Capítulo 06

2481 Words
Nicole narrando Sentamos à mesa com aquele clima morno de curiosidade no ar. Tudo ainda era novo, mas havia um aconchego ali, como se eu já tivesse almoçado com eles antes, como se aquele lar estivesse me esperando há um tempo. Dona Vera, com aquele jeitinho doce e firme, ajeitou os pratos enquanto a Sophia ainda cochilava no sofá da sala. Quando ela colocou a comida à minha frente, eu não consegui segurar o sorriso. — Minha filha, tá tudo fresquinho. É uma comida simples, mas eu espero que você goste. Hoje eu consegui até deixar tudo pronto cedo, porque como a Sophia ficou super à vontade com você, eu consegui ficar tranquila aqui — ela disse com aquele tom sincero, que aquece o peito. O prato estava impecável: arroz soltinho, feijão fumegante, salada de legumes colorida e um frango com quiabo no ponto. Cheiro de casa, de cuidado. Eu agradeci de coração, sentindo que aquele almoço era mais que uma refeição — era um sinal de aceitação. — Tá tudo perfeito, dona Vera, sério. Eu tô muito grata por esse acolhimento — falei com um sorriso verdadeiro, ajeitando minha cadeira. — E o que você recomenda pros próximos passos com a Sophia? — ela perguntou enquanto se sentava, apoiando os cotovelos na beirada da mesa. Antes de responder, meus olhos pararam no topo da mesa. Urso. Ele já estava ali, calado, com um prato que parecia uma montanha de comida. Arroz até a borda, o frango com quiabo quase escorrendo do prato, feijão transbordando. E, mesmo com a boca ocupada, o olhar dele estava em mim. Queimando. Era aquele olhar. O mesmo que ele me deu no bar. O mesmo que me despia em silêncio, como se quisesse atravessar todas as camadas que eu construí com tanto esforço. Segurei firme o garfo e mantive a postura. Eu podia tremer por dentro, mas por fora eu era profissional. Firme. Inabalável. — Bom, eu acredito que a Sophia tem um potencial motor muito bom. A gente vai trabalhar bastante com equilíbrio, estímulo sensorial e tônus de tronco. O que mais me chamou atenção foi como ela responde bem ao estímulo lúdico. Isso é ouro. A gente vai tirar muito proveito disso. Olhei de volta para Dona Vera. — Sobre a fala, vocês já têm acompanhamento fonoaudiólogo? — Já sim, uma vez por semana. Mas confesso que eu não sei se tem evoluído tanto… — Se possível, eu queria ver os relatórios da fono. Também vou pedir um parecer da clínica sobre o que já foi registrado em relação à evolução dela — falei, sacando o caderno da pasta onde anoto os dados clínicos que me passam. Urso limpou a boca com o guardanapo, ainda me encarando. A voz dele veio rouca, baixa, como sempre: — E os exames? Tu quer ver os últimos que a gente fez? — Se possível, sim — respondi, mantendo o olhar. — Já volto. — ele levantou da mesa, sem muita cerimônia, tirando o celular do bolso e sumindo corredor adentro. Foi aí que minha cabeça deu aquela girada básica. Ele não só sabia tudo. Ele acompanhava tudo. Cada detalhe. Cada termo. Cada resultado. E isso… isso me pegou desprevenida. Ele voltou com uma pasta preta nas mãos. Deixou o celular de lado e me entregou os exames como quem entrega o que tem de mais valioso. E, de fato, era. — Esse aqui é o último do coração. E esses são os de rotina, do mês passado. Eu leio tudo. Faço as perguntas, anoto o que não entendo. Faço questão de ir nas consultas. E se eu não posso, minha mãe vai comigo, ou a médica vem aqui. A Sophia não sai de casa pra qualquer lugar. E eu não boto qualquer um aqui dentro — ele falou com uma segurança crua, que não pedia aprovação. Só deixava claro o nível de importância que ele dava pra filha. — Fico impressionada… sério. Poucos pais que eu conheço têm esse nível de envolvimento. Isso faz muita diferença. — Eu não tenho opção. Desde o dia que a mãe dela sumiu, sou só eu e minha mãe nessa luta. E essa menina é tudo o que eu tenho. Então se for pra entrar na vida dela, vai ter que entrar pra valer. Se for pra cuidar, vai cuidar direito. Eu pago bem, mas não é pelo serviço. É pelo respeito. Pelo trato. Pelo amor mesmo — ele soltou, e as palavras saíram sem filtro. Fiquei em silêncio por um segundo. O peso do que ele disse caiu sobre a mesa como uma verdade inegociável. E eu vi nos olhos dele: ele não tava dizendo isso pra me impressionar. Ele tava abrindo uma parte dele que, provavelmente, poucas pessoas tem acesso, era o lado pai gritante falando por ele, o pai presente real, muito além de tudo o que eu imaginei é pré julguei sobre ele. — Eu trabalho com crianças porque… — comecei devagar, sem saber ao certo por que tava abrindo aquilo — porque eu cresci querendo mudar alguma coisa no mundo. E criança não mente. Criança sente. Criança devolve tudo o que a gente entrega. Eu não queria trabalhar pra consertar adulto. Queria ajudar a formar um novo começo. E quando eu vi que tinha talento pra isso, eu fui com tudo. Ele me olhou por um segundo como se tivesse tentando entender como alguém com tanta firmeza podia ser tão… doce. Tão entregue. Tão certa. — Tu é diferente. Não parece só trabalho pra você. — ele fala se sentando olhando um papel e desvia o olhar pra mim — Porque não é. — respondi na hora, sem pensar e sem enrolar, foi na lata, assim como a fala dele Dona Vera só observava. Sorria com os olhos. Sabia que tava acontecendo algo ali. Aquela mesa não era mais só uma refeição. E eu nem bem sabia o que era, mas sabia que sobre a Sophia eu me importava muito, assim como todos os meus pacientes. O clima na mesa tava leve, mas dentro de mim… era um turbilhão. Urso não falava nada, mas também não tirava os olhos de mim. Era um olhar quente, silencioso, que queimava mais que o sol do meio-dia em laje de zinco. Eu sentia meu corpo inteiro vibrar. E ele ali, só me encarando, como se me estudasse. Como se cada garfada que eu dava fosse motivo pra ele me observar mais ainda. Eu respirei fundo, empurrei o prato pro lado e sorri pra quebrar a tensão. — Sua comida é excelente, dona Vera. Seu tempero é maravilhoso — falei sincera, limpando a boca com o guardanapo — Não barro da minha mãe ainda porque mãe é mãe, né… mas que comidinha especial. Muito obrigada por esse carinho da senhora. Ela deu risada, satisfeita com o elogio, aquele riso leve de quem sabe o valor do que faz. — Tempero de mãe é uma coisa sem igual mesmo, né filha? Esse aí de vez em quando come na pensão, mas tá sempre atrás da comida da mamãe também. — ela disse com um tom provocativo, jogando com a verdade. Eu virei o rosto pro Urso, com um sorrisinho de canto, tom de desafio. — É… a minha mãe trabalha na pensão. — falei com ela, mas olhando direto pra ele. — A comida dela é realmente muito boa, né? Urso me olhou firme. E eu vi nos olhos dele que entendeu o recado. Eu não ia fingir que aquelas olhadas e todas as situações das últimas horas não aconteceram, eu não sou mulher disso… A dona Vera nem percebeu a tensão que a gente criava em silêncio. — Ai, que legal! Você mora aqui na favela? — ela perguntou empolgada. — Ai, eu pedi tanto que fosse uma menina daqui de perto, e eles conseguiram. Nossa, que beleza! Você mora onde? — Viela seis, ali atrás do campinho. — respondi, sorrindo. — Nascida e criada. Ela arregalou os olhos, batendo a mão na mesa. — O quê?! E eu nunca te vi? Menina, tô revoltada de não ter te achado antes! Rimos juntas, e o Urso seguia calado. Mas cada risada minha arrancava dele um olhar diferente. Ele absorvia tudo. Sentia tudo. Foi só a Sophia resmungar na sala que ele levantou na mesma hora, como se tivesse um radar nela. Saiu da mesa num impulso e logo voltou com ela no colo, toda agarrada, o rosto enterrado no pescoço dele, o coelhinho apertado na mãozinha. E que cena, meu Deus. Que cena. Ver ele ali, dentro de casa, sem arma, sem postura de dono de morro, só com a filha nos braços… foi de desmontar qualquer mulher. A Sophia tão pequena, e ele tão grande. E mesmo assim, parecia que era ela que carregava ele nos braços, do jeito que ele a segurava com todo o cuidado do mundo. A dona Vera voltou a falar, e eu me forcei a sair daquele transe. — Minha filha, então podemos deixar esse horário mesmo? É o seu primeiro horário da manhã? — Podemos sim! — respondi animada. — Amanhã nesse mesmo horário eu tô aqui. — Ai, eu tô tão feliz que você é daqui… — ela continuou, com aquele jeitinho doce de quem já me considerava da casa — Podemos até fazer umas atividades no morro com ela, né? Na pracinha. Porque assim você não vai ter medo de andar aqui na favela, nem nada disso, né? — Podemos sim! — concordei com empolgação — Vocês autorizando e acompanhando, dá pra fazer várias atividades, sim. Inclusive umas que ajudam muito na fala, como jogo de cores, movimentos associativos… vai ajudar muito. Ela olhou pro filho. — Você autoriza, né, meu filho? Ela é daqui da favela, ela é cria daqui. E fora que nós temos várias seguranças, nada aconteceria conosco. Urso não respondeu. Só encarou a filha com aquele olhar de quem protege até da sombra. A mão dele afagando os cachinhos dela, e o olhar distante, calculando riscos, medos, e talvez um pouco de confiança, ainda em formação. E aí eu entendi. O maior desafio não seria a Sophia. Ia ser o Urso. — Bom, dona Vera, muito obrigada pela acolhida, viu? Qualquer coisa, a senhora tem meu número. Só me ligar, me mandar mensagem. O que precisar, tô à disposição. Agora eu vou pros próximos atendimentos do dia… hoje tá puxado. — falei de forma leve, me levantando da mesa. Ela protestou quando fui lavar meu prato, mas fiz questão. Lavei, sequei, guardei. Fui me despedir da pequena. — Soso… — falei baixinho, passando a mão nas costas dela enquanto ainda estava no colo do pai. — A tia já vai, tá? Até amanhã. — Não tia… — ela começou a chorar, manhosa. A sua fala não acompanha o que “deveria” da sua idade, mas isso podemos ajustar, conversar com a fono, por isso quero ver todo o quadro de desempenho dela — Posso pegá-la? — perguntei ao Urso, que estendeu ela pra mim sem dizer uma palavra. A peguei no colo e ela se agarrou no meu pescoço. — Amanhã a tia vem pra brincar com você. Nós vamos fazer vários jogos novos… com cores, com bola, com formatos. Vai ser muito legal. Tá bom? — Você promete, tia? — ela perguntou com aquela voz de criança, a fala enrolada, que desmonta o mais frio dos homens. — A tia promete. De dedinho. — estendi meu mindinho pra ela, e a gente selou o pacto. Fiquei impressionada com a desenvoltura dela, o foco, a resposta aos comandos. O potencial era absurdo. Entreguei ela de volta pro pai, agora mais calma. — Tenham um bom dia. Até amanhã. — falei com um sorriso gentil. — Cuidado na rua, doutora. Qualquer coisa, só acionar. — ele disse com aquele tom baixo e carregado de malícia. — Até amanhã. Quando fui passar por ele, senti a mão dele encostar no meu braço. Foi leve. Mas foi como se o corpo inteiro respondesse ao toque. — Até amanhã, Urso. Ficamos ali, parados, nos olhando. Sem palavras. O tempo suspenso entre um olhar e outro. E eu com o coração disparado, o ar preso no peito. Me despedi da dona Vera com mais um sorriso e fui pro carro. Entrei, respirei fundo. Liguei o motor com os dedos tremendo. E quando olhei pelo retrovisor… lá estava ele. Com toda a sua marra, na porta da sua casa, com o baseado entre os dedos, ele leva até a boca e sopra me encarando, aquele ar de quem sabe que é gostoso, mas só isso não me impressiona… Mesmo que eu confesse que tudo o que vi hoje da sua parte tenha sido impressionante, mas… Ele percebe que ainda estou parada ali, e o meu corpo ainda não havia parado de tremer, então, ele dá um sorriso de lado, malandro, uma piscadinha e foi ali que eu voltei pro mundo real. Liguei o carro e desci a favela acelerando. O dia foi intenso. Seis crianças, uma correria, e um curso de pós-graduação no fim do dia, inventei isso essa semana e já estou quase me arrependendo. Mas é a área que eu amo, minhas amadas crianças, e o caso da Sophia só meu deu mais empolgação para essa pós. Cheguei na favela já passava das nove da noite. Cansada, morta. Só queria minha cama. Passei pela barreira e ouvi os vapores no radinho cochichando, mas não liguei, apesar de ter estranhado. Passei pela boca principal e lá estava ele. Urso. Braços cruzados. Cara fechada. Encarando o meu carro como se eu tivesse feito algo. Nem sei o que foi. Mas nem dei papo. Segui. Tomei um banho longo assim que cheguei em casa. Água gelada pra apagar o fogo que esse homem acende em mim sem esforço. Enrolei a toalha no corpo e fui direto no celular. Queria mandar mensagem pra minha mãe, ver onde essa doida tava. Mas tinha uma notificação nova. Número desconhecido. Sem nome, sem foto, sem nada. Mensagem única: “Demorou a chegar hoje, doutora…” Meu coração travou. Eu já sabia de quem era. E agora, sabia também, que ele não ia sair da minha vida tão fácil assim, e meu corpo voltou a ficar em chamas me obrigando a partir para os meus recursos, porque eu implorava por um alívio Deitei na cama, não respondi sua mensagem, mas li novamente e ficava lembrando do seu olhar e imaginando ele falando comigo. E o meu vibrador ficou encarregado de tirar toda aquela tensão do meu corpo, que nem todos os banhos do mundo seriam capazes de tirar… “Boa noite, doutora! Até amanhã, Sophia está ansiosa pra te ver…” — merda, esse homem não pode ser de Deus não…— eu esbravejo quando g**o loucamente imaginando a sua voz grossa no pé do meu ouvido
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