Para entender melhor os motivos que o capitão Gulian Beho tenha tido para escolher essa vida, resolvi mostrar, nesta história em particular – embora em outras eu faça referência a detalhes da vida passada dele –, como a sua real história começou. Como ele se tornou o homem por detrás de tantos títulos.
Tudo começou quando eu era só um pequeno pedaço de ser, com três anos. Uma espoleta que não parava quieto. Ria ao ver as ondas batendo no velho Dergo; ria ao ver as pessoas trabalhando; ria ao ver o conflito entre Jado e Lida para diversos assuntos – sempre disse que eles eram extremamente inteligentes de modos diferentes –; ria só de ver que o sol nascia naquele dia no meio do oceano selvagem.
Era um sumo em iniciação, como os mais velhos diziam. Jado brigava comigo por qualquer coisa e uma vez até me deu um tapa na cara por eu lhe perguntar se eu poderia chamá-lo de pai, assim como os humanos faziam. Por mais que eu não entendesse o sentido da palavra, eu buscava entender. É de nossa natureza entender, como Jado vivia dizendo.
Lida era a figura mais doce de um sumo que eu tinha: era vaidosa, já que a mãe de Gulian lhe comprava as mais belas roupas e a perfumava com seus perfumes; era inteligente — possivelmente a suma mais inteligente que já conheci — e paciente. Por alguns instantes já na minha fase adulta, recordando do passado, cheguei a pensar que ela tinha sentimentos por mim, assim como uma mãe tem por seus filhos. Mas nunca perguntei se eu poderia chamá-la de mãe, já que um sumo não costuma errar duas vezes sobre o mesmo assunto, e também porque eu preferia me permanecer nesse sonho infantil a ser nocauteado pela realidade.
Gulian era só um moleque alto, magricelo, de pele parda, queimada pelo sol, amigável, inocente e sonhador. Vivíamos mais navegando que qualquer outra coisa. Porém seus pais tinham uma casa na cidade de Nenad, no reino de Neerit, litoral oeste do continente Norneuti, que foi onde ele e Alissa, sua irmã caçula, nasceram. Vitto morava do outro lado do reino e vinha ver Gulian uma vez ao ano, onde passava até três meses viajando com os tios.
Vitto era o primo materno mais próximo de Gulian, tendo a Jeana também, prima paterna. Ela era uma Beho de pai e mãe já que era prole de um casamento de primos. Ela era uma garota feiosa, irritante, mandona e teimosa, que me fazia de seu escravo, onde juntamente à Alissa, que era quase de sua idade, tão magricela e irritante quando a prima, me vestiam vestidos e me enfeitava como se fosse a bonequinha delas. Jeana também viajava no Dergo algumas vezes, por causa de Alissa que, assim como Gulian e Vitto, eram muito amigas. Dentre esses membros familiares, havia outros que Gulian raramente via. Mas era apenas com Vitto e Jeana que ele tinha mais entrosamento.
Eu vivia querendo brincar com Gulian e Vitto, mas na presença do primo, Gulian me descartava. Então eu sempre saía entristecido de perto dele. Saía mancando, jogando o meu corpo de um lado ao outro, já que minhas pernas eram tão pequenas que o único modo de conseguir andar um pouco mais rápido era esse.
No dia em que o velho Dergo se encontrou com o poderoso e temido Badói, navio do marquês Verton Baraqsi la Capré, na ilha de Nosfauto, ao norte do reino de Itas, foi um terror.
O velho Dergo não tinha equipamento de batalha alguma. Era só um navio comerciante que nunca teve problema com outro e que entrava e saía de lugares sem ser notado. Entretanto, havia uma ordem do rei de Itas que impedia navios comerciantes de Neerit a entrarem naquele reino, e que qualquer aproximação poderia causar a morte de todos os tripulantes. Acontece que Lundaho Beho, pai de Gulian, não sabia de nada sobre a guerra que acontecia entre Neerit e Itas naquele momento. Essa rincha existia há muito tempo, mas a guerra propriamente dita tinha iniciado recentemente, e Lundaho foi pego desprevenido; portanto, foi bombardeado.
O marquês, que nem tinha ordem para fazer isso — por já haver navios de guerras em posições para cumprir a ordem do rei de Itas —, fez por extrema maldade. Pois já fazia tempo que o velho Dergo e o Badói disputavam vendas e, como estratégico que o marquês era, esperou que o velho Dergo entrasse em território de Itas durante o início daquela guerra para ter a desculpa de acabar com a concorrência. Poderia fazê-lo em outro lugar, mas arruinaria sua imagem.
O nevoeiro misturado à fumaça fazia com que todos se sentissem perdidos e desesperados em meio aos bombardeios. Lida me arrancou do meio do deque e me carregou dali em seus braços. Ela, que tinha só um metro e vinte e oito centímetros de altura, m*l saía do lugar comigo nos braços.
— Jado! — ela gritava repetidas vezes.
Sua voz soava bela, ainda que desesperada. Lida tinha também, além da extrema inteligência, uma voz doce, parecida com a de uma mulher humana. Talvez a tivesse por, antes de ser dos pais de Gulian, ter sido de um musicista de Olau, e esse pôde ensiná-la a não ter uma voz irritante de suma comum.
Eu via Vitto correndo, ainda mais magricelo que Gulian, com o cabelo cor de palha que, preso, pendia longo até o meio das costas, gritando pelos nomes de seus tios. Logo os homens do marquês invadiram o velho Dergo e começou uma injusta batalha de espada.
Lida divagava pelo navio, passando por pessoas desesperadas, me segurando em seus braços, procurando por um canto onde não seríamos notados.
Mesmo sabendo que era rara a situação onde os humanos nos atacavam num embate com outros, Lida procurava se esconder. Nós sumos somos valiosos demais para nos permitir à morte e causar prejuízo aos nossos senhores, ainda que o ato de matar um sumo fosse visto como sinal de covardia do mais baixo escalão. Era uma covardia vergonhosa que poderia manchar o nome de um humano, mas não por eles sentirem simpatia por nós, e sim por sermos ínfimos vermes inofensivos que, mortos por mãos humanas, era vista como zombaria a eles. Olha ele, só consegue matar sumo, era o que eu já ouvi de alguns para outros.
Vi o pai de Jeana a pegando no colo, dando a mão para sua esposa e correndo contra os tripulantes do Badói, que matavam os inexperientes e pacíficos homens do velho Dergo que só sabiam trabalhar.
Logo vi o Gulian: perdido, desesperado e arrastando o olhar de um canto ao outro do navio, possivelmente à procura de seus pais, enquanto era arrastado pela massa de humanos que corria de um lado ao outro. Cheguei a ajudá-lo a procurar seus pais com meus olhos, mas também não os avistei.
— O Gulian. — Apontei com o dedo para ele, no intuito de parar a Lida, mas ela não parecia se importar. — Lida, o Gulian! — exclamei.
— Eu já ouvi! — ela gritou sem me dar mais atenção, continuando a se afastar dele. Em seguida ela abriu uma porta e entramos por ela. Descemos a escada até o nível inferior e depois ao inferior dele, até nos abaixarmos o suficiente para todo o estrondo que fazia lá fora ser isolado e a tranquilidade clarear a nossa mente.
O velho Dergo, que era listado de amarelo e preto, tinha quatro pavimentos, com janelas de madeiras com as extremidades esborrachadas para que água alguma entrasse por gretas e frestas.
O pavimento mais baixo era usado como depósito; o segundo era, pela metade, uma cozinha, um depósito de alimento e a outra metade era onde os feridos ficavam. Acima disso tinham só quartos e a biblioteca de Lundaho, onde Lida e Jado ficavam o tempo todo, e onde dormíamos também. Acima disso era a céu aberto e nas duas extremidades das pontas do velho Dergo, haviam dois quartos. Um deles era o quarto de Lundaho com sua esposa e o outro era a cabine dos marujos.
Ela me tirou de seus braços no instante em que alcançamos a cozinha, e quando meus pés chegaram ao chão, eu tentei me escapar dela. Eu só pensava no que o Gulian estava passando; no medo que sentia. E como qualquer sumo, eu colocava isso acima das minhas necessidades. Mas Lida me dominou e me puxou pelo meu cabelo normalmente rebelde e seco.
— Você é louco? Vamos morrer lá fora — ela me advertiu.
— Eles vão morrer lá fora. — Meus olhos cintilavam com o pouco de luz ali de dentro. Eu não entendia como alguém deixava outras para morrer sem procurar ajudar; não entendia como uma suma era capaz mentalmente de deixar sua senhora para trás. Por um curto momento, antes de julgá-la, a achei inteligente demais a ponto de dominar o instinto de proteger sua senhora.
Que ela era lógica demais, isso já era um fato, mas fria era diferente; não hoje, mas naquele dia, ela tinha esse lado dela que era estranho para mim. Eu não conseguia entender aquilo, aquele olhar desesperado pela vida. Ela lutava para viver por ela e não para poupar prejuízo aos Behos.
E o que aconteceu enquanto estávamos lá em baixo?
Gulian viu uma espada trespassando o coração de Alissa, pelas costas; Vitto ficou escondido com medo, torcendo para que seu pai, um homem agressivo e mau, morresse, assim como sua mãe condescendente; Jeana esperta, juntamente com seu pai e sua mãe, abaixavam um dos barcos para fugirem despercebidos dali; Jado foi explodido por uma das bombas lançadas dos canhões do Badói; Lundaho brigava com o marquês, que no dia seguinte seria o homem conhecido por matar aquele simples e pacífico comerciante. Não era exatamente um mérito ter matado Lundaho, pois esse foi um ponto negativo em sua vida, levando em conta que criou um monstro chamado capitão Gulian Beho a partir de suas ações.
Ficamos muito tempo lá embaixo, com Lida me vigiando para não fugir. Por ser muito novo e minhas pernas muito pequenas, de forma alguma conseguiria fugir dela, e aquilo me irritava. Sumos odeiam, muito mais que os humanos, se sentir impotentes. A ideia de não podermos algo nos perturba por dias.
Assim que chegamos à conclusão de que a batalha já tinha se findado, subimos as escadas, com Lida segurando firme no meu pulso. No entanto, ao chegarmos lá em cima, nos deparamos com a destruição. Não havíamos percebido antes, mas o navio estava afundando e, ao abrirmos a porta, a água que estava na altura da canela de Lida, quase me levou para dentro com força.
Ela me segurou firme pelo pulso e me abraçou de lado ao forçar para caminhar contra a correnteza. Ondas se chocavam contra o navio e o forçava a cambalear na superfície instável do mar de Baressis, salpicando água em nós e aumentando o horror daquela vista sofrida.
O navio não estava ao todo afundado. Acontece que estava baixo o suficiente para que as ondas altas cobrissem o topo e o enchesse de água mais rápido que o ritmo dos escoamentos os permitisse tirar.
Por um instante, Lida olhou para toda aquela água descendo as escadarias dos níveis inferiores do velho Dergo e eu soube que ela estava preocupada com suas centenas de livros. Por mais que seu sofrimento se perdurou por infinitos milésimos, seu luto não demorou nada, pois imediatamente ela me ajeitou em seu colo e saiu dali comigo.
De seu rosto magro e perfeito, desciam lágrimas. Meu coração doeu junto ao dela por qualquer coisa que estivesse a fazendo chorar. Aquela foi a minha primeira experiência de empatia com outro sumo, e eu a odiei dolorosamente.
Olhei para o assoalho coberto por aquele pedaço de mar e percebi o fogo verde queimando ainda submerso à água. Lida desviava dele, pois, se o fogo pegasse em seu pé, ela seria forçada a arrancá-lo fora para sair da água. Nada impedia o fogo vivo de queimar o que tocava, muito menos a água, que só o pausava, em vez de liquidá-lo.
— Lida! — gritou Joana, mãe de Gulian, num pequeno barco junto ao filho, ao Vitto, a Jeana e seus pais: Catau e Tahira, que desciam enquanto homens feridos soltavam as cordas de pouco em pouco para que o pequeno barco alcançasse a superfície do mar e pudesse fugir em meio ao nevoeiro.
Estávamos a estibordo, por isso Lida e eu pudemos ouvir e ver a mãe de Gulian nos chamar. Lida simplesmente correu e pulou comigo no barco. Chocamos com força o nosso corpo contra aquela pequena embarcação. Gritei de dor, porém Lida tampou minha boca com o pano de sua roupa, enquanto com sua doce voz me pedia para que eu ficasse quieto.
A pequena batalha ainda não tinha acabado. Homens gemiam, gritavam e se jogavam no mar pela dor do fogo verde que os corroíam por fora e os cozinhavam por dentro.
Vitto estava com os olhos congelados. Não parecia que sofria e nem o contrário disso. Só anos depois descobri que aquela destruição foi a melhor coisa que lhe aconteceu. Jeana mostrava-se contente que seus pais estavam bem e saudáveis ao seu lado, mesmo com o evidente horror em seu rosto.
Com o pano na boca e sem mais intenção de reclamar pela dor, percebi também que Joana chorava enquanto via o seu ganha-pão afundar lentamente, já sabendo que sua filha de onze anos morrera logo no início do ataque.
Tudo estava um desastre.
Logo o pequeno barco alcançou a superfície do oceano e os adultos pegaram remos. Lida me soltou para fazer o mesmo, mas foram todos interrompidos com a exclamação de Gulian, ao olhar para cima e ver seu pai próximo ao parapeito do velho Dergo, brigando com o marquês.
— Pai!
Ele ficou de pé, fazendo o barco cambalear, e pulou dali ao velho Dergo, onde foi escalando. Mesmo adolescente, Gulian era o meu senhor e ele estava subindo num navio que naufragava e que também estava condenado ao fogo eterno. Eu não podia simplesmente deixá-lo subir e morrer sozinho, como Lida conseguia abandonar sua senhora, então eu pulei do barco, mas ao contrário de Gulian que tinha pernas que lhe dava flexão o suficiente para dar de cara já com o velho Dergo, eu cai na água gelada e ardida.