Maya Albuquerque
As memórias do passado se agarram a mim como fantasmas, impossíveis de afastar. Elas não são lembranças, são cicatrizes que ainda sangram, queimam e me empurram para a beira do abismo. Minha tia, sempre amorosa e dedicada, fez de tudo para me salvar dos pesadelos que me consumiam, buscando especialistas que prometiam uma cura impossível. Em cada consulta, eu vestia a máscara de uma garota forte, sorrindo enquanto, por dentro, uma tempestade de dor e raiva ameaçava explodir. O psicólogo nunca soube a verdade por trás dos meus olhos, a escuridão que eu fingia ter superado.
Com o passar dos anos, os gritos na minha mente foram ficando mais baixos, mais sutis, e minha tia acreditou que eu tinha finalmente deixado o passado para trás. Pobre tia. Na profundidade da minha alma, sabia que esquecer era uma mentira que eu contava até para mim mesma. Aprendi a disfarçar com maestria, a caminhar pelo morro como se fosse a dona daquele lugar, envolta por uma frieza que afastava curiosos e mantinha minha dor em segredo. Diziam que eu tinha o coração de gelo. Talvez fosse verdade, mas era o preço para sobreviver.
Eu sabia que o caminho que escolhi era perigoso. Cada passo me aproximava de um precipício, mas não importava. Era a única forma de manter acesa a chama da justiça. A vingança pela morte da minha família era o fogo que consumia minha alma, um incêndio incontrolável que me queimava a cada respiração. Eu estava disposta a tudo, até sacrificar minha própria vida, para fazer com que aqueles que destruíram a minha família pagassem por seus crimes.
Hoje é um dia diferente. Um dia de reencontro com o Morro do Alemão, minha segunda casa, onde a adrenalina corre nas minhas veias como um veneno doce. O telefone vibra nas minhas mãos, e atendo com uma voz calma, escondendo a verdadeira missão que me espera.
— Oi, tia Isabella, estou indo para a casa da Bianca. Vou passar uns quatro dias por lá. Tudo bem?
— Quatro dias? Mas por que tanto tempo, minha filha? Isso está me matando. Não suma assim, não agora, por favor.
— Tia, eu adoraria ficar com você, mas a mãe da Bianca está muito doente. Eu preciso estar lá para ajudar. Não se preocupe, já estou quase me formando.
A mentira sai fácil, suave como uma brisa, enquanto dentro de mim a verdade se agita como um furacão. Não há mãe doente, nem amiga precisando de ajuda. A realidade é que meu território no morro precisa de mim, e eu não posso deixá-lo desprotegido. É um jogo perigoso, equilibrando minha vida na PUC, onde sou apenas uma estudante comum, e o poder que exerço no morro, onde todos me conhecem como Doris, a rainha que comanda aquele labirinto de concreto.
A única pessoa que conhecia meu segredo se foi, levando consigo a verdade que me protegia.
Por trás da fachada de estudante universitária, eu era alguém que jamais poderia ser entendida ou aceita naquele mundo elitista. No meio daqueles corredores da PUC, repletos de arrogância e falsas superioridades, eu me destacava entre os bolsistas que lutavam por um futuro. Se ao menos eu tivesse ficado mais perto da minha amiga, teria enfrentado aqueles imbecis que a olhavam com desdém.
— Não se preocupe, tia. Vou te manter informada. Te amo, beijos.
Desligo o telefone e sigo para a garagem, onde deixo para trás a estudante e assumo quem realmente sou. Visto uma calça justa, uma blusa de onça e, em poucos segundos, estou na minha moto, acelerando pelas ruas com o vento batendo no meu rosto, alimentando a sensação de liberdade que apenas a velocidade pode trazer. Motos são minha paixão secreta, o meu refúgio. Tenho cinco delas, cada uma mais bela e potente que a outra. Uma parte de mim que minha tia jamais entenderia.
"Chega de devaneios, Maya."
Sim, Maya Albuquerque. Mas para o mundo aqui no morro, eu sou Doris, a líder que ninguém ousa desafiar. A verdade sobre quem eu sou está enterrada sob camadas de segredos, e assim deve permanecer.
Aqui, no Morro do Alemão, o que me move é a vingança. Não sei o que será de mim depois que essa chama se apagar. Talvez nada. Talvez tudo. Mas agora, isso não importa. O que importa são os cinco nomes restantes na minha lista, os últimos fantasmas que preciso exorcizar para que, finalmente, meu passado tenha um fim.
Cada dia que sobrevivo é um milagre, uma dádiva deixada por meu pai, que me salvou no último segundo daquele dia sangrento. Se não fosse por ele, não haveria história para contar. Mas estou aqui, viva, e a justiça, meu velho inimigo, ainda me espera no final desta jornada.
A garotinha que corria livre, com o riso fácil e a alegria inocente, já não existe mais. Ela se perdeu nas sombras do passado, engolida pela escuridão de uma dor que nunca diminui. O rancor tomou o lugar da felicidade que um dia preenchia minha vida, e agora, tudo o que resta é o fogo incontrolável do desejo de justiça. Esse anseio é a única coisa que ainda me mantém de pé.
A cada segundo que passa, a sede de vingança cresce. O pensamento de finalmente encerrar as contas com aqueles que arruinaram minha existência é a única coisa que me dá algum alívio. Já provei do gosto amargo da vingança. Um deles já está morto. Lembro-me perfeitamente de seu olhar desesperado enquanto implorava por misericórdia, com o sangue escorrendo pelas mãos, enquanto revelava, nos últimos momentos de sua vida miserável, que Gael era o arquiteto de toda a destruição. Sua confissão foi uma pequena vitória, uma fagulha de conforto, mas a minha dor exige muito mais do que isso.
Entre as poucas pessoas que ainda permito se aproximar de mim, Renata e Heloísa se destacam. Renata entende as profundezas do meu tormento, sem fazer perguntas desnecessárias. Heloísa, por outro lado, com sua vida luxuosa no Leblon, representa tudo que eu poderia ter sido, não fosse o destino c***l que me empurrou para este caminho. Ela insiste em acreditar no poder dos laços genuínos, tentando me convencer de que ainda há espaço para o amor em minha vida. Mas o amor, para mim, é um luxo perigoso, algo que não posso mais me permitir. Nunca me apaixonei, e não há lugar para isso na minha jornada. Meu coração é uma fortaleza impenetrável.
Na universidade, os colegas me observam com curiosidade. Para eles, sou aquela que não se deixa levar pelos dramas juvenis, pelos romances proibidos ou pelas paixões desesperadas por professores charmosos. Mas, mesmo em meio ao controle que tento manter, tomei uma decisão impulsiva. Envolvi-me com um rapaz que parecia interessado em mim, talvez para provar a mim mesma que ainda era capaz de sentir algo além da raiva. Passamos noites juntos, momentos intensos de paixão que, para qualquer outra pessoa, talvez significassem algo. Mas para mim, foi apenas um lembrete amargo de que meu coração não é capaz de sustentar esse tipo de sentimento. O romance, para mim, não passa de uma distração que não posso me dar ao luxo de seguir.
Depois daquela noite, eu soube que não poderia continuar com ele. Despedi-me da ilusão e voltei a focar no que realmente importa: a vingança. A chama da determinação arde mais forte a cada dia, queimando dentro de mim, pronta para incinerar qualquer um que ousar cruzar meu caminho. O amor é uma fraqueza que eu não posso me permitir, não enquanto ainda houver nomes na minha lista, e o sangue de minha família clamar por justiça.