O sol ainda nem tinha subido quando o telefone de Roldão começou a vibrar sem parar.
Ele estava sentado na mesa da cozinha, fardado, café pela metade, olhar cansado e mandíbula travada. Era um homem acostumado a caçar — não a ser caçado. E menos ainda a ser questionado pela própria filha.
O número na tela era desconhecido.
Mas ele atendeu.
— Fala.
— Capitão… a informação chegou.
— Que informação?
— A da sua menina.
O mundo de Roldão ficou em silêncio por um segundo inteiro.
— Onde ela tá? — perguntou, cada palavra cortando o ar.
— Na Vila Kennedy.
— Repete.
— No morro.
— Morro qual?
— O da Kennedy, capitão.
— Não. Isso tá errado.
A mão dele apertou tanto o celular que parecia que iria quebrar.
— Quem te passou isso?
— Um moleque que viu ela ontem.
— Descreve.
— Branquinha, cabelo castanho, cheinha…
Roldão fechou os olhos.
Era ela.
Era Catarina.
— E com quem ela tava?
— Sozinha.
— E depois?
— Com…
O informante hesitou.
Roldão levantou da cadeira, a voz baixa, mortal:
— Com quem?
— Com o… Don.
O coração dele bateu como tiro.
— Fala o nome.
— V.K.
— Não…
Roldão bateu na mesa. O som ecoou pela cozinha vazia.
— COMO ELA FOI PARAR NA MÃO DAQUELE FILHO DA p**a?!
O informante engoliu seco pelo telefone.
— Capitão… ele não encostou nela, não.
— Ainda.
— Ele só…
— Só o quê?!
— Tava… olhando.
— Ele vai morrer.
— Capitão—
— DESLIGA.
Ele desligou antes mesmo de ouvir resposta.
As mãos tremiam, mas não de medo.
De ódio.
Roldão era conhecido por ser o tipo de homem que não perdoava bandido.
Mas bandido tocando no que era dele?
Aquilo era imperdoável.
Ele respirou fundo, tentando organizar os pensamentos — mas tudo o que havia era caos.
Na laje da avó, Catarina tomava café quando sentiu o celular vibrar.
Ela olhou para o visor.
PAPAI
O coração dela caiu no estômago.
— Atende. — disse Dona Nilva, séria.
— Eu não quero falar com ele.
— Melhor tu falar. O silêncio dele é pior.
Catarina respirou fundo e atendeu.
— Pai?
— ONDE VOCÊ TÁ?
A voz veio tão alta que ela afastou o celular do ouvido.
— Pai, eu—
— RESPONDE.
— Tô na casa da vó.
— A casa da tua avó é em Realengo.
— Eu… vim visitar.
— MENTIU.
— Pai—
— TU TÁ NA p***a DO MORRO, NÃO TÁ?
Catarina fechou os olhos, derrotada.
— Tô.
— Eu te proibi de ir pra esse lugar.
— Eu sou adulta.
— NÃO INTERESSA SE É ADULTA!
— Interess—
— FICA NA CASA DESSA VELHA. NÃO SAI. NÃO SE APROXIMA DE NINGUÉM. EU TÔ SUBINDO.
Catarina arregalou os olhos.
— NÃO! Pai, não sobe!
— Eu FAÇO o que eu quiser.
— Pai, por favor—
— Tô chegando.
— Par—
Bip.
Ele desligou.
As mãos dela tremiam.
— Ele tá vindo. — ela sussurrou.
— Eu ouvi. — disse Dona Nilva. — E se ele subir desse jeito…
— O que acontece?
— Dá morte.
Catarina sentiu um nó na garganta.
— Eu preciso falar com o V.K.
— Falar o quê?
— Que meu pai tá subindo atrás dele.
— Menina… não mete tua boca nisso.
— Eu já tô metida!
Ela correu para a porta.
— CATARINA! — a avó gritou. — NÃO SE METE ENTRE BANDIDO E POLÍCIA! QUEM FICA NO MEIO É O PRIMEIRO A CAIR!
Mas Catarina já estava descendo a escada.
No meio da viela, dois soldados barraram o caminho dela.
— Ei, ei, ei! Aonde tu vai? — um deles perguntou.
— Preciso falar com o V.K.
— Com o chefia?
— É urgente.
— Nada é urgente pra ele a ponto de tu descer sozinha.
— Meu pai tá vindo.
Os dois trocaram olhares.
— Teu pai?
— Capitão Roldão.
— p**a QUE PARIU.
O soldado pegou o rádio.
— Chefia!
— Que foi? — a voz de V.K veio seca.
— A filha do capitão tá dizendo que—
— MANDA ELA SUBIR. AGORA.
— Tá. — o soldado respondeu.
Ele puxou Catarina pelo braço.
— Anda, anda, anda!
Ela subiu correndo, o coração na boca.
V.K estava no alto do beco, perto da laje onde organizava os soldados. Ele virou na mesma hora em que a viu.
— Que p***a tu tá fazendo aqui embaixo?! — ele rosnou.
— V.K, meu pai—
— Eu sei.
— Ele vai subir!
— Eu sei.
— Então faz alguma coisa!
— Eu tô fazendo.
— O que?!
— Preparando pra guerra.
Catarina sentiu a respiração travar.
— Não!
— Sim.
— Você não pode enfrentar meu pai!
— Eu posso enfrentar quem eu quiser.
— Mas ele… ele não é só polícia.
— Eu sei quem ele é.
— Ele é louco!
— Eu também.
Ela agarrou o braço dele.
— POR FAVOR!
Ele virou o rosto devagar, os olhos perigosamente calmos.
— Catarina…
— Não deixa ele subir assim.
— Eu não mando em polícia.
— Mas tu manda no morro.
— E daí?
— Se tu reagir, ele vai reagir pior!
— Ele já reagiu.
— Ele tá vindo matar você!
— Eu tô esperando.
Ela sentiu o coração despedaçar de medo.
— Você não tá entendendo.
— Tô entendendo sim.
— Não tá!
— Tô.
Catarina empurrou o peito dele com força.
— ME OUVE!
O corpo dele nem se moveu.
— Se vocês brigarem…
As lágrimas subiram sem permissão.
— …um de vocês não volta.
Ele finalmente olhou para ela — de verdade.
Viu o medo.
O desespero.
O tremor nos lábios.
E algo nele mexeu.
— Tu tá chorando? — ele perguntou.
— Eu tô com medo!
— De eu morrer?
— Dele matar você.
— E se ele matar, qual o problema?
— O problema…
Ela engoliu.
— …é que eu não quero que você morra.
O peito de V.K travou.
Por um segundo — um segundo que ninguém viu — ele perdeu o ar.
Ele se aproximou, tocou o rosto dela com o polegar e limpou a lágrima.
— Catarina…
— Não briga com meu pai.
— Ele veio brigar comigo.
— Mesmo assim.
— Eu não corro.
Ela agarrou a camisa dele.
— Eu tô pedindo.
Algo dentro dele derreteu.
Ele segurou o pulso dela, devagar.
— Se teu pai subir armado…
O olhar dele escureceu.
— …eu não tenho escolha.
O rádio chiou.
—“Chef! O carro do capitão já tá na subida!”
Catarina prendeu a respiração.
— V.K… por favor…
— Vai pra tua laje.
— Eu não vou te deixar—
— VAI.
Ela não se moveu.
Ele segurou o rosto dela com ambas as mãos e falou baixo, firme:
— Se tu morrer hoje… eu mato ele.
— Eu não vou morrer!
— Vai sim se ficar no meio.
Ela congelou.
— Vai, p***a. — ele repetiu, sem gritar, mas firme como sentença.
Ela deu um passo para trás.
Mas antes de ir, falou:
— Ele não vai parar.
— Nem eu.
Ela deu as costas e correu.
V.K a acompanhou com os olhos até ela sumir na escada.
Tigrão parou ao lado dele.
— Chefia… e aí?
V.K respirou fundo, chacoalhando a arma no coldre.
— Fecha o morro.
— Fechando.
— E prepara.
— Pra quê?
— Hoje…
Ele olhou para o alto, onde Catarina havia desaparecido.
— …o capitão vai descobrir que a filha dele não é o único problema dele.
Tigrão sorriu.
— Chefia…
— Hm?
— Tu tá fodido.
— Tô.
E pela primeira vez, V.K admitiu isso sem nenhuma vergonha.
Porque agora…
a guerra não era só contra o BOPE.
Contra rivais.
Contra o Estado.
Era contra ele mesmo.