Fllower.
— Nossa, você mudou tanto! — A mulher na minha frente parece confusa, ela fecha o notebook e fica me encarando em total silêncio. — Deve fazer uns 10 anos que não nos vimos. Hazel, Hazel Fllower. Estudamos no 1° ano do ensino médio juntas, mas daí você saiu da escola, lembra?
— Desculpa, mas você pode estar se confundindo. — Ela parece cada vez mais confusa.
— Melione Salvatore, certo? — Estendo o mão para ela e ela confirma com a cabeça antes de apertar minha mão de volta com firmeza. — Fizemos um trabalho de geografia juntas no ensino médio, foi o primeiro do ano. No dia da apresentação houve uma briga e caíram em cima da nossa maquete, e bem... Você jogou o livro em um dos garotos que estavam brigando...
Sempre achei Melione bonita, mesmo aquele com jeito calado e distante, mas agora... agora ela parecia algo além disso. Mais maduro, mais poderoso. O cabelo escuro caía sobre os ombros em ondas sutis, a maquiagem levemente esfumada destacava ainda mais seus olhos, e o blazer que usava deixava claro que seu corpo ganhara novas curvas.
Enquanto eu a observava, seus olhos deslizaram, quase imperceptivelmente, para o meu decote. Um calor subiu pelo meu rosto. Endireitei minha postura, fingindo não ter notado, mas quando nossos olhares se voltaram novamente, o brilho malicioso em seus olhos deixou claro que ela sabia que eu percebi.
— Acho que agora lembro de você. — Ela toma um gole do café e sorri novamente, não sei dizer se esse é um sorriso gentil, ou o sorriso de alguém que quer ficar em paz, enquanto trabalha e bebe seu café preto e amargo.
Algo na expressão dela é hipnotizante: os olhos negros e transparentes parecem penetrar minha alma, enquanto os lábios, tão rosados que lembram rubis.
— Posso me sentar com você? — Pergunto indicando a cadeira a frente dela, Melione faz um gesto breve com a mão me incentivando a jutar-me a ela. — Como andam as coisas?
— Muito trabalho a ser feito — Fala inclinando a cabeça levemente, enquanto seus lábios curvam-se em um leve sorriso, quase imperceptível — e você?
— Além de trabalhar aqui? — Coloco as mãos sob a mesa afim de disfarçar meu nervosismo, por um motivo que eu mesma desconheço — Sou atriz, faço teatro. Você poderia ir ver uma peça minha.
— Interessante, — seus olhos deslizam novamente para o decote e depois voltam a encarar meus olhos. — Talvez eu vá.
— Seria um prazer, é o mais próximo daqui, você deve saber qual é.
— Sim, sei. — A voz dela é calma, é um tom doce, mas não é gentil.
—Tomorrow's Star Theatre... — A atmosfera parece pesar, ela não responde, apenas continua me encarando e isso me deixa ainda mais tensa. — Só pra confirmar. — concluo, com a intenção de deixar o clima menos desagradável.
Seus olhos carregam algo que não consigo decifrar, parecem além do meu limite, e isso me incentiva a continuar a conversa, pretendo deixar ela mais a vontade comigo, talvez assim meu próprio nervosismo desapareça.
— Você namora? — pergunto, fazendo seus lábios se curvarem em um sorriso de canto.
— Não. — Ela bebe outro gole do café com uma calma irritantemente controlada, e posiciona as mãos sobre a mesa. — E você? Lembro de um garoto andar com você para todos os lados no tempo da escola.
O comentário dela parece provocativo, um tom que me pega de surpresa, solto uma risada forçada enquanto brinco com a alça do avental de uma cor rosa bebê desgastada pelo tempo de uso.
— Ah, o Thomas — digo enquanto desvio os olhos do olhar penetrante dela, cheio de malícia, ao mesmo tempo que carrega um ar enigmático. — Terminamos assim que você saiu, antes do segundo ano começar.
— Entendo. — É a única coisa que ela fala, entendo. Não parece nem um pouco curiosa para saber o motivo do término, o porquê de ter sido justamente quando ela saiu, se foi eu que terminei com ele ou ele comigo, e isso me irrita um pouco.
— Éramos muito jovens na época, — continuo, quero deixá-la curiosa, quero contar lhe detalhes do relacionamento. — Não sabíamos o que queríamos, bem... Eu não sabia.
— E agora você sabe? — Essa pergunta soa novamente provocativa, acho que ela entendeu meu jogo, acho que está brincando comigo, quer tomar o controle.
— Sei, sei sim. — Me levanto. — Se me der licença, já está na minha hora de largar o trabalho, espero ver você novamente.
— Quem sabe... — as palavras dela me fazem sentir que nos encontraremos outras vezes. Caminho até o balcão, mas não consigo evitar de olhar uma última vez em sua direção, ela já voltou ao notebook, mas agora estampa um sorriso no belo rosto, ou pelo menos é algo parecido com um sorriso.
❀
O palco está tomado por luzes fracas, sou iluminada por um único holofote, as cortinas atrás de mim fecham se assim que me posiciono bem no centro do palco, cada passo que dou é como pisar em lâminas afiadas, estou usando um vestido desgastado e sujo, como se a personagem tivesse atravessado o próprio inferno.
O momento em que meus braços se levantam brevemente para cima, deixo de ser Hazel, o momento em que minha boca se abre, me torno Elara, que perdeu tudo em um incêndio: sua casa, sua família e, eventualmente, sua sanidade.
— Não sobrou nada... Nada. — Minha voz é rouca, baixa, quase se quebrando.
Ajoelho-me no chão de madeira, os ombros caídos, como se meu corpo não tivesse força o suficiente para sustentar-se. Toco o chão com os dedos, procurando entre as cinzas invisíveis algo precioso que se perdeu.
— O fogo levou tudo, mas não foi o suficiente, não é? — A minha voz agora se enche de intensidade, as palavras devem soar como uma súplica desesperada. Levanto o rosto para cima, encarando o vazio.
"Be my friend... Hug me, wrap me up.."
Estendo as mãos para frente, encarando a plateia em total silêncio, como se pedisse por algo que sei que não virá, nunca virá.
— Eles gritaram por mim, e eu... eu não consegui. — Minha voz quebra, um soluço que ecoa pelo teatro. — Eu só... fiquei parada.
Solto uma risada amarga, jogando a cabeça para trás, lágrimas se formam em meus olhos, lágrimas não derramadas — lágrimas que Elara não derramou naquele instante.
"I am small... I am needy..."
— Não sobrou nada de mim... Só escos.
Desmorono no chão enquanto a luz já fraca diminui ainda mais, permito que meus braços caiam ao redor do corpo.
"Because I lost all my faith..."
Fico imóvel por alguns segundos, ouvindo os aplausos abafados da plateia. Antes das luzes se acenderam completamente, eu me levanto e agradeço a plateia com gestos. Saio do palco, dando espaço para outros atores.
— Você foi ótima. — Anna aparece ao meu lado me entregando uma garrafa de água, ela é uma das figurinistas, e também é uma ótima amiga para todos os atores.
— Obrigada, querida. — Pego a garrafa e a abro.
— Hazel! — A voz do diretor corta o ar, chamando minha atenção. Ele é um homem baixo, de cabelo grisalho e um olhar severo, mas consegue ser gentil nos momentos certos. — Você foi brilhante, uma das melhores até agora. Mas da próxima vez, garantimos um pouco mais na entrega emocional no início. Deixe o clímax para o final, entendeu?
Dou um sorrisinho de canto, bebo um pouco da água enquanto o encaro.
— Pode deixar, Sr. Renard. — Ele sorri satisfeito e sai gritando para outros atores e atrizes por aí.
Sento-me em uma das penteadeiras, enquanto observo o movimento apresado atrás de mim pelo espelho velho, uma silhueta surge atrás de mim puxando uma cadeira para se sentar ao meu lado.
— Como vai, minha estrela? — Owen é um grande amigo que fiz durante o trabalho no teatro, e por pura coincidência, também trabalhamos na mesma cafeteria.
— Aí Ow, ando tão cansada — encosto minha cabeça em seu ombro.
— Nem me fale — Diz enquanto encosta a cabeça na minha também. — O teatro nunca esteve tão lotada como essa semana.
Concordo em silêncio. Fecho os olhos por um minuto e Melione vem a minha mente, imagino como seria a reação dela me vendo atuar de forma dramática, ou talvez ela prefira dança. Eu poderia dançar para ela também, não vejo problema. Quais devem ser os hobbys dela? Ela tem cara de quem toca vários instrumentos...
— Ficou calada de repente. — Ow comenta, me tirando do transe em que estava, transe esse chamado Melione Salvatore. — Pensando na vida?
— É, pensando em uma vida distante.