Sofia Narrando
Terminei de passar o pano enxugando a cozinha, e já fui tomar meu banho, almocei. Escovei os meus dentes e peguei minha mochila.
Elís tava deitada, mexendo no celular.
— Tô indo pra escola — avisei, parada na porta.
— Uhum — respondeu sem tirar os olhos da tela.
Fui sem esperar mais nada. Nem sei porque ainda falo com essa mulher, Ela não dá a mínima para mim.
O dia na escola foi tranquilo, aula normal, nada demais. Ri com as meninas, falei m*l da professora de geografia e tentei prestar atenção em matemática, porque tenho prova amanhã. Na volta, já fui pensando nos bolos e salgados que eu ainda tinha que fazer pra minha avó vender amanhã.
Mas quando cheguei em casa, senti que alguma coisa tava errada.
O portão da frente tava aberto, e a casa estranhamente silenciosa. O sol da tarde batia de lado, fazendo sombra nos móveis da sala. A cadeira de balanço da minha vó tava vazia. Aquilo já me deu um aperto no peito, porque era sempre ali que ela ficava, vendo alguma reprise de novela antiga. Mas quem estava na sala era minha mãe sentada no sofá, arrumada, maquiagem feita, cabelo escovado e com uma mochila do lado. Continuava no celular.
Não falei nada. Só fui direto pra cozinha.
Minha vó tava lá, em pé perto do fogão, mexendo numa panela com cheiro de arroz.
— Oi, minha véia! — abracei por trás, dando um beijo no rosto dela.
Ela sorriu fraco e se virou.
— Sua mãe tá indo embora, Sofia. Vai passar um tempo fora do Rio, se meteu em umas broncas aí. Vai lá pedir a bênção a ela. E se despedir, ninguém sabe quando ela volta.
Meus olhos se arregalaram, mas nem tive reação.
Voltei pra sala, devagar, e fiquei parada olhando pra ela. Elís continuava sentada, agora com o celular no colo, olhando pro nada.
— Boa viagem. — falei, seca.
Ela levantou, meio sem jeito, e veio até mim. Me deu um beijo rápido na testa.
— Valeu. — murmurou. — O carro já chegou! — gritou em direção à porta.
Nem olhou pra trás, muito menos foi se despedir da minha vó.
Quando a porta bateu, me sentei no sofá, em silêncio. O barulho do carro descendo a rua veio abafado, e fiquei ali parada por alguns segundos, processando tudo.
Voltei pra cozinha.
— Vó, pra onde ela foi?
— Só Deus sabe, minha filha. Essa tua mãe não tem jeito mesmo.
Assenti com a cabeça. Já nem doía mais.
— Pra mim ela é tanto faz, vó. Não me importo mais, de verdade.
Ela suspirou fundo e me deu um beijo no topo da cabeça.
— Você é forte, menina. Mais do que imagina.
Fui pro meu quarto, tomei outro banho pra tirar o cansaço do dia, prendi o cabelo e voltei pra cozinha. Ainda tinha que fazer os bolos, os salgadinhos e separar os lanches da manhã. E mais tarde, precisava estudar pra prova.
Elís já é bem grandinha, sabe se cuidar.
Quem precisa cuidar da minha vó, sou eu.
Naquela noite, tentei me concentrar nos estudos, mas a cabeça não ajudava. A imagem da minha mãe indo embora sem olhar pra trás não saía da minha mente. Mesmo assim, revisei o conteúdo da prova de matemática. Fiz o possível. Já era quase meia-noite quando apaguei, e o despertador parecia ter tocado cinco minutos depois.
Já me levantei, fui jogar água fria no rosto para despertar. E Já corri para cozinha ajudar a minha avó, depois que ela saiu segui a minha rotina. E sempre passando a matéria na mente.
Me arrumei, comi rápido e fui pra escola. Fiz a prova com calma, respirei fundo, revisei tudo no final. Achei que me saí bem, melhor do que esperava, pelo menos. Quando terminou, me despedi das meninas no portão e segui o caminho de volta pra casa, como sempre.
Mas alguma coisa no ar parecia errada.
Senti um arrepio estranho, como se estivesse sendo observada. Apressei o passo, tentando ignorar, mas o barulho de um motor veio atrás. Quando olhei discretamente pra trás, vi um carro preto vindo devagar, no mesmo ritmo que eu andava.
Gelei.
Não pensei duas vezes: comecei a correr.
Foi aí que o carro acelerou também, e meu coração quase saiu pela boca. Corri o mais rápido que consegui, mas um homem saiu do banco de trás em movimento. Ele me alcançou rápido e segurou forte no meu braço.
— Não faz escândalo. É jogo rápido. O chefe só quer trocar uma ideia contigo.
— Me solta! Eu nem sei quem é teu chefe — gritei, tentando puxar meu braço.
Ele deu uma risadinha.
— Você não conhece, mas sua mãe conhece muito bem.
Na hora, meu corpo inteiro estremeceu. O sangue gelou nas veias. A lembrança veio como um soco no estômago: minha vó dizendo que Elís tinha se metido em encrenca. A dívida com o novo dono do Chapadão. Aquilo era verdade, então.
— Eu não vou com você — gritei, desesperada, tentando me soltar. — Me solta! Socorro! Alguém me ajuda.
Comecei a gritar no meio da rua, esperneando, puxando meu corpo pra trás. Tentei morder o braço dele, chutei sua canela, me debati como pude.
— Fica quieta, garota — ele rosnou, me agarrando pela cintura.
As pessoas começaram a olhar, mas ninguém fez nada. Alguns até aceleraram o passo, fingindo que não viram.
O homem me arrastou até a porta do carro, abriu com força e me empurrou lá dentro. Bati o ombro no banco e ainda tentei sair, mas ele entrou atrás de mim e me segurou firme enquanto o carro arrancava com tudo.
— Eu não tenho nada a ver com minha mãe, Me solta — gritei, chutando o banco da frente.
Meu corpo tremia de pavor. As lágrimas começaram a escorrer sem controle. Bati nas janelas, nos bancos, tentei abrir a porta, mas já tava trancada. O motorista nem olhava pra trás. Só dirigia em silêncio, como se sequestrar uma menina fosse parte da rotina dele.
E eu ali, desesperada, gritando, presa, sem saber o que ia acontecer.
Nas mãos de alguém que eu nem conhecia.
Mas que conhecia muito bem a minha mãe. Elís sempre dá um jeito de ferrar com a minha vida.