Ainda era escuro quando ela acordou para ir à escola.
Vestiu o uniforme, que era a calça escura e uma blusa de gola polo, as meias e os tênis. Prendeu o cabelo no alto da cabeça e analisou o resultado do penteado. Nada m*l para uma garota de catorze anos. Talvez, com muita sorte, Donne a notasse, já que desde o início do ano o paquerava, tão bonito, tão esguio e atlético, tão encantadoramente distante, alheado de todos como às vezes o pai dela ficava.
E foi ele, o pai, quem encontrou à mesa do café da manhã. As pálpebras inchadas, a ponta do nariz vermelha, os olhos rasos de lágrimas.
Ele era bonito na sua loirice de homem de quase quarenta anos. A pele curtida do sol, de quem trabalhava ao ar livre conduzindo o gado.
Uma vez por ano, os seus pais e as outras cinco famílias do mesmo clã se mudavam, peregrinando atrás de poços artesianos abertos nos vilarejos abandonados. Fundavam então o seu próprio povoado, erguendo casas e demais construções de madeira e pedra, cavavam ainda mais a terra em busca de água, trabalhavam o solo a fim de tirar o melhor proveito dele e, ao findar os recursos naturais, eles simplesmente deixavam tudo para trás, criando assim, mais uma cidade fantasma do deserto. Como as que eles encontravam pelo caminho ao cruzarem o chão seco, duro e vermelho escuro atrás de um novo lugar para viver e assentar as famílias com crianças e poucos velhos.
A escola nada mais era uma pequena construção de madeira, com salas separadas de acordo com a idade dos alunos. Mas agora não era importante pensar nisso, não quando acabava de encontrar o seu pai segurando o choro antes do amanhecer.
Avaliou também a palidez por baixo da barba por fazer.
— O que foi? Onde tá a mãe? — olhou em torno, vendo a bagunça na cozinha humilde.
Viviam os três numa casinha de madeira do tipo que era construído em poucas semanas. Desde pequenos, os líderes de cada família aprendiam a construir a sua casa, bem como a sustentar os seus dependentes e a procurar água. As famílias se uniam através do casamento, obedecendo à ordem de nascimento de cada indivíduo. O seu pai, por exemplo, era o primeiro filho da sua família e, portanto, teve que se casar, ao completar 16 anos, com a primogênita de uma família do clã vizinho. Assim, acumulavam suas posses e também aumentava o número de peregrinos nos comboios que desbravavam o deserto. Apenas quem vivia na Esfera possuía moradia fixa, mas era uma parcela mínima de pessoas. A maioria vivia como nômades ou como quase selvagens em vilarejos constantemente saqueados.
Menos em Malpasso.
— Sua mãe arruinou a nossa família, partiu com a caravana do amante. — falou, baixinho, fitando a toalha.
— O quê?
Era impossível que ela a tivesse deixado para trás, considerou, sentando-se na cadeira como uma autômata.
— Tentei protegê-la o máximo que pude, minha Kaila, mas a verdade é que eu sabia que ela partiria. — disse ele, a voz embargada, descabelado de tanto arar as mechas com os dedos nervosos. — O que será de mim?
Kaila sentia como se não estivesse ali, uma sensação esquisita se apossou de sua mente, dissociando-a da realidade. Via-se do alto sentada na cadeira, os ombros encurvados, fitando a mesa e o pai, o pai e a janela aberta, o pai e a camada de terra vermelha sobre os móveis. De repente o tempo havia parado, e a mágoa caiu no fundo de sua alma como um tijolo no rio.
— Ela jamais me deixaria. — murmurou, a garganta seca, a sua própria vida afundando na terra da tristeza e da falta do entendimento. — A mãe nos amava.
— A sua mãe era infeliz. — ele a interrompeu, limpando o nariz com o dorso da mão. — Eu a tornei uma mulher infeliz. Prometi que um dia viveríamos na Esfera, mas jamais consegui tirá-la do deserto. Sou uma porcaria de homem, minha filha, essa é a grande verdade. — completou, erguendo-se da cadeira em direção à porta dos fundos. — Preciso voltar ao trabalho... Encontramos uma mina abandonada, vamos escavar e, se tiver algo que presta, poderemos negociar com os mercadores. — ele parou de falar e, emocionado, voltou-se para ela: — Não esqueci que amanhã é o seu aniversário e você ganhará o seu presente. Nada mudará, somos um time... uma dupla.
Ela levantou da cadeira e correu para abraçá-lo. Amava a sua mãe, mas sempre se identificou mais com o pai. Ele tinha razão, apenas os dois eram felizes. A Esfera era o sonho de uma pessoa só naquela casa. Além disso, ela os tinha abandonado.
— Ele a levou para a Esfera? Você acha, pai? Será que foi isso que ele lhe prometeu?
O pai a encarou antes de responder, gravemente:
— Acho que não. Sem escoltadores, ninguém escapa dos skinners.
Kaila sentiu uma pontada no peito.
— Não quero que ela morra. — pediu, deixando as lágrimas rolarem livremente pelo rosto.
Ele esboçou um frágil sorriso, apertando-a entre os seus braços protetores, amáveis, o seu porto seguro.
— As pessoas acreditam que o amor as blindam do perigo e, de certa forma, blinda mesmo. O problema é quando confundimos amor com paixão ou desespero. — ele se afastou para encará-la e, olhando fundo nos seus olhos, falou numa voz trêmula: — Provavelmente ela foi para um lugar melhor. Afinal, não deve existir uma vida pior que a de vagar pelo deserto ano após ano.
— Uma vida sem nós, pai, isso sim devia ser considerado como uma vida pior.
— É o que eu sinto, minha garota linda. É o que eu sinto só de imaginar me separar de você.
Ela secou a lágrima que desceu dos seus olhos tão claros e avermelhados devido ao choro. Envelheceu dez anos, era o que ela via diante de si, um homem envelhecendo dez anos em questão de minutos.
Naquele dia ela não foi à escola. O peso que sentia era avassalador. Sumir no mundo era uma boa opção, mas enquanto os skinners existissem teria de aceitar viver com o clã. Por outro lado, jamais abandonaria o pai. Com o tempo, ele se tornou cada vez mais distante, mesmo em casa. O olhar parado para depois da janela aberta, as saídas durante a madrugada, a volta para casa pouco antes do amanhecer.
A vida nunca foi a mesma.
Um dia antes de seguirem no comboio de caminhões pelo deserto atrás de um novo lugar para viver, um rapaz encontrou um osso no quintal da casa de Kaila. O líder do clã, que era o homem mais velho entre as cinco famílias, analisou o achado. Era um osso humano. Pediu a pá e começou a cavar. Logo, outros homens se juntaram a ele. Fizeram um belo buraco na terra. E encontraram mais ossos. O último deles era um esqueleto inteiro deitado na cova, as roupas o vestiam, os vermes terminavam de comer os poucos vestígios de carne.
Kaila reconheceu o vestido da sua mãe.
Quando as mulheres também se juntaram por toda área ao redor da sua casa, aos poucos, mais ossadas surgiram. E, com elas, as respostas aos desaparecimentos de quatro mulheres do clã.
Todas foram, enfim, encontradas.
Inclusive a sua mãe.
Mortas e enterradas no quintal do assassino em série que, dias depois, foi enforcado.