Coração de Pedra

1889 Words
Um pensamento angustiante lhe veio à mente, o desespero não permitia que Charlotte pensasse com clareza. Ver o irmão caçula imóvel sobre a pedra a angustiava. Era a segunda vez que Peter verificava o pulso e a respiração de Anthony. Repetiu a manobra, sugou o ar e soprou-lhe o fôlego depois de levantar o queixo. ― Isso, campeão! ― Colocou Anthony de lado quando ele tossiu e expeliu a água. ― Calma, você vai ficar bem! Charlotte puxou o irmão para os braços, por um descuido quase o perdeu, lágrimas fluíam dos cantos dos olhos. ― Você precisa ter mais cuidado! ― Eu estava olhando o Anthony,  foi você que me distraiu. ― De nada! ― Peter caçoou. ― Essa parte é perigosa, tem correntezas. ― Quero ir para casa! ― A voz abatida de Anthony interrompeu a briga. ― Vamos!  Ela se esforçou para pegar o irmão no colo. Tentou pegar a cadeira e a bolsa com os lanches, mas deixou a bolsa de couro marrom cair.  ― Anthony, você consegue caminhar? ― Eu te ajudo a levar o seu filho ao hospital. ― Ele é meu irmão, e, além disso, não preciso de você! ― Sua irmã é sempre assim? Parece uma fera! Será que ela morde? ― Pegou o menino no colo. ― Ela é perigosa? ― Às vezes!  ― Não tem graça ― murmurou ela. ― Muito obrigada por me salvar! ― A voz terna de Anthony soou cheia de gratidão ― Não por isso, campeão! Peter ergueu a sobrancelha com uma aparência séria ao fitar Charlotte. ― Por que você não é tão educada como o seu irmão? Charlotte bufou e deu-lhe as costas, pegou a cadeira e a bolsa, seguiu o caminho à frente deles. Andaram por quase dez minutos. ― Anthony, acho que você consegue sentar na garupa da bicicleta?  Ela tentou disfarçar, levaria quarenta e cinco minutos de bicicleta do centro de Rio das Flores até a humilde casa no Abarrancamento. ― É longe, Charlotte. ― Levo vocês, meu carro está ali ― apontou para o outro lado da rua ― precisamos levar o seu irmão ao médico. ― Não precisa! ― Charlotte tencionou o canto dos lábios curvos assim que tirou o cadeado da bicicleta rosa. ― Anthony está bem! ― Por acaso você é médica? ― indagou com uma certa ironia na voz grave. ― O seu irmão se afogou, por sorte eu consegui socorrê-lo a tempo. ― Peter ergueu a mandíbula quadrada ao confrontá-la. ― Eu levo o meu irmão ao hospital. ― Qual é o seu problema? ― Os olhos de ônix a perscrutou logo que abriu a porta da caminhonete preta.  ― Não precisamos da sua caridade ― retrucou Charlotte ― Eu só quero ajudar! ― A voz barítona suavizou.    Peter tomou a bicicleta de Charlotte e colocou na traseira do carro. ― Por favor, Charlotte! ― A voz terna e infantil intercedeu. ― Peter me salvou, não brigue com ele.  Os lábios se mexeram, no entanto, Charlotte desistiu de argumentar. Ver o rosto abatido do irmão desarmou todas as suas defesas. Ela sentou ao lado de Anthony no banco de trás do carro  e acariciou-lhe os fios lisos no topo da cabeça. Naquela tarde, Peter os levou a uma clínica médica no centro da cidade. Após fazer alguns exames e passar pelo pediatra, Anthony parecia mais animado. Mesmo contra a vontade dela, Peter arcou com as despesas médicas. O sol se escondia no horizonte quando eles saíram da clínica e caminharam até o carro no estacionamento. ― Pode pegar a minha bicicleta? ― Claro, mas só se você disser a palavrinha mágica.  ― Havia um vestígio de humor na voz grave. ― O Anthony sabe! ― Riu para o irmão de Charlotte. ― Pode pegar, por favor! ― Trincou os dentes. ― Não, eu não posso! Eu vou levar vocês para casa.― Peter abriu a porta do carro  ― Eu não pedi a sua ajuda! ― Charlotte, já anoiteceu. ― Coçou os olhos com os dedos longos. ― É perigoso para vocês andarem por aí sozinhos. Fazia algum tempo que Charlotte não via tamanha gentileza para com ela ou alguém de sua família. ― Por favor, vamos!   Embora ela não suportasse Peter, aceitou a carona pelo bem-estar do irmão. Mirou a paisagem enquanto o irmão dormia em seus braços. Depois de uma curva, contemplou a igreja matriz próxima à praça e fez o sinal da cruz. Os olhos tão escuros quanto o carvão observou Charlotte pelo retrovisor, olhou para o display do celular que insistia em vibrar e rejeitou a ligação de sua mãe. O estudante de engenharia era filho único de um casamento inter-racial. A pele leitosa de Peter era tão clara quanto a de Noah, seu pai; entretanto, ele sempre quis parecer com a mãe. Dayanne tinha uma pele viçosa, a melanina dela reluzia.  Em poucos minutos, Peter estacionou. O toque das mãos masculinas despertaram Charlotte do cochilo, o corpo estremeceu com o carinho em seus ombros. Ela enrijeceu no banco do carro e o fitou com os olhos apertados.  ― Não me toque!   ― Calma, nós chegamos! Peter mirou as pessoas que se aglomeravam na pequena cerca de madeira em volta da casa de Charlotte.   ― Quem são essas pessoas? ― São os meus vizinhos!  Uma ambulância estava parada a pouco mais de um metro. Charlotte abriu a porta do automóvel e saiu às pressas. ― Charlotte, espere! ― A idosa com alguns fios brancos se aproximou. ― Eu estava cuidando do seu pai, ele teve um m*l-estar. ― Theresa tentou explicar. ― Onde está o meu pai? ― As pupilas dos olhos claros dilataram.  ― Ele está bem? ― Eu chamei os médicos…― A voz arrastada de Theresa falhou. Charlotte dispensou a explicação e desvencilhou-se dos curiosos que se amontoavam na porta de madeira envernizada. Passou pela pequena sala com apenas uma poltrona e trombou com um homem alto que trajava um macacão azul-marinho. ― Vocês vão levar o meu pai para o hospital? ― Seu pai infartou, infelizmente o coração dele não aguentou! ― Um dos paramédicos disse com uma voz pesarosa. ― Fizemos tudo o que podíamos! ― Não! Vocês precisam continuar tentando. Charlotte correu para cama onde repousava o corpo inerte do pai.  ― Meu pai é forte, ele vai ficar bem! ― Abraçou forte a pele fria do corpo imóvel ― Lamento, não temos o que fazer! ― O paramédico se retirou com a equipe. ― VOCÊS PRECISAM LEVAR O MEU PAI PARA O HOSPITAL ― gritou com a equipe de médicos que se retirava  ― VOLTEM! Os berros da voz embargada pelo choro chamava a atenção de todos. Ninguém estava preparado para uma despedida tão repentina. Logo que ouviu os gritos, Peter pediu a Anthony que permanecesse no carro e correu para dentro da casa. ― Peter, faz aquele negócio que você fez no Anthony.  ― O rosto estava molhado pelas lágrimas. ― Por favor, ajuda o meu pai!  A cena cortou-lhe o coração, Peter não conteve o impulso de puxá-la contra os ombros largos. ― Sinto muito!   ― Por favor! ― Charlotte encostou o rosto contra o peitoral dele. ― Ele precisa respirar.  Pela primeira vez, ela deixou-se envolver no carinho reconfortante. Passou anos respeitando a própria força para conseguir lutar, Charlotte sempre escondia os sentimentos por entre as paredes do coração de pedra. ― Vem cá! ― Peter apertou-lhe por entre os braços e tentou acalmá-la. ― Você precisa ser forte, o seu irmão precisa de você.― Beijou-lhe o topo da cabeça. ― Não, tenho que resolver tudo!   Ela se afastou  e deu alguns passos até a cama de madeira. Olhou para o pai mais uma vez e limpou o rosto com as costas das mãos. Peter sentiu sua dor quando os olhos se cruzaram. Lágrimas insistiam em cair pelo canto dos olhos profundos. ― Charlotte, fica perto do seu irmão. ― A mão comprida secou-lhe uma lágrima. ― Eu cuido de tudo!  Charlotte sentiu-se desconfortável, afinal, ela não sabia quem era aquele homem ou que Peter realmente queria. É óbvio que ela poderia se negar a receber a ajuda, mas tudo o que desejava era se esconder para chorar. ― Por que está fazendo isso por mim? ― Os olhos marejados o fitaram. ― Você não precisa… ― Pare de brigar, Charlotte!  ― Theresa a advertiu. ― Conversa com o seu irmão, fica perto dele!  Charlotte assentiu com a cabeça e silenciou, tinha receio de falar demais com aquela mulher sábia que sempre lhe deu suporte. Theresa era como uma avó que ela nunca teve. Foi  ela quem lhe ensinou a ler e a escrever. Aquela senhora, com fios brancos e o rosto marcado por rugas, foi a única que a incentivou a continuar os estudos e a concluir o colegial.                                                             Após duas semanas tentando lidar com os últimos acontecimentos, Charlotte procurava se manter forte pelo irmão. Trabalhava na pequena horta assim que acordava às quatro da manhã e prosseguia com sua costumeira rotina. As insistentes implicâncias da patroa e os olhares estranhos que o patrão lhe dirigia, não incomodavam como antes.  Charlotte só pensava em como conseguiria dinheiro para quitar as prestações atrasadas da casa. Ela organizou os legumes e as verduras sobre a bancada, arrumou alguns produtos nas prateleiras e colocou os preços sem notar os grandes olhos negros que a avaliava. ― Olá! ― Peter pigarreou antes de continuar. ― Como você está? ― Estou ótima! ― Forçou um sorriso ao ver que os olhos da patroa a fuzilavam. ― Posso ajudá-lo, senhor? ― Que educada, parece outra pessoa! ― A forma brincalhona de Peter tentou amenizar a tensão. ― Quero algumas coisas que estão nesta lista.   Ele mexeu no bolso da calça Jeans e retirou um papel dobrado em duas partes. Entregou a folha com letras que mais pareciam garranchos. ― Você precisa de alguma coisa? ― Eu não preciso de nada! ― Charlotte respondeu com um ar arrogante. ― Eu ainda tenho que pagar o dinheiro dos gastos médicos com o meu irmão e com o funeral do meu pai. ― Ao falar de novo, a voz de Charlotte soou baixa e melancólica. ― 5 mil dólares!  ― O quê? ― Arqueou as sobrancelhas. ― Por acaso você é surda? Eu disse que você me deve 5 mil. Charlotte pegou alguns tomates, cebolas e o alho poró embalados e colocou em uma sacola depois de registrar. ― Perdão! ― desculpou-se a voz rouca. Peter tentou ser engraçado, mas se arrependeu quando Charlotte ficou em silêncio.― Você não me deve nada!  ― Insisto em pagar ― retrucou com a voz alterada. ― Isso são modos de tratar um cliente? ― Mary se aproximou da funcionária. ― Charlotte, Peça desculpas ao senhor Alcântara! ― Não!   Um semi sorriso mostrou uma fisionomia de desprezo no canto do rosto. Charlotte estava de saco cheio de abaixar a cabeça.  ― Não há problemas! ― tentou ajudá-la.― Nós somos amigos. ― Nós não somos amigos, eu nem sei quem é você. ― Chega! Minha paciência se esgotou ― Mary bateu o punho cerrado contra o balcão. ― Charlotte, você está demitida! ― Que ótimo!  ― Charlotte retirou o avental verde e jogou sobre o balcão. ― Está satisfeito? ― O olhar de âmbar se estreitou em Peter.
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