As luzes vermelhas do camarim pulsavam em um ritmo quase hipnótico, refletindo no espelho diante dela. Atena Montez ajeitou a alça de cetim do vestido justo que moldava suas curvas com precisão c***l — era como se aquela peça soubesse exatamente onde tocar, onde apertar, onde provocar. Vermelho. Sempre vermelho.
O tecido reluzia sob as lâmpadas quentes, como se dançasse antes mesmo de ela subir ao palco. Era o vestido que a boate escolhera para ela desde a primeira noite. Um sĂmbolo. Uma armadura. Uma prisĂŁo.
Ela passou o batom com um movimento firme, experiente. Um vermelho escuro, quase vinho, que contrastava com sua pele morena e realçava ainda mais o olhar fatal que aprendera a sustentar. Seus olhos — delineados com perfeição — eram profundos, mas frios. Não havia espaço para ternura quando se dançava sob os olhos de predadores.
Mas, por dentro, ela tremia.
As unhas pintadas batiam levemente sobre o balcĂŁo de mármore do camarim. Era seu ritual antes de cada entrada: um momento de silĂŞncio, respiração controlada, e lembrança do motivo de estar ali. As contas. As dĂvidas. O passado. O nome da mĂŁe, repetido como mantra.
> "Só mais uma noite. Só mais uma dança. Só mais um olhar que eu ignoro."
A porta entreabriu-se, revelando Sônia, a mulher encarregada das dançarinas. Ela vestia preto dos pés à cabeça e tinha olhos treinados para detectar rachaduras em máscaras. Mas com Atena, ela nunca ousava insistir.
— Cinco minutos, querida. A casa tá cheia hoje. — disse com um leve sorriso. — Seu palco. Sua luz.
Atena assentiu, silenciosa. Quando SĂ´nia saiu, ela finalmente olhou para si mesma por inteiro.
Saltos finos. Meias rendadas. Brincos longos em formato de lágrima. O cabelo, cacheado e solto, caĂa como uma cascata sobre os ombros, com ondas que balançariam com cada giro que ela desse.
> Ela parecia uma mulher no controle. Mas sentia-se uma garota perdida num campo minado.
Na sala principal da boate, os sons abafados de risadas e copos tilintando se misturavam à batida grave da música ambiente. Era um lugar elegante, diferente do que se imaginava quando se falava em "boate". Mesas redondas com velas aromáticas, garçons discretos, um bar sofisticado ao fundo. E, ao centro, o palco circular envolto por cortinas rubras. O altar da intocável.
"A Dama de Vermelho", como era anunciada. Um espetáculo para os olhos, proibida ao toque.
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Do outro lado da cidade, Noah Cárter estava entediado.
— Só hoje, irmão. Só hoje! Tu vive trancado naquele laboratório, precisa relaxar — insistia Erick, seu colega de turma.
— Eu realmente não curto esse tipo de lugar — respondeu Noah, jogando a mochila no banco traseiro do carro. — Além disso, tenho relatório pra terminar.
— RelatĂłrio? Hoje Ă© sexta-feira. Teu fĂgado precisa mais de vocĂŞ do que esse relatĂłrio — brincou Erick, já ligando o carro.
Noah suspirou. Cedeu. Como sempre. Era assim que acabava em lugares que detestava, rodeado de gente que nĂŁo conhecia e ouvindo conversas sobre corpos, bebidas e conquistas vazias.
A boate chamava-se “Le Rouge” — chique, refinada, e misteriosa. A entrada era discreta, vigiada por dois seguranças de terno. Um tapete preto, nĂŁo vermelho. Os clientes eram em sua maioria homens de terno, empresários, herdeiros, polĂticos de sorrisos tortos.
Noah sentiu-se deslocado desde o primeiro passo. Mas algo o manteve ali. Curiosidade, talvez. Ou um estranho pressentimento.
— Fica atento — disse Erick. — Hoje é noite da Dama.
— Dama?
— A estrela da casa. Dança como se fosse feita de fogo. Mas ninguém encosta. Ninguém. Tem regra. Tem história. Tem lenda até.
Noah arqueou uma sobrancelha. Lenda? Era sĂł mais um nome artĂstico com um figurino provocante, ele pensou. AtĂ© o momento em que as luzes mudaram.
Um silêncio quase sagrado caiu sobre o salão. As cortinas rubras se abriram. E lá estava ela.
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O vestido vermelho parecia ter sido feito com sangue e desejo. Atena surgiu com passos lentos, sensuais, mas carregando uma leveza quase dolorosa. Seu corpo se movia como uma chama viva — ora delicada, ora feroz. Os cabelos cacheados balançavam em ondas ritmadas, acompanhando os giros que ela fazia com maestria.
A dança não era vulgar. Era arte. Era quase um grito contido. Um poema mudo.
Noah ficou paralisado. NĂŁo era sobre beleza — ainda que ela fosse belĂssima. Era sobre algo mais profundo. Uma dor que ele nĂŁo sabia nomear, mas que reconhecia no olhar dela.
> "Ela nĂŁo quer estar ali."
"Ela dança como se fosse sua última chance de liberdade."
Na mesa ao lado, um homem tentou se levantar, encantado demais. Mas dois seguranças surgiram como sombras, impedindo-o. A regra era clara: ela é intocável. E não apenas fisicamente. Havia algo nela que mantinha as pessoas afastadas mesmo sem o aviso.
> Mas Noah sentiu o contrário.
Ele queria se aproximar. Mas não com as mãos — com os olhos, com o coração. Como quem observa uma constelação distante e silenciosa.
Atena dançou por longos minutos. Quando terminou, o salão aplaudiu de pé. Ela abaixou o rosto, agradeceu com um leve gesto, e sumiu por trás das cortinas.
Mas, naquele breve instante em que olhou para o pĂşblico, seus olhos encontraram os dele.
E pararam.
Por um segundo.
Talvez dois.
Mas foi o suficiente.
O som abafado do aplauso ainda ecoava dentro de Atena quando ela atravessou as cortinas. O corredor que levava de volta aos camarins era estreito, iluminado por uma fileira de lâmpadas amareladas que lançavam sombras dançantes sobre as paredes.
Cada passo de salto ecoava como um lembrete: ali, ela nĂŁo era Atena. Era sĂł um papel.
Ela entrou no camarim e fechou a porta com força, como se pudesse trancar o mundo do lado de fora.
As mĂŁos tremiam.
Soltou os brincos, jogou-os sobre a bancada. Depois os saltos, e por fim, o vestido, que escorregou por suas pernas como uma serpente cansada. Envolveu-se em um robe de cetim preto, sentando-se diante do espelho.
— Você está brilhante esta noite, Atena — comentou Sônia, surgindo como sempre fazia, sem aviso. — O salão quase explodiu quando você girou na segunda música.
Atena apenas sorriu com os lábios. Nada nos olhos. Nunca havia nada nos olhos.
— Algum cliente incomodou? — Sônia insistiu, analisando seu reflexo.
— Não. Nada fora do habitual.
— Mas tem algo no seu rosto… — a mulher estreitou os olhos. — Você viu alguém ali fora, não viu?
Atena nĂŁo respondeu. E nĂŁo precisava. Porque havia visto sim.
Aquele olhar.
O Ăşnico que nĂŁo a devorava.
O único que não a desejava — mas a escutava, mesmo sem ela dizer uma palavra.
> Ele nĂŁo olhou para meu corpo.
Olhou para mim.
Ela balançou a cabeça, como quem espanta um pensamento perigoso. Aquilo nĂŁo podia acontecer. O coração, o dela, nĂŁo estava disponĂvel. Fora vendido há muito tempo, junto com os sonhos e a inocĂŞncia. Ela nĂŁo podia desejar mais nada.
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Enquanto isso, Noah permanecia sentado, imóvel. A boate seguiu seu curso, as luzes voltaram ao tom dourado, o bar recomeçou o movimento. Mas para ele, o tempo não parecia mais contar.
— Uau, você viu? — disse Erick, ainda impressionado. — Aquilo é arte, meu amigo. Arte. Tá explicado por que ninguém pode tocar. Essa mulher… é de outro planeta.
Noah nĂŁo respondeu. O nome dela nĂŁo fora anunciado, claro. Era parte do charme. Parte do mito.
Mas ele queria saber. Precisava saber.
— Como ela se chama? — perguntou, sem pensar.
Erick o encarou, surpreso.
— Ninguém sabe o nome verdadeiro. Aqui dentro, ela é só "A Dama de Vermelho". Nunca fala com os clientes, nunca sorri de verdade. Tipo… intocável mesmo. Uma espécie de segredo vivo.
Noah observava o palco vazio. Era só madeira e cortina agora. Mas ainda podia vê-la dançando.
— E por que ela trabalha aqui?
— Boatos. Alguns dizem que tem dĂvidas. Outros dizem que fugiu de alguma coisa. NinguĂ©m sabe ao certo. — Erick deu de ombros. — Mas tem uma coisa que todo mundo jura: ela nunca olha nos olhos de ninguĂ©m.
Noah virou lentamente para o amigo. Uma certeza silenciosa crescia dentro dele.
> Ela olhou nos meus.
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No vestiário, Atena colocava o capuz de seu moletom sobre os cabelos ainda úmidos. Limpou a maquiagem com rapidez, como quem apaga uma versão de si mesma. Àquela altura, já não sabia qual delas era a verdadeira.
Seu celular vibrou. Uma notificação do banco. O dinheiro do mês havia sido depositado.
Ela fechou os olhos, aliviada por um segundo, atĂ© lembrar da conta do hospital que venceria em dois dias. Suspirou fundo. Mais uma noite. Mais um mĂŞs. Mais uma dĂvida.
> "VocĂŞ nĂŁo pode se permitir querer outra coisa."
Mas a imagem daquele olhar nĂŁo saĂa da sua mente. Um rapaz entre todos, parado, sĂ©rio, os olhos presos nos dela como se a conhecessem. Como se a reconhecessem.
> Por que isso me abalou tanto?
Por que agora?
Ela desceu pela saĂda lateral da boate, cobrindo o rosto com o capuz, como sempre fazia. A noite estava fria. E suja. A cidade nunca dormia, mas sempre sonhava errado.
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Noah tambĂ©m saĂa, caminhando devagar com Erick em direção ao estacionamento. O ar noturno parecia diferente naquela noite. Mais denso.
Ele olhou para o prédio uma última vez, como se esperasse vê-la aparecer nas janelas. Claro que não aconteceu.
— Você tá estranho — disse Erick, destravando o carro. — Ficou impactado mesmo, hein?
Noah hesitou antes de responder.
— Eu preciso saber quem ela é.
Erick riu.
— Você e metade da cidade. A diferença é que ninguém consegue.
Noah entrou no carro, mas nĂŁo respondeu. Ele nĂŁo era como os outros. E sabia, com uma certeza inquieta, que aquele encontro nĂŁo fora Ă toa.
> Ela dançava como quem grita.
E ele, como alguém que ouve até os silêncios.
A luz da manhĂŁ entrava tĂmida pelas grandes janelas do ateliĂŞ da universidade. PincĂ©is, tintas abertas, cavaletes ocupados com telas inacabadas — tudo era caos criativo. O cheiro de tinta a Ăłleo e solvente se misturava com o de cafĂ© morno abandonado sobre as mesas.
Atena Montez estava ali, mas parecia ausente. Os olhos fixos na tela Ă sua frente, onde cores vermelhas e pretas se misturavam com violĂŞncia.
Ela já havia tentado pintar flores, corpos, retratos — mas ultimamente, sĂł saĂam tempestades.
Um borrĂŁo vermelho intenso atravessava o centro da tela.
Era ela mesma, embora nĂŁo tivesse coragem de pintar seu rosto.
Só o corpo em movimento, envolto em fumaça e luz. Intocável.
— Essa pintura tá gritando, Atena — comentou Camila, colega de turma. — Mas tipo... bonito. Tem algo nela. Tem história.
Atena deu um sorriso breve. Forçado. Como tudo nela durante o dia.
— Às vezes, é o único jeito de falar.
Camila já conhecia esse tom. Sabia que não era o momento de insistir. Deixou-a em paz, voltando à sua própria tela. Atena respirou fundo, tentando mergulhar de novo no quadro, mas sua mente estava longe demais. Estava presa no que não podia esquecer:
o olhar.
Aquele olhar da noite anterior.
Ele a viu. De verdade. E aquilo a perturbava mais do que todos os toques que ela já havia negado.
Ela precisava sair dali.
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Noah sentia que o mundo andava mais devagar desde aquela sexta-feira. Tentava se concentrar nas fĂłrmulas quĂmicas, nas reações moleculares, nas enzimas que aprendia a manipular com tanto cuidado. Mas a imagem da mulher de vermelho dançando continuava voltando. E mais do que isso: a sensação que ela transmitia.
Era como se tivesse implorado para ser salva, mas sem emitir um Ăşnico som.
Era loucura. Ele sabia. NĂŁo a conhecia. Talvez nunca conhecesse.
Mas aquele momento... não parecia fruto de imaginação.
Depois da aula, Noah decidiu caminhar até o centro da cidade. Um amigo marcara de encontrá-lo para almoçar, mas estava atrasado — como sempre. Sem rumo, ele vagou pelas ruas até que algo o chamou a atenção.
Um letreiro pequeno, quase invisĂvel, com uma caligrafia antiga:
📍 “Gal Atelier – Exposições Urbanas”
Um quadro colorido no vidro exibia uma pintura moderna. Arte crua, emocional, como se tivesse sido feita por alguém que sangrou por dentro. Aquilo chamou Noah de um jeito estranho.
Empurrou a porta de vidro e entrou.
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A galeria era minĂşscula. Silenciosa. SĂł uma mĂşsica instrumental bem suave preenchia o ar, misturada ao eco dos prĂłprios passos. Paredes brancas. Obras urbanas, caĂłticas, apaixonadas.
E ali, no canto esquerdo da sala, com os cabelos soltos e cacheados caindo sobre os ombros, estava ela.
De moletom cinza, calça jeans, tênis gasto.
Sem batom. Sem vestido. Sem salto.
Sem máscara.
Atena.
Noah parou. O coração deu um salto involuntário. Ele hesitou, ponderou ir embora, fingir que não viu. Mas não conseguiu. Ela também o viu — o sentiu, antes mesmo de virar o rosto.
E quando seus olhos se encontraram pela segunda vez, foi diferente.
NĂŁo havia holofotes. NĂŁo havia mĂşsica sensual. NĂŁo havia multidĂŁo.
SĂł eles dois.
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Ela piscou lentamente, surpresa. Seus lábios entreabriram-se por um instante, como se quisessem dizer algo, mas nenhuma palavra veio. O silêncio se estendeu.
Noah foi o primeiro a falar. Com voz baixa, respeitosa. Quase como quem se aproxima de um animal ferido.
— Não queria incomodar. Só... entrei.
Atena inclinou a cabeça, observando-o com cautela.
— Você estava lá ontem — disse, sem rodeios.
Ele assentiu.
— Eu te vi. Mas... acho que foi mais do que isso.
Ela cruzou os braços, defensiva. Seus olhos tinham voltado a ser uma muralha.
— O que você acha que viu?
Noah nĂŁo respondeu de imediato. Deu um passo Ă frente, com delicadeza.
— Alguém tentando gritar por dentro. Mas sem fazer barulho.
Atena travou a mandĂbula, surpresa pela precisĂŁo daquelas palavras. Algo dentro dela vacilou, mas rapidamente se recompĂ´s.
— Você não me conhece.
— Eu sei.
— Não sabe pelo que eu passei. Nem por que estou lá.
— Também sei disso.
Ela o encarou por um longo tempo. Ele nĂŁo desviou. E, pela primeira vez em muito tempo, ela nĂŁo se sentiu julgada.
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— O que faz aqui? — ela perguntou, depois de alguns segundos.
— Esperando um amigo. Ele se atrasa sempre. Entrei por acaso. Gosto de lugares quietos.
Atena olhou ao redor, como se o ambiente tivesse ganhado novo significado com aquela coincidĂŞncia.
— Eu venho aqui às vezes. Quando não quero desaparecer de vez.
Noah sorriu de leve.
— Então temos isso em comum.
Ela relaxou um pouco. O olhar ainda era tenso, mas algo nele a fazia baixar a guarda, mesmo contra sua vontade.
— Qual seu nome? — perguntou ela, finalmente.
— Noah. E o seu?
Ela hesitou. Depois de uma pequena pausa, respondeu:
— Atena.
O nome flutuou entre eles como uma revelação Ăntima. Era mais do que um nome. Era uma porta aberta.
— Combina com você — ele disse.
— Porque é forte?
— Porque carrega história nos olhos.
Ela abaixou o rosto, tocada de um jeito que nĂŁo sabia lidar.
— Eu tenho que ir — disse, dando um passo para trás.
Noah nĂŁo tentou detĂŞ-la.
— Espero te ver de novo.
Ela parou antes de sair.
— Não espere demais.
E saiu.
Mas o que ela não sabia... é que já era tarde demais para voltar atrás.
E Noah também não sabia — mas já estava envolvido muito além da curiosidade.