Mateus
O cheiro de terra molhada e fumaça de lenha se tornou o meu perfume diário. Deis de novo carrego mais cicatrizes na alma do que na pele, e olha que as da pele não são poucas.
Meu pai foi levado por uma bala perdida que nunca encontrou um dono, e olha que procurei. Te garanto que se eu achasse quem fez isso, saberia de onde viria a bala que o levaria para o inferno.
O morro não se tornou apenas a minha casa. Ele era meu refúgio e a única chance que tive de não morrer de forme.
Mãe? Eu nem sei o que é ter uma. Fui abonado a própria sorte por ela e desde que ela saiu da minha vida eu nunca mais tive notícias, mas eu espero que aquela vaca esteja morta, a muitos palmos para da terra.
Não, eu não me sinto culpado por esse sentimento.
A única coisa que ela fez por mim, foi me colocar nesse mundo e isso não faz com que eu deva qualquer tipo de lealdade.
Eu aprendi bem cedo que a fome não espera e que a esperança é só um luxo que poucos podem pagar. Não existe esperança no lugar onde moro. Aqui, é cada um por si e quando se trata de morro, você descobre rápido que a sua melhor moeda de troca para a sobrevivência é o respeito conquistado nas vielas.
O medo também é um forte aliado.
Não o meu medo, o medo dos outros.
Eu sou um dos “crias” do Galvão, dono de todo esse lugar. Só aí você já pode fazer uma ideia de que o medo que eu impunha aqui era bem grande.
Não cheguei a onde estou por sorte. Aliás, eu nem sei o que é ter sorte, porque ela nunca esteve ao meu lado.
Eu preciso madrugar todos os dias. O trabalho dentro da favela não para.
Preciso fazer as rondas nos pontos. A droga precisa ser fiscalizada porque têm sempre um espertinho achando que pode passar a perna. Aqui não é um lugar sem lei, e se alguém demorar para entender isso, vai para vala.
As cobranças das “taxas” também ocupada uma boa parte do meu tempo. E como se não bastasse ainda preciso resolver as pendências que surgem entre os moradores.
Galvão confia em mim e mesmo esse sendo um fardo pesado de se carregar, ele também se torna uma armadura no meio de toda essa gente fodida.
Quanto mais perto dos grandes você fica, mais responsabilidade você têm. O lado bom é que aqui ninguém mete a cara comigo. Todos sabem que eu também sou a lei.
Com o tempo eu passei a ter olhos que viam além do óbvio e ouvidos que escutava, o que não era dito. Me tornei alguém frio e não tenho problema nenhum em executar até mesmo as ordens mais pesadas.
Eu não hesito quando tenho que meter a bala na cabeça de alguém.
Ninguém morre de graça, a menos que seja atingido por uma bala sem dono.
O que as pessoas não sabem é que por fora eu podia ser uma muralha, mas por dentro eu sou um turbilhão.
A dor por tudo que passei, foi o que me moldou, mas foi ela também que me consumiu.
A muito tempo eu não me permito ter um lado fraco. Pessoas fracas não sobrevivem no meu mundo.
Talvez não haja mais tanta humanidade em mim. Mas quem pode me julgar?
No fundo, sei que sou uma falha do sistema, e entrei na guerra com as armas que tinha.