02 - Liz

1164 Words
Liz Narrando Desde pequena, meu pai dizia que meu destino estava traçado. Ele falava isso com tanto orgulho que eu achava bonito. Hoje eu entendo que aquilo nunca foi poesia, e sim uma sentença. Eu sou Liz Bragantino, vinte e três anos, estudante de Direito, não por vocação, mas por herança. Minha família inteira respira leis: meu pai, minha mãe, meus tios, meus primos, todo mundo. O sobrenome Bragantino pesa mais do que um diploma pendurado na parede. Ele abre portas, cria oportunidades, e destrói escolhas. E eu? Eu fui só acompanhando, como quem entra num rio gelado sem ter coragem de nadar contra a correnteza. Quando olho no espelho, eu vejo uma garota que muita gente invejaria: pele clara, olhos castanhos, cabelos longos da mesma cor, um corpo que sempre arrancou elogios e também expectativas. Eu cresci sendo “a filha perfeita do Doutor Roberto Bragantino”, presidente da Associação Jurídica do Rio de Janeiro. O homem que escolheu cada segundo da minha vida antes mesmo de eu nascer. Ele escolheu até o país onde eu viria ao mundo. Pois é. Ele escolheu tudo. Escolheu o hospital, o nome, a escola, os meus estudos, e até quem seria o meu noivo. Eu cresci feliz, não vou mentir. Fui uma criança cercada de amor, mesmo que fosse um amor cheio de regras. Como filha única, eu era o centro do universo da minha mãe, e a sombra constante do meu pai. Tinha tudo: brinquedos, viagens, festas, aniversário temático com direito a decoração importada. Meu pai nunca deixou faltar nada material, só esqueceu de me dar liberdade. Na adolescência, eu continuei sendo aquela menina que todo mundo via como exemplo. Boletim impecável, comportamento irrepreensível, a filha que toda família tradicional queria ter. Mas ninguém sabia que, por trás do sorriso treinado, eu só queria respirar um pouco por conta própria. A única parte da minha vida que meu pai não conseguia controlar completamente eram minhas amizades. E foi assim que eu conheci minhas duas melhores amigas: Andreza e Sabrina. Nós três éramos inseparáveis desde o jardim de infância. Compartilhamos lanche, roupas, segredos, lágrimas, risos, tudo. Mas algo estranho começou a acontecer nos últimos meses. — Sá, o que houve? Você anda tão distante. — perguntei um dia. Ela suspirou, mexendo no cabelo como fazia sempre que estava desconfortável. — Nada, Liz, só quando você for sair com a Andreza, não me chama, tá? Eu franzi a testa. — Por quê? Vocês brigaram? — Prefiro não falar sobre isso. Sabrina sempre foi sincera comigo, por isso estranhei aquele silêncio. Achei que era ciúme. Achei que era fase. Achei tanta coisa. Mäl sabia eu o que realmente estava acontecendo. Mas apesar da distância de Sabrina, eu continuei amando as duas igual. Pra mim, amizade verdadeira não acaba do nada. Pena que eu estava enganada. Se tem uma coisa que meu pai sempre reforçou é que imagem é tudo. Ele acreditava que a vida se constrói com decisões firmes, mesmo quando essas decisões não são suas. E talvez por isso ele tenha feito o que fez. Eu me lembro como se fosse ontem. Eu tinha acordado solteira. E fui dormir, praticamente noiva. Foi uma noite ridícula, forçada, constrangedora. Minha família toda reunida, o ambiente perfeito pra um pedido de namoro que eu nem sabia que ia acontecer. Meu pai surgiu com um buquê enorme, Ramon com um sorriso ensaiado, e antes que eu pudesse abrir a boca, ele já estava ajoelhado. — Liz, você aceita namorar comigo? A sala inteira olhou pra mim. Minha mãe sorria emocionada. Meu pai me encarava com aquela expressão orgulhosa que não admitia um “não”. E eu? Eu fiquei sem saída. — S-sim... — respondi, porque negar ali seria uma vergonha pública. E assim começou meu relacionamento com Ramon Souza, o queridinho do meu pai. O pupilo. O prodígio. O filho que ele nunca teve. Um advogado jovem, bonito, educado, prestativo, gentil do jeito que toda sogra sonha. E meu pai sempre repeti: — Ele é o genro que eu pedi a Deus. Mas ninguém, absolutamente ninguém, perguntou se ele era o genro que eu queria dar pra Deus. Eu não tinha escolha. Nunca tive. Ramon sempre foi mais próximo do meu pai do que de mim. Eles almoçavam juntos, faziam reuniões, trocavam mensagens de madrugada sobre processos, estratégias, conexões. Eu era a ponte perfeita entre eles. O encaixe exato no plano de carreira de cada um. E no começo, eu aceitei. Eu me acostumei. Como a gente se acostuma com uma roupa que aperta demais, mas continua usando porque todo mundo diz que está bonita. Eu tento me convencer: Ele é um bom homem. Ele é um bom marido. Eu devia me sentir sortuda. Mas no fundo, eu só queria o direito básico que qualquer pessoa merece: escolher. — Liz, você não gosta dele? — minha mãe já tinha perguntado uma vez, com delicadeza. — Gosto — respondi, mexendo no café. — Mas não é amor. — Amor vem depois. Eu queria acreditar nela. Juro que quis. E talvez por isso eu tenha engolido tantas coisas que me incomodavam. As cobranças. A falta de carinho espontâneo. As palavras decoradas. As mensagens que ele escondia. Os sumiços. A falta de brilho no meu próprio olhar toda vez que falavam, vocês formam um casal lindo. Eu não queria um casal lindo. Eu queria amor. Queria alguém que me escolhesse por mim, não por conveniência. Queria alguém que me olhasse como se eu fosse céu, e não um currículo. Queria alguém que me fizesse sentir viva, e não presa. Mas isso era pedir demais no mundo dos Bragantino. No universo perfeito construído pelo meu pai, sentimentos são detalhes descartáveis. — Liz, não jogue fora o que é bom pra você só por causa de besteiras. — ele diz sempre. Mas e se o que era bom pra ele fosse sufocante pra mim? Eu já trabalho no escritório dele. Sou estagiária desde o primeiro ano de faculdade. Tenho metas, horários, funções, pessoas vigiando cada passo meu como se eu fosse uma joia que não pode arranhar. Eu tenho tudo. E não tenho nada. Pelo menos, é isso que eu sinto. Na minha cabeça, eu sempre me prometi uma coisa: Quando eu formar, eu tomo as rédeas da minha vida. Mas até formar parece longe demais. E a cada dia, eu tenho mais certeza de que, se eu não fizesse algo, meu futuro já estava escrito e não por mim. A verdade é que, mesmo com todo controle que meu pai exerce, eu ainda acredito que algumas coisas são sagradas. A amizade, por exemplo. O amor. A confiança. Mas eu estou a um fio de descobrir que até isso pode ser manipulado. Que até isso pode ser arrancado sem aviso. Que tudo que eu achava sólido não passava de vidro prestes a cair do alto. E esse vidro ia despencar… e cortar minha vida inteira no meio. Muito antes do que eu imaginava.
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