📚 CAPÍTULO 2
Narrado por Marina Alves
Porque nem toda revolução começa com um grito. Às vezes, começa com um café frio e um sorrisinho cínico na recepção.
Segunda-feira.
Acordei com o cu virado pro céu e o cabelo grudado no travesseiro igual selo de cobrança.
Não por drama.
É que meu despertador tocou três vezes, e eu ignorei nas três.
Clássico.
Na cozinha, minha mãe já tava batendo cuscuz e cantando Alcione como se tivesse vencido na vida.
Ela me olhou de canto.
— “Vai de calça preta de novo, Marina? Parece que só tem essa.”
— “É porque calça preta disfarça duas coisas: gordura e ódio.”
Ela riu.
Eu bebi o café frio que sobrou na garrafa.
Pedi carona mental pra Deus e fui.
Cheguei na agência às 9h01. Um minuto de atraso = olhares atravessados e silêncio ensaiado.
No elevador, já tava aquela loira do marketing tirando selfie com cara de quem toma detox de manhã e julga quem come pão.
— “Bom dia!” — ela disse, exageradamente doce.
— “Pra quem?” — respondi, sem fingimento. — “Pro mundo capitalista ou pro micro-ondas que vai explodir minha marmita?”
Ela riu, sem graça. O elevador subiu. Minha paciência desceu.
Na minha baia, sentei e liguei o computador.
O wallpaper ainda era uma frase que salvei numa fase zen, mas que hoje me irritava:
“A gratidão transforma.”
Transforma o c*****o.
Eu era grata por não ter socado ninguém ainda.
Vítor, meu chefe, apareceu com a camisa pra dentro da calça e o ego inflado como sempre.
— “Marina, lembra da apresentação de logo que a gente combinou?” — ele disse, colocando a mão no encosto da minha cadeira, tipo gerente de banco que acha que manda em tudo.
— “Lembro sim. Inclusive lembro que você disse que queria algo clean, sofisticado e com uma ‘vibe mais leve’… ou seja, chato.”
— “Você é muito espirituosa, Marina.”
— “Melhor que ser muito redundante. Como o briefing que você mandou com três palavras iguais.”
Ele fingiu rir. Eu nem fingi.
Durante a manhã, fiz quatro layouts, corrigi dois erros que não eram meus, e ainda dei pitaco num post da social media que tava mais sem graça que dieta em churrasco.
Às 11h30, fui pra copa.
Minha marmita era arroz, frango e coragem.
Enquanto esquentava, a galera do RH entrou, rindo baixo.
— “Menina, você viu a vaga nova? Querem alguém com perfil moderno.”
— “Ah, então exclui gente que tem alma.” — soltei, sentando na mesa.
Ninguém respondeu. Mas o climão serviu mais que o café.
De tarde, reunião com cliente.
Vítor apresentou uma ideia minha como se fosse dele.
De novo.
Eu?
Cruzei as pernas, fiz anotações no caderno e escrevi em letras garrafais:
"NA PRÓXIMA, BOTA UM ESPELHO NA SALA E FINGE QUE TÁ CRIANDO."
No fim do dia, passei na recepção.
A moça do financeiro comentou:
— “Marina, seu batom tá borrado.”
— “É que eu comi um drama no almoço.”
Cheguei em casa exausta.
Tirei o sutiã com a mesma alegria de quem se livra de dívida.
Sentei no sofá com minha mãe.
Ela perguntou:
— “Hoje foi r**m?”
— “Hoje foi igual.”
E a verdade?
Era mesmo.
Igual a ontem.
Igual ao antes de ontem.
Igual a todos os dias em que o mundo tenta me caber numa caixinha 36.
Mas por enquanto, eu aguentava.
Com deboche, com sarcasmo, com o olho virando por dentro.
Porque às vezes, sobreviver já é uma forma de revolução.
E eu sobrevivia.
Com batom vermelho, tênis surrado, e uma língua mais afiada que tesoura de cabeleireira velha.
A revolução?
Ah, ela vem.
Mas antes… tem boleto.
(...)
Uma semana depois da calça preta número quarenta e um, da marmita de frango número trinta e seis, e do “bom dia” passivo-agressivo número infinito, recebo o chamado:
“Marina, reunião na sala 2 com Vítor. Urgente.”
“Urgente” na boca do Vítor já devia vir com alerta de gatilho.
Bati a porta da sala e entrei.
Ele tava lá, com aquela cara de quem acha que é chefe só porque aprendeu a usar o Google Agenda.
— “Senta, Marina. Precisamos conversar.”
— “Claro. Mas aviso logo que meu tempo é precioso e minha tolerância tá em fase terminal.”
Ele ignorou. Lógico.
— “Tem circulado entre a equipe que seu comportamento tem sido… fora do esperado.”
— “Esperado por quem? Pelo IBGE da magreza? Ou pelo sindicato dos chefes que não sabem lidar com mulher que fala o que pensa?”
Ele respirou fundo.
Já sabia que vinha bomba.
— “Marina, você tem talento, ninguém discute. Mas… seu estilo… seu jeito… isso causa desconforto.”
— “Ahhhh.” — levantei o dedo, didática. — “Quer dizer: o problema é que eu sou gorda, falo alto, uso batom vermelho e me recuso a ser invisível.”
— “Não é isso…”
— “Claro que é. Vocês querem diversidade, mas só na foto do LinkedIn. Quando aparece alguém como eu, que não cabe no molde, o sistema entra em pânico.”
— “Marina…”
— “Me escuta aqui, Vítor. Eu sou boa no que faço. E não sou ‘boa apesar de ser gorda’, sou boa e gorda, com orgulho. Eu sou criativa, rápida, ácida, e se a tua equipe se sente intimidada por uma b***a grande e um cérebro maior ainda… talvez o problema não seja meu.”
Silêncio.
Longo.
Tenso.
Com gosto de demissão precoce no ar.
Ele ajeitou a gravata que ninguém pediu pra ele usar.
— “Marina… isso é insustentável. Você não se encaixa na cultura da empresa.”
— “A cultura da empresa é o quê? Rivotril no café e ego no briefing?”
Vítor respirou fundo. Apertou a mandíbula.
Claramente ensaiando a frase que ele devia guardar só pra quando estivesse diante do espelho pelado, se encarando e se perguntando por que ninguém o ama.
Mas ele soltou.
— “Marina, você está demitida.”
Pausa.
Respiração.
Eu pisquei. Uma vez.
Pisquei de novo.
E aí...
Eu comecei a rir.
Sério. Do nada. Gargalhada mesmo. Daquelas que saem da barriga e batem no teto da sala.
A cara do Vítor foi um poema.
Confusão. Medo. Pavor.
Aquele tipo de expressão que só aparece quando o chefe percebe que perdeu o controle da situação.
— “Tá rindo de quê?” — ele perguntou, desconfiado.
— “De você, Vítor. De mim. Da vida. Da minha mãe que vai dizer ‘eu te avisei’.
E principalmente… do fato de que você tá me demitindo como se fosse me punir. Mas, na real?
Você tá me libertando, meu amor.”
Vítor arregalou os olhos como se eu tivesse acabado de tirar uma calcinha da bolsa e começar um número musical.
E aí ele mandou:
— “Você é louca?”
Eu abri os braços.
— “Louca? Não, querido. Louca é essa empresa que contrata gente brilhante e depois surta quando ela brilha. Eu sou lúcida. E gorda. E debochada. E agora… desempregada. Mas ó: em paz.”
Ele tava em pânico. Literalmente.
Começou a mexer nos papéis da mesa como se a folha A4 fosse emitir um laudo dizendo “calma, Vítor, ela vai embora logo”.
— “Você tá levando isso na brincadeira, Marina.”
— “Não, Vítor. Tô levando isso como um livramento.
Cê já viu o ar-condicionado dessa sala? Gelado. Frio. Sem alma.
Perfeito pra conservar seu coração congelado e as ideias da equipe que parou no briefing de 2012.”
Peguei a caneca dele — sim, a dele, escrito “Mindset de Sucesso” — e dei uma fungada teatral.
— “Nossa. Até o café é insuportável.”
— “Devolve isso, Marina.”
— “Claro. Mas antes vou deixar minha boca marcada aqui.
Pra quando você sentir saudade de uma funcionária que sabia fazer o trabalho e o escândalo.”
Deixei o batom carimbado na caneca com mais firmeza que assinatura de demissão.
— “Você... você tá me desrespeitando!”
— “Ah, desculpa. Achei que o desrespeito começou quando você apresentou meu projeto como se fosse seu e ainda teve a cara de p*u de dizer que eu ‘não me encaixo’.”
Ele ficou vermelho. Roubado entre a raiva e a vergonha.
E aí eu soltei:
— “Você tá sem entender, né?”
— “Tô completamente perdido.”
— “Normal. Macho acostumado a dar ordem geralmente surta quando encontra mulher que não se ajoelha — nem metaforicamente, nem literalmente. E eu, meu amor, só abaixo pra amarrar o cadarço do meu All Star.”
Peguei minha marmita, que eu tinha deixado no canto da sala (prioridades, né?).
— “Inclusive, tô levando isso aqui. Arroz, frango e coragem.
A base da minha dieta e da minha dignidade.”
Peguei minha marmita, joguei a bolsa no ombro, e me virei de novo pra ele. Mas antes de sair, eu precisava entregar o presente final.
— “E ah, Vítor…”
Ele levantou o rosto, ainda com aquela expressão de ‘meu Deus, ela vai embora mesmo?’
— “Já que agora tô oficialmente fora da empresa, posso te contar um segredinho que circula no cafezinho, no grupo paralelo do zap e até no banheiro feminino?”
Ele congelou.
— “É sobre mim?”
— Sim, amor. É sobre você. E seu… equipamento de fábrica.”
— “O quê?”
— “É que rola um boato — veja bem, boato, tá? — que você tem o p***o mais tímido do departamento. Um verdadeiro microempreendedor individual.”
O homem empalideceu.
— “E dizem que é por isso que você tenta compensar sendo chefe mandão. Mas fica tranquilo… não funcionou.”
— “Marina, por favor…”
— “Relaxa, Vítor. Ninguém liga pro tamanho. O problema é quando o cara tem p*u pequeno, autoestima gigante e ainda rouba ideia dos outros. Aí, meu bem… junta tudo e vira o quê? Um chefe escroto com síndrome de PowerPoint.”
Ele começou a gaguejar. Sério.
— “I-isso é assédio…”
— “Ah não, amor. Assédio é o que vocês fazem quando pedem pra gente ‘melhorar o comportamento’ mas continuam promovendo macho que não sabe nem salvar arquivo em PDF.”
Fiz menção de sair. Mas ainda não tinha acabado.
— “E só pra garantir: se um dia escreverem um livro sobre chefes que ninguém respeita, prometo botar você no prefácio. Com a fonte bem pequena, claro. Pra combinar.”
Apertei a maçaneta. Virei. Olhei nos olhos dele.
— “Adeus, Vítor. E lembra: quem tem medo de mulher de calça preta e opinião, nunca vai ter coragem de liderar nada além de reunião inútil.”
Saí.
Com o batom intacto, a marmita na mão e a b***a balançando com a leveza de quem chutou as algemas do sistema e ainda fez piada.
No corredor, passei pela loira do marketing.
— “Marina? Você foi demitida?”
— “Fui, linda. Mas ó, fui demitida com classe, barraco e batom. O combo que toda mulher de verdade devia ter no currículo.”
E segui.
Rindo.
Livre.
E já pensando na legenda do post:
"Me demitiram. E eu agradeci com deboche, vingança verbal e uma caneca carimbada. #FuiMasFuiLinda"