Entre a Lealdade e o Medo

1803 Words
Catarina correu escada acima como se fugisse de algo invisível. O coração martelava no peito, o ar entrava cortando, e os olhos ardiam com lágrimas que ela tentava, sem sucesso, segurar. As palavras do pai ecoavam sem parar: “Eu prefiro ela morta do que ligada a você.” E a resposta de V.K vinha logo atrás: “Ela já tá.” Quando chegou à laje da avó, jogou o corpo contra a parede e deslizou até o chão. A mão tremia. O peito ardia. O mundo parecia pequeno demais para a revolta que subia dentro dela. Dona Nilva saiu correndo. — Menina! O que foi? — Ele… — Catarina soluçou. — Ele disse que preferia eu morta! — Quem? — O meu pai! Dona Nilva fechou os olhos, respirando fundo, como se já esperasse aquilo. — Aquele homem é doido. — Ele me usaria como isca! — Catarina… — Ele quer matar o V.K! — Claro que quer! Ele sempre quis! Catarina sacudiu a cabeça, desesperada. — Ele não tem limite, vó… nenhum! A avó ajoelhou-se ao lado dela. — Me escuta. O capitão… ele não nasceu pra ser pai. Nasceu pra mandar. — Eu sei, mas… — E tu nasceu pra escolher teu caminho. — Eu não posso escolher isso! — Pode. — É perigoso demais. — A vida sempre foi. Catarina respirou fundo, tentando se recompor. — Vó… ele vai matar o V.K. — Ou o V.K mata ele. — Isso é horrível! — É o mundo deles. — Mas eu tô no meio! — Pois é… tá. Catarina apertou as mãos com força. — Eu preciso falar com ele. — Com quem? — Com o V.K. — Menina— — Eu preciso! Ela se levantou, a determinação crescendo no peito. — Se eu não falar agora… vai ter morte. — Vai ter mesmo. — E eu não quero que seja culpa minha. — Não é tua culpa. — É sim. Dona Nilva segurou o braço dela. — Catarina… não escolhe entre eles. — Eu não tô escolhendo entre eles. — Tá sim. — Não… eu tô escolhendo entre o que é certo e o que é errado. A avó a soltou, com um olhar triste. — Então vai. — Eu volto logo. — Se voltar. Catarina engoliu seco. E desceu. A viela estava mais tensa que o normal. Soldados falavam baixo, armas trocavam de mãos, rádios chiavam sem parar. Todos olhavam para ela como se fosse parte de uma equação que ninguém entendia. Quando ela dobrou a esquina, V.K estava sentado num degrau, encostado no joelho, a arma ao lado, a respiração pesada. Tigrão e mais dois soldados estavam perto, falando sobre rotas de fuga, caso o BOPE resolvesse invadir. Assim que Catarina apareceu, Tigrão cutucou o chefe. — Chefia… — O que foi? — Olha quem tá vindo. V.K levantou a cabeça. Ao vê-la, o olhar dele mudou. Não suavizou — mas ficou mais atento. Catarina parou na frente dele. — A gente precisa conversar. — ela disse, firme. — Agora? — Agora. Tigrão arregalou os olhos. — Vou dar um tempo. — ele murmurou, puxando os outros dois para longe. V.K bateu a mão na calça, limpando a poeira, e levantou. — Fala. Catarina respirou fundo. — Eu ouvi tudo. — Tudo o quê? — O que meu pai disse. O maxilar dele travou. — Tu não devia ter ouvido aquilo. — Eu ouvi. — Mudou alguma coisa? — Mudou tudo. Ele cruzou os braços. — Que p***a mudou? — Eu recuso. — Recusa o quê? — Ser isca. — Ele não vai te perguntar. — Eu não vou obedecer. — Catarina… — Eu não vou ser usada pra matar ninguém. — Não é tu que decide. — Mas devia ser. — Não é. — Eu tô dizendo que EU NÃO VOU FAZER PARTE DISSO! O grito dela ecoou pela viela. V.K ficou parado, olhando para ela como se tentasse entender onde essa coragem começava e onde ela terminava. — Tu tá com medo? — ele perguntou. — Tô. — De mim? — Não. — Do teu pai? — Também não. — Então de quê? — De ser obrigada a escolher um lado. Ele piscou lentamente. — E que lado tu escolheria? — Nenhum. — Isso não existe. — Existe sim! — Aqui não. — Mas eu não quero guerra! — A guerra não quer saber. Ela passou a mão no rosto, frustrada. — Eu não quero ser inimiga do meu pai. — Tu já é. — Não fala isso. — É verdade. — Ele… ele é meu pai. — E daí? — Eu não posso virar as costas. — Ele virou as costas pra tu primeiro. — Não assim! — Tu ouviu o que ele falou. — Eu ouvi, mas… — Mas nada. V.K deu um passo para frente. — Ele prefere tu morta do que perto de mim. — Ele tava com raiva. — Ele tava falando a verdade. — Não tava! — Catarina… Ele tocou o queixo dela, forçando-a a olhar nos olhos dele. — Teu pai te odeia desde que tu começou a pensar por conta própria. O peito dela doeu. — Ele me criou. — E daí? — Ele fez o melhor que pôde. — Fez nada. — Você não sabe. — Sei sim. — Não sabe! — Sei porque conheço homem como ele. — Ele não é bandido! — É pior. — Não fala assim! Ele soltou o queixo dela. — Tu tá com medo de admitir. — Admitir o quê? — Que teu pai não te ama. Catarina deu um tapa no peito dele. V.K não se mexeu. Nem piscou. — Cala a boca! — ela gritou. — É a verdade. — Não é! — É. Ela sentiu as lágrimas queimarem. — Por que você tá fazendo isso comigo? — ela perguntou, tremendo. — Porque tu tem que escolher. — Eu não vou escolher! — Vai sim. — Não vou! — Vai. — Eu não quero escolher nenhum dos dois! — Mas tu já escolheu. Ela bufou, chorando. — Eu não escolhi você! — Escolheu sim. — NÃO ESCOLHI! — Escolheu quando veio aqui. — Eu vim porque eu queria impedir morte! — Tu veio porque confiou. — Não confi— — Confiou. Catarina ficou sem chão. — Eu não confio em bandido. — Mas confia em mim. Ela ficou em silêncio. Um silêncio que dizia tudo. V.K respirou fundo, como se controlasse algo dentro dele. — Catarina… — Não fala meu nome assim. — Assim como? — Assim… desse jeito. — Tu treme. — Não tremo. — Treme sim. — Não. — Treme. Ela passou a mão nos braços, tentando parar o tremor. — Eu não vou ajudar meu pai. — ela disse, finalmente. — Claro que não vai. — Porque eu não quero ser usada. — Tu não vai ser. — Mas também… Ela respirou fundo. — …eu não vou te ajudar. Ele arqueou uma sobrancelha. — Como é? — Eu disse que não vou te ajudar. — A não morrer? — A matar ele. Ele ficou sério. Muito sério. — Catarina… tu tá achando que eu tô pedindo tua ajuda? — Eu sei que você não pediu. — Então por que tá falando isso? — Pra deixar claro. — Claro o quê? — Que eu não fico do lado de assassino. Por um instante, o rosto dele endureceu. Mas não de raiva — de mágoa. E isso doeu mais nela do que imaginava. — Tu acha que eu sou assassino? — ele perguntou, sem ironia. — Você mata. — Pra sobreviver. — Meu pai também mata. — Pra se sentir deus. Ela engoliu seco. — Eu não quero escolher entre vocês. — Tu vai ter que. — Não vou. — Vai. — Não vou! — Vai porque o morro vai obrigar. — Eu posso ir embora. — Teu pai te busca. — Então eu— — E eu te busco também. Ela arregalou os olhos. — Você não tem direito! — Tenho. — NÃO TEM! — Tenho sim. — Por quê? — Porque tu já é minha responsabilidade. Ela ficou sem ar. — Eu não sou sua. — Nunca falei que é. — Então por que fala assim? — Porque eu cuido. — Eu não pedi! — Eu cuido do que eu quero. — Eu não sou coisa! — Não falei que é. O silêncio pesou. Ela respirou fundo. — Eu… eu não vou ser usada. — Não vai. — Nem pelo meu pai. — Nem por ninguém. — Nem por você. — Eu nunca te pedi nada. — Mas quer que eu fique aqui. — Quero. — Isso é pedir. — Então eu tô pedindo. O coração dela bateu tão forte que doeu. — Por quê? — ela sussurrou. Ele passou a mão pelo rosto, cansado. — Porque eu não quero que tu morra. — Eu não vou morrer. — Vai sim, se sair. — Eu preciso sair. — Não. — Preciso viver minha vida! — A tua vida agora tá aqui. Ela recuou um passo. — Eu não pertenço a esse lugar. — Pertence enquanto eu disser. — Eu não sou tua. — Eu sei. — Então me deixa ir. — Não deixo. Ela sentiu o mundo girar. — Por que você quer que eu fique aqui? — Porque eu tenho medo. — Medo de quê? — De tu escolher ele. O silêncio cortou o ar. Catarina sentiu o peito apertar. — Eu… Ela respirou fundo. — Eu não vou escolher meu pai. Ele ergueu o rosto, surpreso. — Mas também… Ela apertou as mãos. — …eu ainda não escolhi você. Por um instante, algo brilhou nos olhos dele. Não raiva. Não ódio. Vulnerabilidade. Mas durou pouco. Ele apagou rápido. — Tá certo. — ele disse. — Você entende? — Entendo. — Então me deixa viver minha vida. — Não posso. — Por quê? — Porque o morro não deixa. — Não é o morro. — O quê então? Ele deu meio sorriso. — Eu. Ela sentiu as pernas fraquejarem. Mas antes que pudesse responder, o rádio dele chiou violentamente: —“CHEF! O capitão tá fazendo movimentação na entrada! Parece emboscada!” V.K xingou baixo. — Vai pra tua laje. — Eu— — AGORA! — Mas— — AGORA, CATARINA! Ela deu um passo atrás, assustada com a mudança brusca de tom. Ele respirou fundo. — Depois a gente termina isso. Ela virou-se para ir embora. Mas antes de sumir na curva, falou: — Eu não sou sua inimiga. V.K fechou os olhos. — Eu sei. — respondeu. E, no fundo, sabia que ela estava dizendo a verdade. O problema era: o pai dela era. E a lealdade dela ainda pendia… mesmo que só um pouco. E era isso que poderia destruir tudo.
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