E a lealdade dela ainda pendia…
mesmo que só um pouco.
E era isso que poderia destruir tudo.