A LUA- Parte 1

2892 Words
Seus olhos se abriram preguiçosamente. O feixe de luz solar que vinha da janela aquecia a pele exposta de suas pernas. Levou alguns segundos para que ela percebesse aonde estava e a lembrança a fez respirar profundamente, com pesar. Aquela era a vigésima manhã que acordara naquele quarto com paredes geladas e cortinas pesadas. Ela se sentou na cama forçando sua coluna a se endireitar e passou os olhos pelo cômodo. Uma cama grande e espaçosa com lençóis demais para o seu gosto e para o que estava acostumada, no chão, estavam os dez travesseiros mais confortáveis que já sentira na vida e embaixo um tapete felpudo com cores que iam do vermelho vinho ao marrom envelhecido. Acima estava um quadro, pintado a tinta a óleo, que a fazia sentir um pouco mais próxima de casa, com árvores recheadas de neve e uma neblina, que se concentrasse sua mente, conseguia sentir o ar molhado e as gotículas que se acumulavam na ponta de seu nariz arrebitado. A moldura era do mais puro ouro, com várias formas naturais esculpidas, e se o contexto fosse outro, com certeza não pensaria duas vezes antes de querer roubá-lo para trocar na Grande Feira por um carneiro e alguns grãos, talvez até um barril de cerveja para seu pai, mas ela sacudiu a cabeça afastando o pensamento, pois sabia que não poderia ficar se torturando daquela forma e era melhor aceitar o que havia acontecido com ela. A porta de madeira entalhada abriu-se com um ranger alto, que ela ainda não havia se acostumado, e dela saiu uma mulher baixinha, com bochechas rosadas e rechonchudas, com vestes escuras e um avental rodeando sua barriga. Era fácil reconhecer Úrsula em qualquer lugar. — Vejo que acordou cedo hoje, milady. - a mulher entrava como um furacão no quarto, com uma energia que atordoava a garota. Úrsula rapidamente catava os travesseiros do chão e o colocava em uma poltrona avermelhada próxima da janela com grades. Aliás, essa foi a primeira coisa que a garota reparou quando pôs os pés naquele cubículo confortável e quente. A janela tinha grades. Grades grossas e enferrujadas, mas sabia que não tinha martelo, faca ou cerrote que as fizessem se romper e ela sabia disso por experiência. Foram semanas difíceis as que passou e mesmo com sua teimosia e relutância a ficar naquele lugar, agora sabia que não tinha nada que pudesse fazer para escapar. Tentara de tudo. Derrubar as grades, gritar com os empregados, envenenar quem pudesse, ser agressiva, não comer, não dormir... Tentara de tudo, mas não era o suficiente. Estavam determinados a mantê-la naquele castelo, custe o que custasse, inclusive vidas. — Sim, acho que foi o sol. - respondeu a garota repousando a mão acima dos olhos, criando sombra para que conseguisse acompanhar Úrsula enquanto abria um pequeno armário e tirava dele um vestido esmeralda. - Preciso mesmo vestir isto? - seu rosto se contraiu e fez uma careta. A mulher virou-se para ela, já com o vestido em seus braços, e respirou fundo, demonstrando uma leve pena em seu olhar. Se sentou na cama ao lado da garota e disse com a voz mais suave que conseguia: — Eu sei que não está sendo fácil para você, mas eu preciso que tente se adaptar Fly. Todos nós precisamos que você tente. - enquanto a mulher falava, a garota reparou uma certa súplica em suas palavras. — Por que diz isso? Está acontecendo alguma coisa? - Fly sabia que sim, estava nítido que sim, mas precisava saber o que. Úrsula sacudiu a cabeça e tratou de colocar o sorriso mais caloroso no rosto antes de se levantar apressadamente e estender o vestido na cama, soltando o ar com força pela boca. — Vai ficar linda com ele! Milord te espera no salão para o café da manhã. Não se atrase. - ela olhou para baixo por um instante. - Você sabe que ele não gosta de atrasos. - retornou o olhar para a garota, enrugou a testa e esticou os cantos da boca. Úrsula saiu batendo a porta e deixando ela novamente em meio a seus pensamentos confusos e m*l direcionados. Fly sabia que algo acontecia dentro daquelas paredes de pedras frias. Algo que ninguém tinha autorização para falar, mas que era de entendimento geral. Ela queria saber o que era, na verdade, precisava, porque poderia usar contra quem a prendera ali. Ainda sentada na beira da cama, seus pés tocaram o chão gelado e rapidamente os levantou. Levava alguns segundos para se acostumar com a textura e a temperatura, já que se recusava a usar pantufas, pois abafavam seus pés. Em sua casa... Antiga casa, no vilarejo, não havia mais de um par de sapatos por morador, afinal, era mais importante comprar comida e bebida do que vestes ou sapatos. Duas vestes e um par de sapatos. Era o suficiente. E claro que todas as suas roupas eram de segunda ou até terceira mão, então vestir-se elegantemente nunca esteve dentro de seu repertório, não que ela se importasse com isso. Sempre foi ensinada que personalidade e resiliência eram mais importantes do que quantas joias poderia carregar no pescoço ou ouro em suas paredes. Tomou coragem e pôs os dois pés descalços no chão. Levantou-se e foi até a janela contemplar a vista por alguns minutos. Era a única coisa que conseguia se agarrar quando as coisas estavam indo de m*l a pior. A vista da floresta. Então, se tornou um hábito. Todos os dias pela manhã ela ia até a janela e contava os rios e riachos que conseguia observar de lá. Seu quarto ficava na torre mais alta do castelo, o que a fazia querer ficar de pé no parapeito e se jogar em queda livre, até que suas asas se abrissem como um dragão pronto para a caçada. Mas, com todas aquelas barras de ferro, sua imaginação se limitava. Apoiou seus cotovelos nas pedras e admirou. O sol entre nuvens, a copa dos pinheiros balançando-se devagar, como se um gigante tivesse soprado levemente sobre ela, o barulho dos pássaros misturando-se com o som dos rios e riachos e ela até palpitava de que pudesse existir uma cachoeira por ali, perto das montanhas, mas não a via. Mais próximo do castelo, via o estábulo e alguns cavalos, acompanhados de mais empregados, pastando e caminhando para exercitar suas pernas. Se pudesse, ficaria o dia inteiro ali. Na mesma posição, somente observando a natureza e deixando sua mente limpa e livre de seus pensamentos caóticos e desastrosos, mas se obrigava a dar meia volta e ir pegar o vestido. Se posicionou na frente de um espelho pregado nas costas de sua porta e encarou sua forma, imaginando como ficaria com o vestido. Ela era baixa, mas não tanto, magricela e quase desnutrida, cabelos longos, volumosos e ondulados indo até a base da coluna, olhos amendoados e grandes negros, algumas marcas de cicatriz pelo rosto e corpo e suas asas... De um azul vibrante, mas que agora estavam caídas e com uma cor acinzentada. A última vez que elas haviam estado do azul mais vivo foi quando ela e seu pai caçaram um javali de três chifres perto de sua cabana. Boas lembranças. Em alguns minutos já estava descendo as escadas de pedra, em caracol, que levava ao seu quarto. Seu vestido esmeralda visto a luz de tochas e velas presas nas paredes, tinha uma cor triste e sem vida, o que a fazia lembrar do que vestia com seu pai para caçar. Por mais que fosse uma lembrança triste, já que aquela não era mais sua realidade, a fez sorrir. Descia um degrau de cada vez, segurando o vestido que sabia custar mais do que tudo que já havia comprado na vida e aquilo já era um peso que a fazia arfar. Ao chegar no último degrau, virou à esquerda num dos corredores abafados. Esbarrou em um ou dois empregados e os cumprimentou, como sempre e, como sempre, não teve resposta de volta, já que ninguém tinha permissão de dirigir a palavra a ela, a não ser Úrsula, a aia, Felipo, o cozinheiro e Milord, o homem que a prendeu ali. Enquanto virava nos corredores malcheirosos e descia as escadas escorregadias, pensava pela milésima vez no porquê de estar ali. Sabia que seu pai havia se metido na pior e mais horrorosa falcatrua enquanto bebia aos baldes e trocava e perdia tudo que tinha, mas não sabia em qual momento havia perdido sua própria filha para um rei. Feries eram tratados pior do que cavalos mancos naquela região e ela nunca soube o motivo real por trás das guerras e batalhas. Eram basicamente a escória da população. Os feries existiam basicamente para o trabalho pesado, que era a instalação de barragens e construção de castelos, torres... Tudo que fosse preciso altura e força. Nessas horas, usavam coleiras de choque controlados pelos empregadores, muitas das vezes, humanos cruéis e sem bondade alguma no coração. Existiam alguns poucos humanos e magies que não tinham esse preconceito em relação a eles, mas eram raros comparados a grande população das vilas, vilarejos e povoados... A garota nunca sabia se estavam sendo corteses com ela por educação ou para conseguir algo dela, mas geralmente, era porque queriam algo. Mas, também... O que ela teria a oferecer além de mãos cascudas pelo trabalho e a altura controlada pelos choques? Não adiantava o quanto quebrasse a cabeça, não conseguia entender porque o rei queria ter uma ferie de estimação, ainda mais sendo a sua família a responsável por todo aquele ódio gratuito a sua raça. Se o homem odiava tanto os feries, os repudiava ao ponto de escravizá-los, para que ter uma dentro de seu castelo? Consumindo suas carnes, bebendo o seu vinho e usufruindo do seu luxo? Fly teve sorte enquanto era criança, pois seu pai morava em uma cabana escondida no meio de uma das florestas mais densas e perigosas do reino, o que a fez voar e viver livremente. Por pouco tempo. Seu pai contava que um dia, ele e sua mãe tiveram a chance de escapar de seu dono, enquanto outro ferie apanhava injustamente. Ele dizia não ter orgulho de ter feito o que fez, afinal poderia ter ajudado o pobre homem, mas preferiu se aproveitar da situação e tentar fugir, porque precisava pensar em sua esposa, que estava grávida de Fly, tendo complicações. Eliza poderia morrer, a não ser que ele a ajudasse a fugir. Os dois fugiram em meio a uma revolta, já que o ferie que levava a surra estava quase sendo levado a morte. Ele contava que teve que desprender o colar sozinho, tanto o dele, quanto o de sua mãe e ele fez isso a base de pedradas. Por sorte seu pai mirou bem no dispositivo e com sua quebra, puderam escapar. Voaram por dias e acharam uma clareira que mais tarde se chamaria "lar". Mas, isso não durou muito tempo. Quando ela tinha por volta de dez anos, a guarda do rei os achou enquanto corriam atrás de magies fugitivos e a partir daí sua vida foi repleta de infortúnios. Seu pai não soube lidar com o cativeiro e as condições pútridas de vida, já que viveu livre por mais de vinte e nove anos, desde que conseguiu fugir, e depois, encontrava-se preso novamente. O homem enlouqueceu e começou a apostar e beber. Primeiramente para escapar da vida que levava e depois para conseguir comida ou mais bebida sem precisar pagar por ela, já que se recusava a trabalhar, se apoiando na filha. Mais tarde, começou a ter a esperança tola de conseguir fugir mais uma vez, mas isso era apenas um delírio. Fly perdia as contas de quantas vezes tinha que ir buscar seu pai completamente bêbado nas tavernas e as brigas que teve que separar ou lutar para livrá-lo de confusão. Enquanto ele embebedava-se até cair, Fly trabalhava nas construções com apenas onze anos, tendo que experienciar sozinha o enclausuramento, os machucados de suas asas e todos os abusos. Após um ano daquela vida, se é que se pode chamar assim, ela não chorava mais, não conseguia sentir emoções de verdade e apenas sobrevivia. Trabalho, taverna, casa. Trabalho, taverna, casa. Era o que ela conhecia. — O que gostaria de café da manhã, milady? - Felipo a tirou de seus pensamentos. — O que tiver, está bom para mim. Obrigada. - respondeu completamente no automático. O homem sujo de farinha e com vestes inicialmente brancas, mas agora, amareladas, assentiu e entrou no primeiro portal. Felipo tinha olhos esmirrados, guardados por um óculos meia lua; era corpulento e exalava doçura e calma, ao contrário de seus cabelos crespos e secos presos num r**o de cavalo alto e sua pele oleosa. Só ali ela percebeu o barulho que havia a sua volta. Vozes falavam em todas as línguas e pessoas passavam para lá e para cá, inquietos. Tinha uma movimentação estranha naquele dia... Uma certa tensão no ar, como se fosse especial, de alguma forma. Mais alguns passos e se encontraria mais uma vez com Milord. Ela não queria. Sua cabeça girava e gritava para que corresse, todos os seus músculos se contraiam e suas palmas das mãos suavam. Sua boca estava seca e os músculos retorcidos. Sentia um enjoo furtivo e sabia o motivo dele. Tibério. Queria passar pela primeira porta e voar para longe, mas por mais que suas asas estivessem livres, sua coleira ainda estava atada ao seu pescoço e funcionando perfeitamente. De acordo com o rei, o respeito e liberdade que dava a ela tinha seus limites e não incluía livre arbítrio. A garota recolheu toda a força que tinha e adentrou o salão, com passos hesitantes e pernas bambas, mas tentando manter a compostura e não demonstrar o medo e o desgosto que sentia ao se aproximar do rei. Três janelas indo do teto até o chão, com cortinas pesadas cor de anis envolta, uma grande mesa de casco de árvore no meio do salão, com cadeiras estofadas envolta, várias delas. Um tapete gigante de pele de pantera-n***a embaixo, um lustre de cristais reluzindo o sol da manhã que vinha pela janela e pinturas e mais pinturas de autorretratos nas paredes. Eram tantas delas que a deixavam confusa, como se vários olhos reais estivessem em cima dela a todo momento. Mas, a realidade é que estavam de fato, já que descobrira que vários daqueles olhos eram falsos e que pessoas poderiam realmente olhar por eles. Um nó se formou em sua garganta quando estacionou sua atenção em cima do rei, que se levantou assim que a viu e fez uma reverência, como se ela fosse realeza, como ele, ou talvez, até mesmo uma dama. Seus olhos estavam ainda mais verdes por conta da claridade do salão, seus cabelos negros e bem cortados estavam sebosos e oleósos caindo em sua testa e roçando em suas bochechas, sua mandíbula era afiada e seu nariz reto. Vestia uma espécie de blusa de linho branco com babados, com alguns botões desabotoados, deixando seu peitoral e abdome a mostra, uma calça preta e simples e botas de montaria. A garota reparou o cinto reluzente que guardava sua espada, mas ela não estava lá. Milord se movimentava com rigidez e educação, como se cada movimento fosse planejado para passar a elegância que tinha sido treinado para ter. Cada passo que dava em direção a sua cadeira a fazia arfar um pouco mais. A coleira em seu pescoço parecia que apertava e mesmo depois de vinte dias com aquela rotina, não havia se acostumado em nada a ter que passar todas as refeições ao lado do homem que escravizava sua própria raça e que fez seu pai deixar a própria filha, porque em momento algum ela acreditara que seu pai tinha feito aquilo porque queria. Ele era problemático, mas a amava e jamais faria aquilo com ela. Jamais a deixaria. A trocaria, como uma mercadoria. Ele foi forçado, disso ela tinha certeza. Fly pôs a mão na cadeira e a puxou para se sentar. Viu a mesa posta, com várias frutas conhecidas e desconhecidas, pães com grãos e queijos, geleias, sucos e uma torre de doces que não sabia o nome, mas eram deliciosos e aquilo a fazia pensar em o que seu pai havia comido aquela manhã ou se havia comido algo já que ela não estava mais lá para colher frutas e trocar mercadorias na Grande Feira. — Bom dia, milady. - a voz do rei era pesada e incômoda, mas, ao mesmo tempo, arrastada e aveludada. Parecia a voz de um locutor de peças que Fly via quando era mais nova, nas praças, nas manhãs de domingo. Era a única diversão que tinha. — Bom dia. - falou entre os dentes, com um sorriso forçado. — Bom dia, o que...? - ele se sentou pesadamente e deu uma garfada em um morango, olhando-a com superioridade. Em nenhum momento ele queria que ela esquecesse quem era e o que fazia ali. — Bom dia... - ela hesitou e engasgou. - Meu rei. - sibilou, engolindo em seco. — Muito melhor! - sorriu mostrando seus dentes incrivelmente brancos. Até seus dentes traduziam seus privilégios. - Quero que se arrume para esta noite, coloque um vestido bem bonito e joias, muitas joias. - tomou um gole de seu chá.
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