Jaime Beaumont
Acordei com uma dor de cabeça infernal. Sabe aquela que parece que uma britadeira tá operando dentro do crânio? Pois é.
Me levantei devagar, completamente nu. Ótimo. Mais uma noite daquelas.
Virei o rosto e lá estavam elas — duas loiras esparramadas na cama, dormindo como se o mundo tivesse parado. Por um segundo, achei que estava vendo em dobro por causa do tanto que bebi. Mas não... eram duas mesmo.
Eu só lembrava de uma. Ou achei que era só uma. f**a-se.
Caminhei até o banheiro e liguei o chuveiro direto no gelado.
— p***a! — resmunguei alto, sentindo o gelo cortar minha pele. Mas era disso que eu precisava.
Sempre preferi banho gelado. Água quente me dá sono e mimimi. Já o gelo desperta a alma, ativa a circulação, tira a ressaca e ainda por cima mantém a pele no lugar. Frio, sim. Mas justo.
Saí do banheiro mais vivo que nunca, cabelos molhados, respiração calma. Foi aí que meu celular começou a tocar. Olhei o visor: Felipe.
Pensei em ignorar. Mas atendi mesmo assim.
Ligação on
— Fala.
— Onde você tá, Jaime?
— Em Noronha.
— Em Noronha, cara? Sério isso?
— Sim. Precisava de um descanso.
— Jaime, toda semana você “precisa de um descanso”?
— Sim. Próxima pergunta.
— A empresa tá um caos. O seu consultório também. Que ideia estúpida foi essa de querer tocar a empresa do papai e ainda manter um hospital no meio? Decide, cara.
— Relaxa, Lipe. Amanhã volto pra São Paulo e resolvo tudo. Mas não, não vou largar a medicina. Eu amo aquilo. Não tô ali por status — tô porque gosto de cuidar. Coisa que você devia tentar um dia: cuidar de alguém. Ou pelo menos de uma mulher. Vai t*****r, p***a, e para de parecer um aposentado com gastrite.
— Tem hora que eu acho que o mais velho sou eu.
— E é mesmo. Pelo menos no espírito.
— i****a. Só aparece aqui amanhã.
— Sim, senhor papai.
— Babaca.
Ligação off
Antes que eu pudesse respirar de novo, ouvi uma voz manhosa vinda do quarto.
— Gatinho, cadê você?
Logo a segunda completou:
— A gente tava com saudade...
Não respondi. Só fui até o armário, peguei uma calça jeans, vesti uma camiseta branca e comecei a me arrumar.
Sexo é bom, mas repeteco não é comigo.
— Delícia... — disse uma delas, se esticando sobre os lençóis. — Não quer brincar mais um pouquinho?
— Não. Podem se vestir. A diversão acabou.
— O que houve, amorzinho?
— Nada. Só tenho uma regra: não repito f**a.
Elas se entreolharam. Uma riu com desdém.
— Vambora, mana. Deixa esse i****a aí. — disse a que parecia mais ousada, enquanto recolhia a calcinha do chão.
Idiota?
Pode até ser.
Mas gemeram meu nome como se fosse oração — e pediram bis até perderem a voz.
O babaca aqui sabe deixar saudade.
••••••••••••
Entrei na empresa e, como sempre, o Lipe já veio na voadora com uma pilha de papel na mão e outra na testa.
— Que recepção calorosa. Bom dia pra você também, Lipe. — murmurei, sarcástico.
— Vai à merda, Jaime! Isso é hora de chegar? O Gilberto tá te esperando há mais de quarenta minutos. A “vossa majestade” não acha que precisa respeitar agenda agora?
— Lipe, se continuar assim vai infartar antes dos cinquenta. Falo isso como médico, viu? É diagnóstico e previsão.
— O meu problema de saúde é você, seu i****a!
— Menos drama, mais reunião. Bora resolver isso logo.
Entramos na sala e lá estava o Gilberto, elegante como sempre, com aquele ar de quem acha que está mudando o mundo. Cumprimentei-o com um sorriso e fomos direto ao assunto.
Gilberto queria colocar uma criação sua nas prateleiras da nossa empresa — a On The Trend — uma das maiores redes de lojas de departamento do mundo, presente em vinte e oito países. Vendemos de tudo: eletrônicos, roupas, brinquedos, decoração, papelaria, móveis... e a galera adora porque os preços são justos, acessíveis. A fórmula do sucesso é simples: qualidade, variedade e preço que não mata ninguém.
Duas horas de reunião depois, fechei com ele. O perfume seria vendido nas nossas lojas, mas com uma condição: preço acessível. Ele tentou pechinchar um pouco — clássico — mas acabou cedendo.
— Foi ótimo fazer negócios com você, Jaime. — disse ele, sorrindo.
— O prazer foi meu, Gilberto.
— Em breve, vamos marcar um jantar. Quero que conheça minha filha. Ela tem tudo a ver com você.
— Claro. Vai ser um prazer. Mas agora preciso correr, tenho uma fila de pacientes me esperando.
Saí da sala, deixando os detalhes burocráticos pro Lipe resolver, e fui direto pra Guarulhos, onde atendo no hospital público.
— Bom dia, doutor Beaumont! — cumprimentou a Joana, a enfermeira da recepção.
— Bom dia, Joana. Bora pra mais um dia de caos controlado.
Cumprimentei o pessoal do corredor, entrei na minha sala, vesti o jaleco e comecei os atendimentos.
A maioria dos meus pacientes é humilde. Gente simples, batalhadora. Faço questão de passar medicamentos acessíveis, e quando o remédio é caro demais, busco alternativas. Se não tiverem condição de comprar, voltam pior. E eu me recuso a ver alguém morrer por falta de dinheiro.
No meio de uma consulta, meu celular vibrou. Ignorei. Vibrou de novo. E de novo. Olhei. Rebeca.
Suspirei. E atendi.
Ligação on
— Fala, Rebeca.
— Amorzinho, onde você tava? Liguei e só dava caixa postal!
— Tava em viagem de trabalho. Sem acesso ao celular.
— Mas eu sou sua noiva!
— Você se deu esse título sozinha, Rebeca. Eu nunca te pedi em casamento.
— Vai pedir. E vai ser amanhã. Entendeu?
— Rebeca, tô no hospital. Tô trabalhando. Agora não é hora pra isso.
— Aposto que tá aí no meio daqueles pobretões de novo. Não sei porque você perde seu tempo com esse tipo de gente. Você devia atender pacientes do nosso nível!
— Do nosso nível? Rebeca, eu atendo quem precisa. Quem não tem acesso a nada. E se isso te incomoda, o problema é todo seu.
Não gostou? Pega teu salto alto e vai embora.
— Ai, desculpa, Jaime... Não falo mais dos seus... protegidos. Tá bem? Não está mais aqui quem falou!
— Tchau, Rebeca.
Ligação off
Na adolescência, eu era só farra, festas, bebedeira e p*****a. A escola era um detalhe opcional. Medicina nem passava pela minha cabeça. Mas tudo mudou quando a minha mãe adoeceu.
A gente não tinha grana. Contamos só com o SUS. E mesmo com toda a luta, ela não resistiu.
Ali, naquele hospital gelado e caótico, eu fiz um juramento. Que enquanto eu tivesse um jaleco branco nas costas, ninguém ia morrer por negligência. Não se eu pudesse evitar.
— Doutor... muito, muito obrigado. Eu não tenho dinheiro, mas trouxe isso aqui pra te agradecer. — disse seu Martim, me entregando... uma galinha viva.
— Não precisava, Martim.
— Claro que precisava! Se não fosse o senhor, minha filha teria morrido. A gente não esquece isso, não.
— Eu só fiz meu trabalho, Martim.
— Mesmo assim... aceite.
Suspirei. Sorri.
— Tá bom. Vou aceitar a galinha. Mas agora você me deve uma foto dela viva. Nada de sopa hoje.
Ele riu, emocionado, e saiu segurando a gaiola vazia, como se tivesse deixado ali a maior prova de gratidão que podia oferecer.
Não foi o primeiro. Já ganhei até porco de presente. Distribuí tudo pra quem precisa.
Mas aquela galinha... aquela eu talvez até batize.
Povo pensa que eu sou só um playboy metido a CEO. Mas ninguém sabe que o que me move... é o sangue que carrego. E a dor que transformei em missão.