Mago narrando
Tem coisa que o tempo não apaga.
O dia que meu pai morreu é uma delas.
Eu lembro de tudo. Do cheiro de pólvora, da fumaça no ar, da correria dos caras tentando conter o fogo cruzado. O céu estava pesado, o morro em silêncio, e eu parado, com treze anos, vendo o homem mais respeitado daquela quebrada cair no chão.
Meu pai não era qualquer um.
Era o chefe da facção, o homem que mantinha o equilíbrio das comunidades. Onde o Chefe era calma e estratégia, meu pai ele era o impulso e lealdade.
Os dois cresceram juntos, lutaram juntos, tomaram morros juntos. Eram irmãos de alma, mais do que qualquer sangue poderia ser.
E eu cresci vendo isso.
Ver o respeito que o povo tinha pelos dois era como assistir um reino debaixo do sol, um mandava, o outro fazia valer.
Mas o poder sempre atrai inveja, e foi a inveja que matou o meu pai.
Naquela noite, uma emboscada armada por dentro. Gente que dizia ser aliada. Gente que sorria na frente e apunhalava por trás.
Eu lembro do grito de um dos seguranças, do barulho dos tiros e da minha mãe tentando me empurrar pra dentro de casa.
Quando consegui correr até ele, já era tarde.
O Chefe tava ajoelhado do lado do corpo, com as mãos sujas de sangue, olhando pro vazio.
E foi ali que eu entendi que o mundo que eu conhecia tinha acabado. Era como se uma parte minha tivesse ido junto com ele.
Mas o Chefe não deixou o vazio me engolir.
Ele me pegou pelo braço, me levantou e disse:
— Teu pai foi o melhor homem que eu tive do meu lado. Agora é tua vez de provar que o sangue dele não corre em vão.
Eu nunca esqueci dessas palavras.
Nos dias que se seguiram, o morro virou um campo de guerra.
O Chefe limpou o território com as próprias mãos. Nenhum traidor ficou vivo.
E quando a poeira baixou, ele me chamou pra boca e disse que a partir dali eu ia aprender tudo o que ele sabia sobre a facção, porque quando eu tivesse idade o suficiente eu iria assumir o lugar do meu pai.
E foi o que ele fez.
Me ensinou tudo.
A negociar, a ouvir, a não me apressar.
A entender que poder sem sabedoria vira desgraça.
Eu cresci vendo ele transformar caos em comando, e aprendi que quem grita demais é porque não tem moral.
Ele me moldou no silêncio, como um pai molda o filho para carregar o legado.
E eu carreguei.
Anos se passaram, e o nome Mago nasceu do respeito.
Foi o Chefe quem me deu esse vulgo. Disse que eu fazia as coisas acontecerem sem precisar mostrar as cartas.
Eu não falava muito, só observava, e quando agia, resolvia.
Quando ele me apresentou pra tropa como chefe da facção, teve muito n**o que torceu o nariz. Muitos achavam que eu era novo demais, que não tinha peso.
Mas o Chefe olhou pra todos e disse:
— Esse moleque tem o sangue do meu irmão e o cérebro que eu nunca tive. Quem for contra ele, tá contra mim.
E foi assim que o respeito se firmou.
Depois disso, achei que as paradas ficariam mais fáceis, mas tem sempre um filho da pu.ta querendo seu lugar. E eu precisei provar que apesar da pouca idade, eu não era pouca bosta e quem tentasse bater de frente, ia voltar de ré dentro de um saco preto.
Traições, polícia, emboscada… o mesmo filme de sempre.
Mas o que eles esqueceram é que eu aprendi com o melhor.
Cada movimento que eu faço hoje é reflexo do que o Chefe me ensinou.
Se não fosse por ele, talvez hoje eu fosse só mais um nome esquecido num muro pichado.
O Chefe foi o pai que a vida me deixou depois que o destino arrancou o outro.
E por isso, eu devo a ele tudo.
Tem uma coisa que ele me dizia e que nunca saiu da minha cabeça:
— O poder é igual fogo. Se tu não souber cuidar, ele queima até quem acendeu.
E é verdade.
Eu vi isso acontecer.
Vi homens se perder por querer mandar mais do que podia, por esquecer que o morro tem dono e que respeito é a única moeda que vale.
Mas o Chefe... ele sempre foi diferente.
Ele tem visão.
Ele podia mandar em tudo, mas o que o movia não era o poder, era a família.
Principalmente ela.
A filha dele.
A menina que ninguém nunca viu direito, mas que todo mundo já ouviu falar.
Eu cresci escutando histórias dela como se fosse lenda.
Ele falava com um brilho no olhar, como quem lembra de um tempo que o crime ainda não tinha engolido tudo.
— Minha menina é meu coração fora do corpo. — ele dizia. — Tudo que eu fiz, foi pra ela ter uma vida longe daqui.
E foi o que ele fez.
Quando a guerra apertou e o cerco fechou, ele mandou ela pra fora.
Para outro país.
Pra um lugar onde o som do tiro não fizesse parte do cotidiano. Eu tô ligado que todos os dias ele sente muita falta dela, inclusive vive falando que antes de partir ele quer ver a filha mais uma vez e eu sinto maior parada r**m ouvindo isso.
Saí do morro há uns anos.
Depois que as coisas ficaram mais tranquilas e o nome se firmou de vez, o Chefe mesmo foi quem disse que eu precisava de um tempo longe do meio da fumaça.
Disse que quem comanda precisa enxergar de fora também, que o morro não pode ser prisão, tem que ser base.
Então eu fui.
Peguei a antiga casa que era minha e dos meus pais, lá no asfalto, e voltei pra ela.
Mesma fachada, mesmo portão meio enferrujado, mesmo cheiro de lembrança batendo com o vento.
Às vezes eu sento na varanda e ainda escuto a risada da minha mãe ecoando de algum canto, e parece que o tempo dobra, sabe?
Mas a diferença é que agora eu tô aqui com o peso do mundo nas costas.
Eu gosto do morro, de verdade.
Ali é onde eu cresci, onde deixei sangue e lealdade.
Mas com as responsabilidades que eu tenho hoje, é mais fácil resolver muita coisa do asfalto.
Telefone, contato, reunião com fornecedor, lavagem de grana, nada disso precisa de fuzil do lado.
Mas mesmo assim, nunca consegui ficar totalmente longe.
Tenho uma casa lá ainda, no alto, onde o vento bate mais forte e dá pra ver o Rio inteiro de noite.
De vez em quando eu subo, só pra sentir o cheiro da quebrada, ouvir os moleques jogando bola no campinho, ver o pessoal trocando ideia na laje.
É estranho, porque o morro tem uma alma viva, e se você se afasta demais, ela puxa de volta.
E no meu caso, o Chefe é parte disso também.
Ele ainda tá lá, firme.
Mesmo com a idade, com as perdas, com o tempo passando, ele é o coração daquele lugar.
E quando ele chama, não tem conversa.
Tava me preparando pra sair, ia até o Vidigal resolver umas pendências com o pessoal de lá.
Coisa de rotina, nada demais.
Coloquei o cordão, o relógio, peguei a pistola e tava fechando o zíper da jaqueta quando o celular começou a vibrar em cima da mesa.
Olhei o número e já reconheci na hora: Chefe.
Atendi.
— Fala, véio.
A voz dele veio seca, meio abafada, mas firme como sempre:
— A p.orra da polícia tá subindo, Mago. Tô te chamando porque o bagulho ficou feio pra ca.ralho. Tem caveirão, helicóptero e tropa pra tudo que é lado.
Abaixei a cabeça, respirei fundo e já comecei a sentir o sangue ferver.
— Vou reunir os meus soldados, fechar as ruas em volta não deixar mais ninguém subir.
— Preciso de reforços. Os caras tão vindo pesado. Já tem helicóptero atirando no meio do beco, e tem moradores feridos.
A imagem veio na minha cabeça como um filme que eu já vi mil vezes.
O som das balas ecoando entre as vielas, as mães gritando, crianças chorando, cachorro latindo no fundo.
Aquela cena que nunca muda, só muda o CEP.
— Tô indo praí agora. — falei sem pensar duas vezes.
— Não demora por favor e vê com os parceiros quem consegue dar uma moral, porque o bagulho tá sério.
— pode pah. — respondi.
E antes de desligar, ainda soltou aquele tom de ordem que eu sempre respeitei:
— Mago... hoje o morro precisa de você.
Desliguei e fiquei um tempo parado, olhando pro chão.
É doido, porque por mais que eu tenha tentado sair, o morro nunca saiu de mim.
Quando a coisa aperta, é pra lá que eu volto.
É lá que meu nome tem peso, é lá que o sangue do meu pai ainda respinga nas paredes, é lá que o Chefe segura as pontas pra todo mundo não desabar.
Peguei o rádio, chamei o bonde.
— Prepara os carros. Tá tendo invasão no alemão, e eu preciso de geral para ajudar o chefe a colocar os arrombad.os para fora da comunidade.
Enquanto eu dirigia rapidão pra poder dar a volta e entrar pelas mata, o som do helicóptero já começava a ecoar ao longe.
A sirene da polícia misturada com o som do vento trouxe um déjà vu amargo.
Parecia o mesmo barulho da noite em que eu perdi meu pai.
Só que dessa vez, eu não era mais o moleque que chorava no canto, eu era o homem que mandava no tabuleiro.
No caminho, olhei pro retrovisor e vi meu próprio reflexo com o olhar firme, e pensei no que o Chefe sempre dizia:
— Um verdadeiro comandante não foge do fogo. Ele entra, apaga e sai limpo.
E era isso que eu ia fazer.
Voltar pro lugar onde tudo começou, onde eu aprendi que a lealdade vale mais que o dinheiro, e onde o destino insiste em me puxar de volta.
O morro do Chefe tava pegando fogo, e se tinha uma coisa que eu nunca ia deixar acontecer, era ver o império do meu velho amigo ruir nas mãos da polícia.
— Hoje o bagulho vai ser guerra. — murmurei pra mim mesmo, enquanto o carro acelerava na direção do alto, e as luzes da cidade começavam a sumir atrás de mim.