capítulo 1 Marina

1427 Words
📚 CAPÍTULO 1 Narrado por Marina Alves. Antes do batom vermelho. Antes do salto alto. Antes do deboche. Existiu uma menina. E ela era só silêncio tentando caber no mundo. Minha primeira lembrança de “ser demais” veio num domingo à tarde, no sofá da minha avó. Eu tinha sete anos, cabelo armado, coxa grossa e um vestido rosa que me apertava nas costelas. A novela passava na TV e eu ria de alguma piada boba. Minha risada era alta. Livre. Daquelas que fazem o peito sacudir junto. Foi aí que a voz da minha tia cortou o ar como faca de cozinha: — “Menina, fecha essa boca! Gorda já chama atenção demais.” Eu congelei. Minha avó não disse nada. Só olhou pra TV como se não tivesse ouvido. E eu aprendi. Aprendi que alegria demais era pecado quando vinha de um corpo grande. E que meu lugar era no canto. Rindo baixo. Se é que podia rir. Na escola, o recreio era uma guerra velada. Tinha o grupinho das meninas magras que comiam Club Social com Coca Light. E tinha eu, que levava pão com ovo e um Yakult que minha mãe comprava fiado na venda da esquina. Ninguém me batia. Mas também ninguém me escolhia. Fui a última da fila na aula de dança. A primeira a ser zoada quando a professora disse “dupla”. A piada sempre vinha: — “Se for dançar com a Marina, traz colete salva-vidas.” Doeu. Mas eu ria junto. Porque era isso ou chorar — e eu aprendi cedo que menina gorda chorando só reforça o estereótipo. Com nove anos, minha mãe me levou num médico. Ele olhou meu corpo como se eu fosse um problema a ser resolvido. — “Ela tem tendência, tem que cortar doce, pão, fritura… Tudo.” Eu não entendi o que era “tendência”. Só entendi que, a partir daquele dia, meu lanche virou salada com peito de frango. E meu armário perdeu o brilho. Roupas largas, escuras, “discretas”. “Pra disfarçar”, diziam. Mas o que eu precisava esconder era o quê, exatamente? Meu corpo ou a vergonha que vocês sentem dele? Aos doze, me apaixonei pela primeira vez. O nome dele era Mateus. Ele tinha covinhas e jogava futebol. Escrevi uma carta. Deixei na mochila dele. No dia seguinte, encontrei minha declaração colada no mural da sala com um bilhete embaixo: “Alguém avisa a gorda que balança a sala quando anda que ele não curte presunto.” Me tranquei no banheiro. Não chorei. Só encarei meu reflexo até não me reconhecer. Jurei que ia mudar. Fiz promessa. Anotei meta no caderno: “Perder 15kg antes dos 15 anos.” Comecei a contar calorias antes mesmo de entender como calcular juros. Fui a única da minha idade que sabia o valor calórico de uma maçã com casca. Meu recreio virou sessão de auto-tortura mental. A adolescência passou como um inverno longo demais. Roupa preta. Dieta. Silêncio. E um sorriso ensaiado que eu usava como escudo. Mas a verdade? No fundo, eu gritava. Não com a boca. Mas com os olhos. Com o jeito que eu me encolhia no canto da sala. Com os desenhos que fazia escondida. Com a vontade de amar o mundo, mesmo quando o mundo fazia questão de me lembrar que eu era “errada”. Até que, um dia, com dezessete, numa dessas madrugadas em que a solidão pesa mais que o cobertor… Eu escrevi. Não uma redação. Nem um diário. Escrevi um e-mail pra mim mesma. Assunto: “E se você parasse de se odiar por um minuto?” Corpo do texto: “Talvez não seja você que está errada. Talvez seja o espelho. Talvez seja o mundo.” E foi aí que começou a virada. Devagar. Lenta. Mas constante. Uma faísca que não apagou mais. O deboche nasceu como defesa. A autoestima, como vingança. E o salto? Ah, o salto... foi meu grito de guerra. Você deve estar se perguntando de onde eu vim, né? Pois bem. Filha de Cláudia Alves, a rainha do improviso com diploma de cabeleireira e doutorado em virar o mês sem salário fixo. E de Carlos Roberto, vulgo Carlinhos — um romântico fracassado com voz bonita e talento zero pra fidelidade. Minha mãe me teve com vinte e dois, depois de uma paixão relâmpago que virou tempestade antes mesmo do meu umbigo cair. Carlinhos pulou fora quando eu ainda usava fralda — apareceu de vez em quando, trazendo boneca de camelô e promessa furada. Mas presença mesmo? Só da ausência dele. Cláudia me criou sozinha. No grito. No corre. Mulher forte, mas cansada. Não era do tipo que dava abraço. Era mais “engole o choro e segura o forninho”. Ela me amava? Amava. Mas do jeito dela: mandando lavar a louça como quem diz “cuida de você porque ninguém mais vai cuidar”. A gente morava num apê pequeno com azulejo lascado e um sofá-cama que rangia mais do que descansava. Minha infância foi dividida entre o cheiro de creme de hidratação no salão da minha mãe e o som da TV de tubo que insistia em passar novela. Nunca faltou comida. Mas também nunca sobrou leveza. E aí, cresci assim: com a alma pesada de tanto tentar ser leve. Mas, aos poucos, fui sacando: Que eu não ia ser a filha perfeita. Nem a aluna perfeita. Nem a mulher que todo mundo esperava que eu fosse. E quer saber? Foda-se. Porque quando eu me cansei de tentar caber... eu comecei a existir. Hoje, quando me perguntam “quem é você, Marina Alves?”, eu sorrio de canto e deixo vir. Porque eu já decorei a resposta: > — “Sou designer de formação, debocheira por vocação e gordinha com orgulho. Tenho trinta anos, um humor ácido, um armário com mais vestidos floridos do que juízo, e uma língua afiada que corta mais que planilha de Excel. Já fui rejeitada em entrevista, humilhada em reunião, e ignorada por cliente que só falava com gente magra. Mas sabe o que nunca deixei? De ser eu. Porque eu não vim ao mundo pra agradar. Vim pra criar, rir alto e fazer chefe babar no café da manhã.” Geralmente a pessoa sorri. Às vezes sorri nervoso. Mas sempre presta atenção. Porque eu não sou fácil. Sou presença. E presença incomoda quem só tá acostumado com silêncio. Ah, antes que eu me despeça desse capítulo de origens, deixa eu te contar de mim com todas as curvas, dobras e tatuagens que me pertencem — com carinho, com deboche, e com orgulho. Eu sou assim: Coxa grossa que assa no verão, mas sustenta meu mundo nas costas. Braço tatuado, com borboleta, flor, cicatriz e resistência. Bunda que entra depois de mim nos lugares e, às vezes, até antes. Peito farto — que já foi motivo de piada e hoje é motivo de t***o (meu, inclusive). Barriga que não é tanquinho, mas já lavou muita vergonha alheia alheia e aceitou abraços sinceros. Celulite? Claro que sim, com mapa completo — é só seguir o relevo até onde o padrão se perde. Estria? Um monte. Assinatura da vida escrevendo “você cresceu” na pele da menina que um dia quis desaparecer. Meu corpo não é desculpa. É palco. É território. É meu. Já quis esconder. Hoje, eu exibo. Com lingerie vermelha num domingo. Com vestido colado numa quarta. Com short curto no elevador da firma. E quem se incomoda? Bom... Pode desviar o olhar ou pagar a terapia, porque eu não vou mudar por causa de ninguém. Aliás, deixa eu repetir pra quem ainda não entendeu: > — “Eu não sou antes e depois de dieta nenhuma. Sou durante. Durante a revolução de me amar. Durante o processo de aceitar cada dobra, cada marca, cada exagero que me ensinaram a odiar. Sou durante o amor-próprio. Durante o deboche. Durante o prazer.” Então anota aí, chefe, crush, hater ou curioso: O corpo da Marina Alves não cabe em planilha, nem em feed organizado. Ele cabe em roupa que abraça, em olhar que deseja, e em sonho que não aceita redução. Porque eu não nasci pra ser magra. Nasci pra ser intensa. E se pra você isso é demais… … é porque você ainda não tá pronto pra me aguentar inteira. Agora sim. Pode virar a página. Mas vem com cuidado. Porque a próxima cena já começa com beijo, caos ou demissão. Às vezes tudo junto.
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