Capítulo 06

1296 Words
Natalie narrando Desde o momento em que o rapaz falou comigo daquele jeito lá no alto do morro, eu soube que não podia ficar ali. O tom dele, a forma como me olhou — dava pra ver que eu era uma estranha naquele território que um dia já foi o meu lar. Por isso, desci o morro arrastando as malas, o coração apertado. Duas ruas abaixo, eu lembrava que tinha visto um hotel pequeno, simples, mas bem cuidado. Era pra lá que eu ia. Pelo menos até tudo aquilo passar — a invasão, o medo, o barulho dos tiros — até eu poder finalmente subir o morro de novo pra ver meu pai. Entrei no hotel e fiz o check-in quase sem olhar pra moça da recepção. Minha cabeça tava longe, só pensava se o meu pai tava bem. Assim que ela me entregou a chave, subi as escadas direto pro quarto. Não era nada luxuoso, mas era limpo, arrumadinho, com um cheirinho bom de sabão e lençol trocado. Larguei as malas num canto e peguei uma toalha branquinha que tava dobrada sobre a cama. Eu precisava de um banho, de respirar, de tentar me acalmar. Fechei a porta do banheiro e fiquei uns segundos só olhando o espelho. Me vi ali, cansada, com o rosto marcado pela viagem e o olhar cheio de preocupação. Foram doze horas de voo, mais o tempo que eu fiquei parada no aeroorto esperando a minha mala. Mas nada me cansava mais do que essa sensação de impotência — de saber que o meu pai estar lá em cima, no meio do fogo cruzado, e eu aqui embaixo, sem poder fazer nada. Liguei o chuveiro e deixei a água cair sobre mim. Mesmo com o som da água, eu ainda ouvia os tiros lá fora. O barulho era tão alto que parecia vir do lado da janela. Fechei os olhos e comecei a rezar. — Deus, protege o meu pai, por favor... não leva ele agora, não. Eu preciso reencontrar ele, a gente ainda tem muita coisa pra viver juntos. Senti o peito apertar, como se uma mão invisível me segurasse o coração. Eu sabia que devia haver feridos, que devia ter gente desesperada correndo, famílias se escondendo. E se eu tivesse conseguido subir, eu teria ido direto pro posto de saúde ajudar. Eu sempre soube lidar com ferimento, com desespero, com caos. Mas agora eu tava presa, impotente. Quando saí do banho, coloquei uma roupa confortável — um short leve e uma blusa branca — mas que também fosse prática caso eu precisasse sair rápido. Amarrei o cabelo num coque e pedi alguma coisa pra comer, mais por impulso do que por fome. Enquanto esperava, me sentei na cama e comecei a rolar o feed do celular. Entrei na página de fofoca da comunidade. Era como um jornal informal, mas sempre atualizado. O que vi me fez gelar por dentro. Fotos, vídeos, gente ferida, polícia em todo canto. A legenda dizia “Inferno na favela”. Parecia um filme de guerra. Fechei os olhos, respirei fundo e pedi de novo pra Deus proteger o meu pai. Não sei quanto tempo fiquei ali olhando pra tela. O cansaço me venceu, e acabei dormindo sentada na cama. Quando acordei, a luz invadia o quarto. O som de fogos estourando do lado de fora me fez pular da cama. E eu sabia bem o que aquilo significava: a invasão tinha acabado. Sem pensar duas vezes, corri pro banheiro, escovei os dentes, lavei o rosto e arrumei o cabelo num coque rápido. Troquei de roupa, peguei a carteira, o celular e as duas malas. Meu coração tava disparado. Meu pai sempre dizia o quanto era perigoso andar pelo morro logo depois de uma invasão, porque o risco de tiroteio recomeçar era grande. Mas eu não conseguia ficar parada. Eu precisava ver com meus próprios olhos que ele tava bem. Tinha alguma coisa dentro de mim gritando que algo tava errado. Subi a rua correndo, as malas pesando nas mãos. Assim que cheguei na barreira, os vapores me olharam de cima a baixo. Nenhum deles me reconheceu — e fazia sentido. Eu mudei muito desde a última vez que estive aqui. — Tá achando que vai aonde, cara.lho? — um deles gritou, apontando o fuzil pro chão, mas com o olhar firme. — Mete o pé daqui, vai! — Eu preciso subir o morro! Eu moro aqui! — respondi, ofegante. Eles se entreolharam, desconfiados. — Mora aqui? Tá de mala e tudo. A gente conhece geral que mora aqui e nunca te viu. — Eu sou a Natalie. — falei, tentando manter a calma. Olhando pra mim, um deles arregalou os olhos. — Pu.ta que pariu... patroa? — ele soltou, e eu reconheci na hora a voz do Neném. — Sou eu. — confirmei com a cabeça, e ele veio na minha direção, botando o fuzil pra trás. — Bora lá, patroa. Vou te levar onde o seu coroa tá. Atividade aí, rapaziada! — gritou pros outros, pegando as malas das minhas mãos. Os outros ficaram com cara de tacho, como dizia o meu pai. Eu só acenei e segui o Neném até um carro estacionado um pouco mais acima. — Você sabe do meu pai? — perguntei, enquanto ele colocava as malas no porta-malas. — Cheguei ontem, mas com essa confusão toda não consegui subir. Ele deu um sorriso cansado, mas sincero. — Cê é louca, patroa. O bagulho foi doido. Por um minuto achei que a gente não ia sair dessa com vida. Olhei pro braço dele e vi o sangue escorrendo. Tinha um buraco ali — tiro de raspão, mas feio. — Neném, você precisa de atendimento! Seu braço tá sangrando. Ele olhou pro próprio ferimento e deu de ombros. — Tô de boa, patroa. Já tem ferido pra caral.ho. Depois, quando as coisas acalmarem, eu dou um pulo no posto. Balancei a cabeça em reprovação. — Me dá o braço aqui. Abri minha bolsa e tirei um pequeno kit que eu sempre carrego: gaze, soro fisiológico e esparadrapo. Joguei o soro sobre o ferimento e ele prendeu a respiração, puxando o ar entre os dentes. — Calma. — falei, limpando o sangue. Ele manteve o carro subindo devagar enquanto eu fazia o curativo ali mesmo. Enfaixei direitinho e finalizei. — Como tem saída de bala, você vai precisar dar uns pontos. E toma antibiótico, senão infecciona. Mantém limpo, ouviu? Ele deu um meio sorriso. — Pode deixar, patroa. Valeu mesmo pelo cuidado. Assenti, e seguimos morro acima p. Quando o carro parou, ele virou pra mim. — Eu deixo suas malas em casa, beleza? seu coroa tá lá dentro porque ele foi atingido.- na hora eu lembrei da minha intuição e meu coração disparou — Obrigada, Neném.- eu falei descendo do carro rapidamente e fechei a porta. Assim que entrei no posto. De imediato percebi que muita coisa tinha mudado. As paredes estavam pintadas, o balcão era novo, mas o cheiro — aquele cheiro de álcool e remédio — era o mesmo. Caminhei até a recepção e me apoiei no balcão. — Oi, tudo bem? — falei pra enfermeira que digitava algo no computador. — Eu tô procurando o chefe.- minha voz deu uma leve tremida Ela levantou o olhar pra mim, prestes a responder, mas antes que abrisse a boca, uma voz grossa e firme ecoou atrás de mim: — Quem é você... e por que tá procurando o chefe? O som daquela voz me atravessou. Senti um arrepio subir da nuca até a espinha. Virei devagar, e ali estava ele — um homem alto, com a roupa toda suja de sangue seco e poeira, os braços cruzados, os olhos cansados. Por um segundo, eu perdi a fala.
Free reading for new users
Scan code to download app
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Writer
  • chap_listContents
  • likeADD