Um pensamento angustiante lhe veio à mente, o desespero não permitia que Charlotte pensasse com clareza. Ver o irmão caçula imóvel sobre a pedra a angustiava. Era a segunda vez que Peter verificava o pulso e a respiração de Anthony. Repetiu a manobra, sugou o ar e soprou-lhe o fôlego depois de levantar o queixo.
― Isso, campeão! ― Colocou Anthony de lado quando ele tossiu e expeliu a água. ― Calma, você vai ficar bem!
Charlotte puxou o irmão para os braços, por um descuido quase o perdeu, lágrimas fluíam dos cantos dos olhos.
― Você precisa ter mais cuidado!
― Eu estava olhando o Anthony, foi você que me distraiu.
― De nada! ― Peter caçoou. ― Essa parte é perigosa, tem correntezas.
― Quero ir para casa! ― A voz abatida de Anthony interrompeu a briga.
― Vamos!
Ela se esforçou para pegar o irmão no colo. Tentou pegar a cadeira e a bolsa com os lanches, mas deixou a bolsa de couro marrom cair.
― Anthony, você consegue caminhar?
― Eu te ajudo a levar o seu filho ao hospital.
― Ele é meu irmão, e, além disso, não preciso de você!
― Sua irmã é sempre assim? Parece uma fera! Será que ela morde? ― Pegou o menino no colo. ― Ela é perigosa?
― Às vezes!
― Não tem graça ― murmurou ela.
― Muito obrigada por me salvar! ― A voz terna de Anthony soou cheia de gratidão
― Não por isso, campeão!
Peter ergueu a sobrancelha com uma aparência séria ao fitar Charlotte.
― Por que você não é tão educada como o seu irmão?
Charlotte bufou e deu-lhe as costas, pegou a cadeira e a bolsa, seguiu o caminho à frente deles. Andaram por quase dez minutos.
― Anthony, acho que você consegue sentar na garupa da bicicleta?
Ela tentou disfarçar, levaria quarenta e cinco minutos de bicicleta do centro de Rio das Flores até a humilde casa no Abarrancamento.
― É longe, Charlotte.
― Levo vocês, meu carro está ali ― apontou para o outro lado da rua ― precisamos levar o seu irmão ao médico.
― Não precisa! ― Charlotte tencionou o canto dos lábios curvos assim que tirou o cadeado da bicicleta rosa. ― Anthony está bem!
― Por acaso você é médica? ― indagou com uma certa ironia na voz grave. ― O seu irmão se afogou, por sorte eu consegui socorrê-lo a tempo. ― Peter ergueu a mandíbula quadrada ao confrontá-la.
― Eu levo o meu irmão ao hospital.
― Qual é o seu problema? ― Os olhos de ônix a perscrutou logo que abriu a porta da caminhonete preta.
― Não precisamos da sua caridade ― retrucou Charlotte
― Eu só quero ajudar! ― A voz barítona suavizou.
Peter tomou a bicicleta de Charlotte e colocou na traseira do carro.
― Por favor, Charlotte! ― A voz terna e infantil intercedeu. ― Peter me salvou, não brigue com ele.
Os lábios se mexeram, no entanto, Charlotte desistiu de argumentar. Ver o rosto abatido do irmão desarmou todas as suas defesas. Ela sentou ao lado de Anthony no banco de trás do carro e acariciou-lhe os fios lisos no topo da cabeça.
Naquela tarde, Peter os levou a uma clínica médica no centro da cidade. Após fazer alguns exames e passar pelo pediatra, Anthony parecia mais animado. Mesmo contra a vontade dela, Peter arcou com as despesas médicas. O sol se escondia no horizonte quando eles saíram da clínica e caminharam até o carro no estacionamento.
― Pode pegar a minha bicicleta?
― Claro, mas só se você disser a palavrinha mágica. ― Havia um vestígio de humor na voz grave. ― O Anthony sabe! ― Riu para o irmão de Charlotte.
― Pode pegar, por favor! ― Trincou os dentes.
― Não, eu não posso! Eu vou levar vocês para casa.― Peter abriu a porta do carro
― Eu não pedi a sua ajuda!
― Charlotte, já anoiteceu. ― Coçou os olhos com os dedos longos. ― É perigoso para vocês andarem por aí sozinhos.
Fazia algum tempo que Charlotte não via tamanha gentileza para com ela ou alguém de sua família.
― Por favor, vamos!
Embora ela não suportasse Peter, aceitou a carona pelo bem-estar do irmão. Mirou a paisagem enquanto o irmão dormia em seus braços. Depois de uma curva, contemplou a igreja matriz próxima à praça e fez o sinal da cruz.
Os olhos tão escuros quanto o carvão observou Charlotte pelo retrovisor, olhou para o display do celular que insistia em vibrar e rejeitou a ligação de sua mãe. O estudante de engenharia era filho único de um casamento inter-racial. A pele leitosa de Peter era tão clara quanto a de Noah, seu pai; entretanto, ele sempre quis parecer com a mãe. Dayanne tinha uma pele viçosa, a melanina dela reluzia.
Em poucos minutos, Peter estacionou. O toque das mãos masculinas despertaram Charlotte do cochilo, o corpo estremeceu com o carinho em seus ombros. Ela enrijeceu no banco do carro e o fitou com os olhos apertados.
― Não me toque!
― Calma, nós chegamos!
Peter mirou as pessoas que se aglomeravam na pequena cerca de madeira em volta da casa de Charlotte.
― Quem são essas pessoas?
― São os meus vizinhos!
Uma ambulância estava parada a pouco mais de um metro. Charlotte abriu a porta do automóvel e saiu às pressas.
― Charlotte, espere! ― A idosa com alguns fios brancos se aproximou. ― Eu estava cuidando do seu pai, ele teve um m*l-estar. ― Theresa tentou explicar.
― Onde está o meu pai? ― As pupilas dos olhos claros dilataram. ― Ele está bem?
― Eu chamei os médicos…― A voz arrastada de Theresa falhou.
Charlotte dispensou a explicação e desvencilhou-se dos curiosos que se amontoavam na porta de madeira envernizada. Passou pela pequena sala com apenas uma poltrona e trombou com um homem alto que trajava um macacão azul-marinho.
― Vocês vão levar o meu pai para o hospital?
― Seu pai infartou, infelizmente o coração dele não aguentou! ― Um dos paramédicos disse com uma voz pesarosa. ― Fizemos tudo o que podíamos!
― Não! Vocês precisam continuar tentando.
Charlotte correu para cama onde repousava o corpo inerte do pai.
― Meu pai é forte, ele vai ficar bem! ― Abraçou forte a pele fria do corpo imóvel
― Lamento, não temos o que fazer! ― O paramédico se retirou com a equipe.
― VOCÊS PRECISAM LEVAR O MEU PAI PARA O HOSPITAL ― gritou com a equipe de médicos que se retirava ― VOLTEM!
Os berros da voz embargada pelo choro chamava a atenção de todos. Ninguém estava preparado para uma despedida tão repentina. Logo que ouviu os gritos, Peter pediu a Anthony que permanecesse no carro e correu para dentro da casa.
― Peter, faz aquele negócio que você fez no Anthony. ― O rosto estava molhado pelas lágrimas. ― Por favor, ajuda o meu pai!
A cena cortou-lhe o coração, Peter não conteve o impulso de puxá-la contra os ombros largos.
― Sinto muito!
― Por favor! ― Charlotte encostou o rosto contra o peitoral dele. ― Ele precisa respirar.
Pela primeira vez, ela deixou-se envolver no carinho reconfortante. Passou anos respeitando a própria força para conseguir lutar, Charlotte sempre escondia os sentimentos por entre as paredes do coração de pedra.
― Vem cá! ― Peter apertou-lhe por entre os braços e tentou acalmá-la. ― Você precisa ser forte, o seu irmão precisa de você.― Beijou-lhe o topo da cabeça.
― Não, tenho que resolver tudo!
Ela se afastou e deu alguns passos até a cama de madeira. Olhou para o pai mais uma vez e limpou o rosto com as costas das mãos. Peter sentiu sua dor quando os olhos se cruzaram. Lágrimas insistiam em cair pelo canto dos olhos profundos.
― Charlotte, fica perto do seu irmão. ― A mão comprida secou-lhe uma lágrima. ― Eu cuido de tudo!
Charlotte sentiu-se desconfortável, afinal, ela não sabia quem era aquele homem ou que Peter realmente queria. É óbvio que ela poderia se negar a receber a ajuda, mas tudo o que desejava era se esconder para chorar.
― Por que está fazendo isso por mim? ― Os olhos marejados o fitaram. ― Você não precisa…
― Pare de brigar, Charlotte! ― Theresa a advertiu. ― Conversa com o seu irmão, fica perto dele!
Charlotte assentiu com a cabeça e silenciou, tinha receio de falar demais com aquela mulher sábia que sempre lhe deu suporte. Theresa era como uma avó que ela nunca teve. Foi ela quem lhe ensinou a ler e a escrever. Aquela senhora, com fios brancos e o rosto marcado por rugas, foi a única que a incentivou a continuar os estudos e a concluir o colegial.
Após duas semanas tentando lidar com os últimos acontecimentos, Charlotte procurava se manter forte pelo irmão. Trabalhava na pequena horta assim que acordava às quatro da manhã e prosseguia com sua costumeira rotina. As insistentes implicâncias da patroa e os olhares estranhos que o patrão lhe dirigia, não incomodavam como antes.
Charlotte só pensava em como conseguiria dinheiro para quitar as prestações atrasadas da casa. Ela organizou os legumes e as verduras sobre a bancada, arrumou alguns produtos nas prateleiras e colocou os preços sem notar os grandes olhos negros que a avaliava.
― Olá! ― Peter pigarreou antes de continuar. ― Como você está?
― Estou ótima! ― Forçou um sorriso ao ver que os olhos da patroa a fuzilavam. ― Posso ajudá-lo, senhor?
― Que educada, parece outra pessoa! ― A forma brincalhona de Peter tentou amenizar a tensão. ― Quero algumas coisas que estão nesta lista.
Ele mexeu no bolso da calça Jeans e retirou um papel dobrado em duas partes. Entregou a folha com letras que mais pareciam garranchos.
― Você precisa de alguma coisa?
― Eu não preciso de nada! ― Charlotte respondeu com um ar arrogante. ― Eu ainda tenho que pagar o dinheiro dos gastos médicos com o meu irmão e com o funeral do meu pai. ― Ao falar de novo, a voz de Charlotte soou baixa e melancólica.
― 5 mil dólares!
― O quê? ― Arqueou as sobrancelhas.
― Por acaso você é surda? Eu disse que você me deve 5 mil.
Charlotte pegou alguns tomates, cebolas e o alho poró embalados e colocou em uma sacola depois de registrar.
― Perdão! ― desculpou-se a voz rouca. Peter tentou ser engraçado, mas se arrependeu quando Charlotte ficou em silêncio.― Você não me deve nada!
― Insisto em pagar ― retrucou com a voz alterada.
― Isso são modos de tratar um cliente? ― Mary se aproximou da funcionária. ― Charlotte, Peça desculpas ao senhor Alcântara!
― Não!
Um semi sorriso mostrou uma fisionomia de desprezo no canto do rosto. Charlotte estava de saco cheio de abaixar a cabeça.
― Não há problemas! ― tentou ajudá-la.― Nós somos amigos.
― Nós não somos amigos, eu nem sei quem é você.
― Chega! Minha paciência se esgotou ― Mary bateu o punho cerrado contra o balcão. ― Charlotte, você está demitida!
― Que ótimo! ― Charlotte retirou o avental verde e jogou sobre o balcão. ― Está satisfeito? ― O olhar de âmbar se estreitou em Peter.