Jade narrando
Meu coração estava disparado.
Minhas mãos tremiam enquanto eu apertava o celular, mandando mensagem atrás de mensagem para o Coelho.
Nada.
Nenhuma resposta.
Cada segundo de silêncio me fazia perder um pedaço de mim.
Coelho sempre me responde, nem que seja pra me xingar, nem que seja pra dizer pra eu ficar onde estou. Mas agora, ele estava mudo. E isso me dizia tudo o que eu precisava saber.
Algo estava errado. Eu sabia disso.
A invasão já tinha começado há um tempo e, em dias como esse, quando a coisa não estava tão sinistra, ele deixava a moto dele bem na lateral da rua, num dos acessos à favela. Eu conseguia subir.
Claro, nunca era fácil. Nunca foi seguro. Mas era possível.
Sempre foi uma missão, sempre foi perigoso. Mas eu sabia como me esquivar das balas, sabia quando correr, quando me abaixar, quando seguir.
O problema era que hoje estava diferente.
Eu não fiquei sem acesso a ele nunca, ele sempre me respondia, sinalizava que a moto estava lá, que eu podia passar, mas hoje eu não conseguia nenhum tipo de contato, isso estava me deixando desesperada
sem ele, como eu ia subir? Será que ele tá bem ? Por que ele não fala comigo ? Por que ele não fala nada ? QUE INFERNO!
Minha mãe estava sozinha em casa. Ela não pode ficar sozinha em uma invasão.
Sempre que isso acontece, nós dois estamos na rua. Ele na guerra, eu voltando do trabalho. E isso me consome.
Eu sempre chego na favela no pior horário.
Na hora do inferno.
Na hora em que os moradores estão descendo para trabalhar, para pegar ônibus, para tentar viver a vida. E é justamente nesse momento que tudo acontece.
Sempre foi assim.
E hoje não era diferente.
Mas algo dentro de mim me dizia que não era uma invasão como as outras.
Eu sentia um peso diferente, uma angústia no peito, um aperto no estômago que só piorava a cada tiro que ecoava ao longe.
Eu tinha um pressentimento r**m.
O ar ao meu redor estava carregado, a cidade parecia menor, os sons estavam mais abafados. Como se o mundo estivesse prestes a mudar de uma forma que eu não queria.
A moto do Coelho estava no meu nome.
Eu podia andar com ela sem problema nenhum.
Os documentos estavam todos certos, a habilitação que ele me deu de presente no meu último aniversário estava no bolso. Se os policiais me pegassem na rua, não ia dar nada.
Mas isso não significava que eu podia me arriscar.
Eu precisava subir o morro.
Precisava garantir que minha mãe estava bem.
E, acima de tudo, precisava encontrar o Coelho.
O ônibus seguia pelas ruas e, a cada esquina que passava, os estampidos dos tiros pareciam mais altos. Eles vinham de longe, mas o suficiente para deixar claro que o caos já tinha tomado conta de tudo.
Minha respiração ficou pesada.
Morador de favela não tem um dia de paz.
Não tem um dia de sossego.
Eu só queria chegar em casa e saber que os meus estavam bem.
Mas algo dentro de mim gritava que eu não ia encontrar isso.
As palavras do Falcão martelavam na minha mente.
“Você vai perder a oportunidade? Nunca sabemos como pode ser a última vez.”
Eu não tenho nada com esse cara.
Nada.
Então por que as palavras dele grudaram na minha cabeça desse jeito?
Por que esse maldito pensamento não me deixa em paz?
Eu deveria estar focada no Coelho. Na minha mãe. E em como entrar na favela e chegar até minha casa
O motorista seguiu a rua até onde conseguiu, mas não dava para ir além. O morro estava fechado, o som dos tiros estourava em todas as direções, e se ele tentasse avançar, poderia acabar sendo atingido.
Eu sabia que a partir dali teria que ir sozinha.
Desci do ônibus com o coração acelerado e comecei a caminhar, me enfiando pelas vielas que eu já conhecia como a palma da minha mão. Cada esquina, cada beco, cada rota de fuga. Meu corpo já estava no modo automático, mas a tensão pesava em cada passo.
Eu andei por muito tempo.
Cada tiro que ecoava me fazia prender a respiração. O barulho de estilhaços caindo, os gritos abafados ao longe, o som de motores acelerando.
Eu precisava chegar até a moto.
E, quando finalmente cheguei ao lugar onde Coelho sempre a escondia, ela estava lá.
Exatamente no mesmo local de sempre.
A chave, no mesmo esconderijo de sempre.
Mas nada do Coelho.
Minha boca secou.
Eu olhei para os lados, como se esperasse vê-lo saindo de algum canto, xingando, perguntando o que diabos eu estava fazendo ali no meio do fogo cruzado.
Mas não havia ninguém.
Só a moto.
Minha garganta fechou, uma sensação estranha se espalhando pelo meu peito.
Respirei fundo, pedi proteção a Deus e montei na moto.
Eu tinha que subir o morro.
Minha mãe estava em casa, sozinha. E Coelho, onde ele estava?
Liguei a moto, sentindo o motor vibrar debaixo de mim, e acelerei, subindo o morro pelas rotas que já estavam gravadas na minha memória. As vielas estreitas, as ladeiras inclinadas, os becos que serviam como atalhos. Cada desvio, cada curva, cada buraco no chão, eu já sabia onde estava.
Mas os tiros estavam perto demais.
O barulho das balas traçantes zunia nos meus ouvidos, cortando o ar ao meu redor como navalhas invisíveis.
Eu não via ninguém, mas sentia as balas passando perto. A adrenalina me impulsionava. Eu tinha que conseguir subir.
Acelerei mais, ignorando o medo, ignorando o tremor das minhas mãos no guidão.
E então, eu vi. Vi a cena que me fez travar.
Que fez meu coração parar por um segundo, meu estômago afundar, minha pele gelar.
O Coelho. Encurralado.
Ali, numa viela estreita, com três malditos policiais apontando fuzis para ele.
Eles pareciam discutir feio, mas o que eu estranhei foi que meu irmão estava sem colete e desarmado, todo machucado, e mesmo assim ele estava peitando os policiais grandão mesmo, sem medo de nada, ele batia de frente de peito aberto e o desespero corria gelado na minha espinha
O tempo pareceu desacelerar e o pânico tomou conta do meu corpo no mesmo momento que um carro bateu na traseira da moto e eu olhei pra trás rápido, vendo que era o carro do falcão, colado na minha traseira, e nesse momento eu só ouvi os disparos e saí correndo sem pensar em nada, largando tudo pra trás, eu só corri gritando desesperada