Mateus
Essa vida dominada de regras e ordens podia ser cansativo. Mas não é como se eu tivesse escolha aqui.
Olho o relógio. Passa um pouco das seis da manhã. Tiro os lenções de cima de mim e me levanto. Estou sem roupas e com uma put@ dor de cabeça.
Depois de tomar quase uma garrafa de whisky barato e de uma boa f**a, eu apaguei. Precisava disso. Têm dias que eu não sabia o que era dormir mais de duas horas.
A marmita da vez foi Lia. Já comi ela mais vezes do que posso contar. Ela é presa fácil e nunca n**a um boquete.
Olho a garota deitada no colchão e vejo que fiz alguns estragos.
Posso ver os roxos marcando a pela de suas costas. Isso podia até me incomodar, mas não me importo. Veio porque quis. f**a-se.
Pego minhas roupas que estavam jogadas no chão do quarto. No geral, não durmo com ninguém. Esse barraco é dela, jamais levaria alguém para dentro da minha casa. Ainda mais sendo uma dessas put@s que adoram dar para bandido. Mais eu estava bebado demais para sair daqui.
Preciso de um banho, mas não tenho tempo de passar na minha casa. Tenho trabalho a fazer.
Abro a carteira e tiro algumas notas de dentro dela.
Eu não preciso pagar por sexo aqui dentro, mas sempre acabo fazendo porque não quero que algumas dessas put@as entenda algo errado.
Saio pela porta e sigo o caminho até o topo do morro.
Alguns cumprimentos surgem no meio do caminho, e escuto os moleques dizendo “Bom dia chefe” enquanto eu passo. Me limito a apenas responder com um aceno de cabeça.
Passo pela porta da sala onde fica Galvão e todo o seu comando.
— Pelo visto, a noite foi boa – escuto a voz de Galvão e o encaro.
— Foi só mais uma noite.
— O que foi? A fod@ não foi boa? Eu vi você saindo daqui com a sua marmita numero um.
— Ela não é a numero um. Ela é só mais uma.
— Tô ligado. Preciso que faça um trabalho para mim.
— Mando o papo.
— Está chegando um carregamento novo. Coisa boa. Quero que fiscalize.
— Pode deixar.
— Fica de olho. Esse carregamento vai render uma boa grana pra gente.
— Qual vai ser a minha parte?
— Depois de pagar quem precisa e de fazermos alguns investimento para a escola da ponta do morro, você fica com trinta por cento do lucro. Vinte por cento vamos comprar mais armas e os outros cinquenta ficam para mim.
Apenas concordo com um aceno de cabeça. A verdade é que ao longo dos anos, conforme fui “subindo de cargo” dentro da favela, consegui levantar uma boa grana. Nada que me deixe podre de rico, mas dinheiro não se tornou mais um problema. Trinta por cento dos lucros de Galvão significam muito.
— Está sabendo alguma coisa da nova moradora?
Tinha acabo de dar as costas a Galvão, com a intenção de ir fazer meu trabalho quando ele volta a falar. Sua fala me chamou a atenção.
Eu sei de quem ele está falando. Embora, em alguns momentos eu faça um esforço para não pensar naquela garota.
— O que têm ela?
— Parece que está procurando emprego.
— E qual o problema?
— Nenhum. Mas quando ela conseguir vou querer saber onde e o que ela vai fazer.
— Têm gente para cuidar disso.
Queria parecer indiferente, mas o fato é que algo na forma com que ele fala dela me incomoda.
— A responsabilidade de saber o passo de cada morador também é sua. Então fica de olho. A gata parece que veio de família rica. Essa gente sempre da problema.
— Vou passar o recado pros moleques.
— Já é! Te aviso se eu precisar de mais alguma coisa. Me mantenha informado sobre o carregamento.
— Tô indo nessa.
Não prolongo mais minha permanecia dentro da sala. Não gostei nem um pouco quando ele chamou a garota de gata.
Não sei explicar mais isso me incomodava.
Aquele encontro na viela mexeu com alguma coisa. E porr@, não me permito pensar demais nesse assunto. A coisas dentro de mim que estão mortas e é assim que elas permaneceram.
Na certa, aquela pequena criatura deve ter mexido comigo por conta do ar de fragilidade emanava. A beleza simples era um contraste girante com tudo o que eu conhecia.
Eu a via ocasionalmente. Tá, tudo bem. Algumas vezes, enquanto estava indo cumprir ordens, mesmo sabendo que eu podia desviar o caminho, sempre acabava passando próximo a casa da tia dela.
Ela gostava de ler livros e isso era algo que a destoava ainda mais de todo o cenário. Dava para ver que nesse momentos ela ficava em seu próprio mundo. Eu sempre tomava cuidado para que nem percebesse, as pessoas não precisavam saber que aquele pequeno ser tinha me chamado tanto atenção.
Mas eu não conseguia resistir ao olhar para aquela garota da “cidade grande”, com aqueles olhos de quem pedia ajuda perdidos nas paginas de um papel. Aquele tinha se tornado uma mistura intrigante. Eu sabia que o mundo dela era diferente do meu. Tudo ao nosso redor gritava isso.
A presença dela era quase um risco. Eu só ainda não consegui entender, qual tipo de risco é esse.
— Chefe! – escuto alguém me chamar.
Estava entre as vielas, segue em direção ao carregamento que logo chega. Paro e vejo que um moleques do Galvão, está parado próximo a mim.
— Qual é?
— Problemas. Pegamos um dos “idiotas” vendendo droga por fora, quero saber que podemos dar um sumiço, ou quer que o leve pro quartinho.
Idiotas era o nome que dávamos aos moleques novos, que vêm pedir um emprego dentro do organização.
— Leva pro quarto. Tenho um serviço e depois vou para lá.
O garoto apenas assente e logo em seguida o vejo abaixar a cabeça e seguir seu rumo.
Preciso conferir essa história direto. Não me importo de mandar alguns idiotas para vale. Mas apesar de tudo, procuro ser justo.
Mesmo irritado, volto a descer o morro.
Passei a manhã toda fiscalizando o carregamento. Só queria ir para casa tomar um banho, mas preciso resolver o problema com o “i****a” antes disso.
Entre as vielas, avisto aquele pequeno ser. Eu sei que deveria ter ignorado, mas não resisto a vontade de ficar a observando. Ela e a tia estão com uma cesta e vejo quando alguns moradores compram o que eu imagino ser doces.
— E ai chefe!
Escuto a voz de Neco, e mesmo depois de me cumprimentar ele não me olha. Apenas abaixa a cabeça e segue tentando passar por mim.
O seguro pela gola da camiseta e faço voltar dois passos para trás.
— Chefe, eu não fiz nada – sua voz sai nervosa.
— Sorte a sua – falo.
Acabo achando engraçado o desespero que toma conta dele.
— Sabe o que ela está vendendo?
— Doces! Aquela é a dona Cida. Ela sai todos os dias para vender. Elas mesmo que produzem. Parece que garota ainda não conseguiu um emprego e por isso está ajudando a tia. Elas não estão fazendo de errado.
— Não disse que estão.
— Dona Cida vende doces a muito tempo. É a forma que ela têm para comprar comida.
Enfio a mão no bolso e percebo a expressão de Neco ficar ainda mais desesperada. Ainda o estou segurando pela gola da camiseta quando pego uma nota de cem.
— Vai lá e compra tudo o que têm na cesta.
— Sim, chefe! – Neco no mesmo instante fica aliviado — Vou pegar e trago...
— Leva na minha casa mais tarde. Ainda tenho serviço. Não preciso de troco E não volte para perto de mim com aquela cesta.
— Sim, chefe!
Solto a gola da camiseta de Neco e enquanto ele começa a caminhar em direção as duas figuras paradas, me encosto na parede, com os braços cruzados.
Eu devia ir embora, seguir com minha vida. Mas nesse momento. Resolvo ficar mais alguns instante a observando.