O CÍRCULO DOS MACIEL

1504 Words
O CÍRCULO DOS MACIEL O relógio antigo da mansão Maciel soava sete horas da noite. A festa de Aurora ainda acontecia no salão principal, mas dentro da casa, longe dos holofotes e dos flashes das colunas sociais, estava Fernanda de Maciel — aos sete anos, madura além da idade, cabelos escuros como o pai, olhos atentos como a mãe. Ela observava Aurora dormir tranquilamente no berço decorado com laços de cetim. A irmãzinha, que só recentemente aprendera a caminhar, parecia um anjo em seu sono. Fernanda aproximou-se, pegou uma das mãozinhas pequenas da bebê e sussurrou: — Um dia, eu vou cuidar de você, Aurora. Sempre. A menina sentia uma ligação forte com a irmã. Enquanto os adultos falavam de negócios, viagens e alianças empresariais, ela entendia que algo muito especial unia aquelas duas almas. E mesmo sem saber, ali, diante do berço, uma promessa foi feita. No andar de baixo, Maria Paula de Maciel — elegante, visionária, e ao mesmo tempo maternal — recebia os convidados com a leveza de quem nasceu para encantar. Acompanhava de perto o marido, Ângelo de Maciel, um empresário de prestígio, sócio-fundador do conglomerado de moda, e homem apaixonado pela família. Juntos, formavam o casal mais influente da alta sociedade inglesa — respeitados não apenas pela fortuna, mas pela integridade. Entre os convidados também estava a Ana Camilla de Maciel, filha do primeiro casamento de Ângelo. Adolescente, doce, e de natureza introspectiva, Camilla havia se afeiçoado profundamente à nova madrasta, Paula, e à pequena Aurora, a quem tratava como irmã legítima. Perto do bar, observando a cena com um sorriso que não alcançava os olhos, Mariana Santos disfarçava sua inquietação. Disfarçava bem demais. Com um vestido preto impecável, ela alternava entre elogios forçados e perguntas indiscretas. Em sua mente, o plano já estava claro. Ao lado dela, quase invisível, estava Raquel, sua filha de seis anos. Ignorada. Mariana pouco se importava com a menina. A via como um lembrete de um casamento fracassado e das escolhas erradas que a vida lhe impôs. Raquel, de olhos grandes e silenciosos, apenas observava... e aprendia. Do lado de fora, na ala dos funcionários, Fernanda se esgueirava pela cozinha, à procura de um doce proibido antes do jantar. Foi então que ouviu. Vozes abafadas. Uma conversa estranha. — Ela dormirá profundamente... ninguém notará até a manhã seguinte. — O carro estará esperando no portão lateral. Entregue a menina, e desapareça. — Mariana, você tem certeza? — Faça o que estou mandando. E lembre-se: nunca mencione meu nome. Fernanda arregalou os olhos. Seu corpo congelou. Ela conhecia aquela voz. Sabia de quem era. Tentou se aproximar, mas a mão da governanta a agarrou antes que pudesse ver mais. — Vamos, senhorita Fernanda, a sua mãe está procurando por você! Levada à força, a menina tentou protestar, mas foi ignorada. Aquela noite se tornaria um borrão — uma lembrança vaga que voltaria apenas anos mais tarde, como um eco adormecido esperando para despertar. Horas depois, um grito ecoaria pela casa. O berço estava vazio. Aurora havia desaparecido. E Mariana? Ela choraria. Choraria diante de todos, fingindo dor, enquanto o veneno se espalhava pelo coração dos Maciel. CAPÍTULO 3: SILÊNCIO EM OURO A casa que antes era palco de risos, flores e música agora estava mergulhada em um silêncio gélido. O som das vozes, o tilintar de taças, até mesmo o canto dos pássaros do jardim parecia ter desaparecido, como se o mundo tivesse parado em luto junto com os Maciel. Maria Paula estava sentada no chão do quarto de Aurora, segurando entre os braços a manta cor-de-rosa que ainda tinha o perfume da filha. Seus olhos estavam secos, pois já não havia mais lágrimas. O rosto estava rígido, marcado pela dor que palavras não alcançam. Ninguém ousava tocá-la. Nem mesmo Ângelo. — Ela estava aqui. Eu a coloquei para dormir... Eu a embalei. Eu... — sua voz quebrou. Ângelo, de pé ao lado da janela, falava com policiais e detetives. Ordens eram dadas. Ninguém saía da casa. Toda a equipe de segurança seria interrogada. Helicópteros sobrevoavam as redondezas. O país inteiro seria alertado se fosse preciso. Mas nada... absolutamente nada... prepararia o casal para o vazio que se instalaria nos meses seguintes. --- Fernanda, pequena e confusa, tentava entender o que havia acontecido. Sua memória infantil se embaralhava. Ela sabia que ouvira algo. Uma voz. Um nome. Mas não conseguia organizar os pensamentos. Sonhava com a irmã todas as noites. Acordava gritando. E sempre dizia: — A Aurora vai voltar. Eu sei que ela vai voltar. Durante semanas, Paula se recusava a sair do quarto. Parou de se alimentar. Parou de sonhar. Os jornais chamavam de “o caso do sequestro da princesa da moda”. A polícia acreditava em fuga, resgate, até mesmo complô interno. Mariana, com uma frieza calculada, assumiu um papel de apoio. Sempre presente, sempre oferecendo ajuda. Ela era quase indispensável — a sombra perfeita ao lado de uma rainha em queda. Mas no fundo, celebrava. --- Com o tempo, a imprensa silenciou. O país seguiu em frente. Mas os Maciel nunca mais seriam os mesmos. Paula, antes líder vibrante da marca, afastou-se dos negócios. Dedicou-se a causas humanitárias, focando em crianças desaparecidas. Era sua forma de continuar procurando pela filha. Ângelo mergulhou no trabalho, reconstruindo os negócios para proteger o legado — na esperança secreta de um dia entregar tudo a Aurora. Camilla cresceu tentando ser a rocha da família. Fernanda, marcada pelo trauma que sua mente bloqueou, desenvolveu uma sede por justiça — e um instinto protetor feroz. E Raquel, filha de Mariana, cresceu sozinha, desprezada, vivendo à sombra da frustração da mãe. Mas ela viu tudo. Ouviu tudo. E um dia... guardaria o suficiente para destruir tudo o que a mãe construiu. O tempo passou. Anos. Décadas quase. Mas o destino é paciente. Ele espera. E Aurora... Aurora crescia sob outro nome. Com outra história. Mas o sangue da moda e da elegância ainda corria em suas veias. O império que lhe fora tomado, em breve, a atrairia de volta. E o reencontro, quando viesse, não seria gentil. --- CAPÍTULO 4: ENTRE MENTIRAS E SILÊNCIOS O bairro onde Lívia Lopes cresceu era simples, afastado dos grandes centros, mas suficientemente digno para não levantar suspeitas. A casa onde vivia era limpa, organizada, mas fria. Tudo ali era funcional. Impessoal. Como se as paredes jamais tivessem sido testemunhas de um verdadeiro abraço. Clarice e Renato Lopes eram os pais que ela conheceu. Um casal reservado, rígido, e constantemente inquieto. Clarice era mulher de poucas palavras, mantinha a casa impecável e os sentimentos trancados. Renato trabalhava como motorista de caminhão, ausente durante dias. Quando voltava, era silencioso, tenso. Nunca violento, mas... estranho. Desde pequena, Lívia percebia que havia algo que não se encaixava. — Mamãe, por que eu não pareço com ninguém da família? — Que bobagem, menina. Puxa a sua bisavó, que era finíssima. Mas ninguém tinha fotos da tal bisavó. Ninguém falava dela. Lívia era observadora. Desde cedo, notava os olhares trocados entre Clarice e Renato quando o assunto era seu nascimento. Sentia a frieza nos abraços que só vinham em festas ou na frente dos outros. Sentia falta... de algo que não sabia nomear. --- Na escola, Lívia se destacava em artes e redação. Sonhava com vestidos, desenhava sapatos, montava colares com miçangas coloridas. Seu talento florescia, mesmo num solo árido de incentivos. — Moda? Isso não é profissão, menina. Vai estudar algo sério! — dizia Clarice, sempre ríspida. Mas Lívia continuava. Criava. Costurava à mão roupas para bonecas velhas. Recortava revistas. Sua intuição era tão refinada que, mesmo sem saber, recriava tendências antes de vê-las nas vitrines. Era um dom. Um traço herdado no sangue. --- A vida seguiu nesse ritmo até os doze anos, quando conheceu Alícia Rogério, uma menina rica da escola, mas diferente de todos. Sorridente, espontânea, acolhedora. Viu em Lívia uma luz que nem ela sabia que tinha. — Você é brilhante, sabia? Seus desenhos são melhores que os da minha prima, que estuda moda em Paris! Lívia corou. Ninguém jamais lhe dissera algo assim. Alícia não apenas elogiava — ela acreditava em Lívia. A levava para casa, mostrava livros de arte, falava de estilistas, de Londres, de Milão. Tratava-a como igual. Como irmã. E assim nasceu uma amizade forte como ferro. As duas prometeram: um dia trabalhariam juntas. Criariam a própria marca. Viajariam o mundo. Mas, enquanto sonhava, Lívia ainda sentia o vazio. Uma ausência que doía em dias de chuva. Uma tristeza sem nome. Um sentimento de que estava no lugar errado, com as pessoas erradas. Como se sua vida fosse... emprestada. Uma noite, aos quinze anos, ouviu pela primeira vez Clarice e Renato discutindo: — Ela vai descobrir! Tá cada vez mais parecida! — disse ele, nervoso. — Cala essa boca! Se ela souber, perdemos tudo! — Eu já disse... foi um erro! Lívia ficou paralisada do outro lado da porta. “Descobrir o quê?” Naquela noite, ela sonhou com um nome que nunca ouvira antes: Aurora.
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