capítulo 5

991 Words
NARRADO POR LEONARDO VERANO (continuação) Ana Clara sai. A porta fecha com aquele “clique” abafado que, naquela hora, soa mais alto do que sirene em madrugada vazia. O silêncio fica. Eu levanto da cadeira devagar. Solto o ar. Desligo o projetor com um toque seco. A parede volta a ser só parede — sem promessas, sem PowerPoint, sem p***a nenhuma. Volto pra minha sala. Fecho a porta. Sento na frente do monitor. O e-mail continua lá, como se tivesse segurando a respiração, igual eu. Respiro fundo. Um, dois, três segundos. Clico. Assunto: Olha, só me contrata logo antes que eu desista da humanidade De: marina.alves.design@gmail.com Para: leonardo.verano@grupoverano.com O que aparece a seguir... É um tapa. Não. É um chute com salto agulha, cravejado de sarcasmo, tequila e glitter. Meus olhos correm por cada linha. Lentos. Atentos. Como se tivessem encontrado um idioma novo, mas deliciosamente fluente. > Oiiiii, tudo bão? A sobrancelha arqueia. > Aqui é Marina. Marinaaaaa. (Com M de maravilhosa, tá?) Reviro os olhos. Mas... continuo. > Eu fui demitida hoje. Mas eu tô bem. Tô linda. Inclusive tô aqui no Bar do Léo tomando uma bebida que brilha mais que funcionário puxando saco. Nesse ponto... eu rio. De verdade. Um riso curto, contido — mas real. Não lembro a última vez que isso aconteceu. > Então assim ó: se você for uma empresa decente (com café bom e sem chefe p*u pequeno), me contrata. Ou me beija. Tanto faz. Só não me ignora que eu choro fácil. Minha mão vai ao queixo. Beija? Eu? Que p***a é essa? > Anexei meu currículo, mas também posso mandar nudes (mentira, mãe, se tu tiver lendo isso é piada). Eu engasgo com a própria saliva. Essa mulher é uma ameaça pública com Wi-Fi. > Tenho criatividade, experiência e um TDAH bem treinado pra dar ideias no meio da reunião e sair voando atrás de passarinho. > PS: Eu odeio blazer. Mas se for pra trabalhar aí, eu uso. Um. Vez. Só. > PS2: Tequila é vida. > PS3: Tô escrevendo isso com glitter no dente. Paro. Leio de novo. E de novo. Não porque não entendi. Mas porque faz tempo que algo me impacta com esse tipo de força. Bruta. Inesperada. Caótica. Criativa. Tem coisa ali. Muito além do glitter. Muito além da bebedeira. Tem autenticidade. Coragem. Uma mente que explode feito confete no meio do tédio corporativo. E, no meio da minha rigidez cirúrgica, isso é um raio. Dou zoom no currículo. Designer. Vários projetos premiados. Estágios fodas. Campanhas independentes com conceito, coração e resultado. Tem uma linha sobre um app de saúde mental que ela ajudou a criar, e outra sobre uma exposição de arte urbana feita com lixo reciclado. “Designer profissional e barraqueira de elite.” Ela escreveu isso com todas as letras. E eu, que abomino informalidade, não consigo achar r**m. Consigo achar... brilhante. Literalmente. Meu dedo paira sobre o botão “Responder”. Penso. Muita coisa. Mas no fim... Digito. > Para: marina.alves.design@gmail.com Assunto: Re: Olha, só me contrata logo antes que eu desista da humanidade Marina, Confesso: seu e-mail quase me matou. De susto. De riso. De incômodo bom. Porque faz tempo — muito tempo — que ninguém me tira da programação. E você conseguiu. Vamos conversar. Quero entender de onde vem essa mente caótica que brilha mais do que muitos PowerPoints estéreis que eu assisti hoje. Te espero amanhã, 10h, na sede da Verano. Ana Clara vai entrar em contato com os detalhes. P.S.: Não precisa vir de blazer. P.S.2: Pode trazer o glitter. Só não traga tequila. Ainda é horário comercial. — L.V. Enviei. E fiquei olhando pra tela como se tivesse assinado um contrato com a insanidade. Talvez tenha. Mas pela primeira vez em anos... não me parece uma má ideia. A campainha da sala toca. Ana Clara entra com o café. — “Com açúcar. Como pediu.” Pego a xícara. Tomo um gole. É doce. Incomum. Mas... agradável. Ela percebe algo diferente no meu rosto. — “Tudo certo, senhor Verano?” — “Depende do ponto de vista.” Ela não insiste. Só sorri de canto e sai. A porta fecha. E eu... Eu volto. Sim. Volto praquele e-mail como quem revisita a cena de um crime. Só que, nesse caso, o crime foi ter me feito rir antes das nove da manhã. Rolo a tela pra cima. Leio de novo. > "Inclusive tô aqui no Bar do Léo tomando uma bebida que brilha mais que funcionário puxando saco." Sorrio. De novo. Essa mulher é uma faísca num galão de tédio. Desço mais um pouco. E lá está... > "Se você for uma empresa decente (com café bom e sem chefe p*u pequeno), me contrata. Ou me beija." Eu paro. Leio em voz baixa. — “Chefe p*u pequeno...” Balanço a cabeça. Solto uma risada abafada pelo punho. Que p***a é essa, Verano? Tô mesmo achando graça disso? Tô. Infelizmente... ou felizmente... tô. O mais absurdo? É que essa frase soaria vulgar na boca de qualquer outro candidato. Mas nela? Vira manifesto. É deboche com veneno. Sinceridade com glitter. E um tapa na cara de tudo que essa empresa se tornou. Eu olho pra tela de novo. A luz azul do monitor reflete nos meus olhos — mas não consegue esconder o leve... o quase imperceptível... brilho no canto da boca. O sorriso de alguém que, finalmente, não tá entediado. Encosto na cadeira. Cruzo os braços. E penso: Se isso é loucura... talvez seja a melhor entrevista de emprego que eu nunca marquei. O celular vibra. É uma notificação do sistema interno da Verano. Assunto: RH atualiza lista de candidatos para a vaga de Direção Criativa. Eu deleto. Sem abrir. Porque eu já escolhi quem eu quero ver sentada naquela cadeira. Mesmo que ela tenha mandado um currículo bêbada. Mesmo que venha com TDAH, sarcasmo e glitter entre os dentes. Aliás... principalmente por isso.
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