A Prisão do Afeto

898 Words
KEYLA Mano, o barulho da porta batendo quase arrancou a dobradiça. Eu tava na sala, tentando assistir uma novela que não tava entrando na minha cabeça, quando o Douglas entrou. Meu Deus, o estado dele. Os olhos vermelhos, vidrados, a respiração ofegante. E nas costas, um fuzil. Um troço preto, pesado, que parecia sugar toda a luz do cômodo. O coração gelou na hora. Ele nem me cumprimentou. Foi direto pro quarto dele. Ouvi o armário abrindo com força, as gavetas sendo puxadas. Corri atrás dele. — Douglas! Que que é isso? Pra onde você vai? — perguntei, a voz saindo trêmula. Ele virou pra mim. O olhar era gelo. Não tinha meu filho ali. Era um estranho. — Vou embora desse morro. Mas não se preocupa não, mamãe — ele cuspiu a palavra com um deboche que doeu mais que tapa. — Eu volto pra te salvar. — Me salvar? — revidei, uma mistura de medo e raiva subindo. — Douglas, se liga, garoto! Eu não tô sendo forçada a nada! Eu me separei do seu pai, já disse isso um milhão de vezes! Eu sou solteira e fico com quem eu quiser! Ele soltou uma risada seca, fechando a mala com um puxão brusco. Ajustou a alça do fuzil no ombro, aquele troço parecia fazer parte dele agora. — Aproveita teu conto de fadas. Eu volto logo. E saiu. Nem olhou pra trás. A porta do quarto ficou aberta, mostrando a bagunça que ele fez. A porta da frente bateu com um estrondo que ecoou pela casa vazia. Fiquei parada ali, sozinha, com um aperto no peito tão forte que eu achava que ia morrer ali mesmo. Meu filho. Meu bebê. Virou isso. Um estranho com um fuzil e ódio no olhar. No dia seguinte, a merda tava feita. Parece que alguém soltou um balão com a notícia e ele estourou sobre o morro inteiro. Fui na padaria comprar pão, e na rua, as mulheres que saíam da igrejinha me olhavam com nojo. Uma delas, a Dona Marlene, que eu sempre cumprimentava, cuspiu no chão quando eu passei. Nem disfarçou. O cuspe quase acertou meu pé. — v***a! — ouvi sussurrado. — Amante do amigo do próprio filho. Virei pária. A mãe direita, a esposa fiel, tinha virado a cachorra do morro. Tentei ligar pro Douglas. Chamada não atendida. Mandei mensagem: 📲 Keyla: Bom dia, filho. Tudo bem com você? O temido check azul não apareceu. Ele tinha me bloqueado. Meu próprio sangue me cortou fora. A dor era física, uma faca torcida no lugar do coração. À noite, o Ben apareceu. Não bateu. Entrou com a chave que ele tinha. A cara dele tava fechada, os olhos eram duas brasas. — Faz uma mala. Rápido. Só o essencial — ele ordenou, a voz sem deixar espaço pra discussão. — Ben, o que tá acontecendo? — O Douglas roubou armamento pesado do QG. Ele não tá bem da cabeça. E não é perigoso só pra mim, não. É pra você também. E eu não vou deixar nada acontecer com você, Keyla. Agora, faz a mala. O medo tomou conta. O Douglas? O meu filho? Era agora uma ameaça? Eu obedeci, com as mãos trêmulas, jogando umas roupas numa mochila. Ele me puxou pelo braço e me levou pro carro. Não foi um convite. Foi uma escolta. Ele me levou pra casa dele, aquele bunker de concreto que de repente parecia uma prisão. Entramos e ele trancou a porta. Não só com a chave. Vi ele ativar um monte de trancas eletrônicas que eu nem sabia que existiam. — Você não vai fugir de nós — ele disse, e o "nós" soou possessivo, doentio. Ele me ajudou a desfazer a mala, e foi quando ele viu. Lá no fundo, enrolada numa roupa, a passagem de ônibus pra São Paulo. Aquele meu plano de fuga covarde. Ele pegou o papel, os olhos arregalando de incredulidade e depois de raiva pura. — O que é isso, Keyla? — a voz dele era um fio, perigosamente baixa. — Você… você ia fugir? De mim? — Ben, não é isso… eu só… eu precisava… — PRECISAVA DO QUÊ? — ele gritou, e o som ecoou na casa vazia. Ele pegou a passagem e rasgou. Não uma vez. Várias. Até virar um monte de confete nas mãos dele. — Você não sai daqui. Você não vai a lugar nenhum. Você é minha. Ele jogou os pedaços de papel no chão. Eu olhei pra aqueles pedacinhos coloridos, que representavam minha única chance de escapar daquele inferno, e depois olhei pra ele. Parado na porta, o corpo tenso, a respiração ofegante. Não era mais o menino que eu ensinei a amar. Era um carcereiro. Um carcereiro armado, com o coração partido e um amor que tinha virado uma doença. Entre o amor que me aprisiona e a liberdade que me destruiria, eu havia criado minha própria cela — e o carcereiro tinha o rosto do garoto que ensinei a amar. E no fundo, a parte mais doente de mim sussurrava que, talvez, eu gostasse de estar presa. Porque do lado de fora, só me restava a solidão e o ódio do meu próprio filho. Pelo menos na prisão do Ben, eu ainda era amada. Mesmo que fosse um amor que estava matando os dois. ADICIONE NA BIBLIOTECA COMENTE VOTE NO BILHETE LUNAR INSTA: @crisfer_autora
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