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1226 Words
LUANA CUPERTINO NARRANDO Estou sentada na cama do hospital, com as pernas para fora dela, completamente sem reação. Eu não entendi muito bem o que aconteceu, não ainda. Só sei que a partir de agora, não tenho mais ninguém nessa cidade de merda. E eu preciso terminar logo a escola, pra fugir daqui e morar com algum dos meus tios. — Com licença? — Eu não acredito no que eu estou vendo. Parece que o dia do pesadelo ainda não acabou. Será que uma hora eu vou acordar e ver que tudo não passou de uma brincadeira do meu cérebro comigo mesma? — Henrique? — Falo, surpresa pela presença do homem. É inaceitável que depois de meses me ignorando ele esteja aqui, agora, nesse momento. Sabe quando você bate os olhos em alguém e percebe que é a pessoa com quem você quer passar o resto da vida? Pois é, foi o que houve comigo assim que coloquei os olhos em Henrique. Foi um tanto inapropriado da minha parte, porque eu tinha quinze anos quando o vi pela primeira vez. Ele foi investigador de um caso no trabalho do meu pai, e veio fazer umas perguntas para ele aqui. Depois disso, os dois criaram afeto um pelo outro e não se desgrudaram mais. — Oi, Luana. — Ele sorriu e veio até mim. Seu semblante é tão triste quanto o meu. — Estou perdida. E sozinha. — Confesso. Ele veio até mim e se sentou ao meu lado, pegou minha mão e entrelaçou nossos dedos. — Sozinha não está. Você tem seus tios, e também a mim. — Ri baixo e de forma debochada. — Depois de todos esses meses, você aparece e me diz que não estou sozinha, Henrique? Por favor. — Girei os olhos e tentei soltar a mão dele, mas ele não deixou. — Eu vou cuidar de você. — Afirmou. — Não quero seus cuidados. Vai me tratar feito uma criança? Agradeço sua compaixão, mas pode deixar que eu sei me virar sozinha. — Ele suspirou. — Eu vou me mudar pra casa dos seus pais. — Eu arregalei os olhos. — Do que você tá falando, seu maluco? — Ele me mostrou o testamento dele. Eu vou cuidar dos seus bens até você terminar a faculdade... Então, é melhor se acostumar com a minha presença. — Eu o olhava com a boca aberta, e com bastante indignação. — Meu pai não faria isso comigo. — Ele fez. Você não devia ter estourado o cartão de crédito dele no ano passado para comprar toda a coleção de tênis da Billie Eilish. Foi irresponsável. — Suspirei. Na verdade, no momento, estou tão triste que não consigo pensar em herança e nem processar o fato de que Henrique vai morar dentro da minha casa. Não sei em quanto tempo ele se muda, mas sei que irá, pois está escrito explicitamente no testamento do meu pai que ele deve cuidar da casa e das finanças por um bom tempo. Billie Eilish, você me meteu em uma enrascada sem tamanho... Eu não gosto de funerais, e não foi diferente com o dos meus pais. Meu tio veio de longe para preparar tudo, porque uma garota de dezessete anos e seis meses não tem capacidade emocional para fazer isso. E é a primeira vez que estão certos ao falar algo sobre a minha idade. Fechei meus olhos enquanto todos choravam ao redor do caixão. Fui abraçada por pessoas que não conhecia, muitas delas me desejando os pêsames e dizendo que sentiam muito. Aposto que sequer sabem a cor dos olhos do meu pai, ou se lembram da história do brinco de pérola da minha mãe, que ela contava para todo mundo. Henrique chegou no funeral. Sua presença chama a atenção não só pela altura, que passa dos um e oitenta e cinco, mas também pela beleza. Pele levemente bronzeada, olhos e cabelos castanhos, barba cerrada e um olhar que faz com que ele pareça bravo por todo o tempo. — Meus sentimentos, linda. — Disse e me abraçou. Ganhei tantos abraços falsos, que me surpreendi com o primeiro verdadeiro, vindo dele. — Obrigada, Henrique. — Respondi e ganhei um beijo no topo da cabeça. — Como você está? — Perguntou. — Anestesiada. Eu só quero que tudo isso acabe, quero ir pra casa e dormir um pouco. — Ele concordou com a cabeça e colocou a mão nos bolsos. — Mandei algumas coisas para a sua casa, estão no quarto de hóspedes. Não vou ficar por lá o tempo todo, não se preocupe. — Eu dei os ombros. Sei que daqui alguns dias vou pensar diferente, mas por agora, pouco me importa se ele está naquela casa ou não. — Fique a vontade. A casa é sua. — Falei de forma irônica, e depois soltei uma única risada anasalada, debochando de mim mesma. Às vezes eu me acho ridícula, principalmente na presença do Henrique. Ele deve me achar uma infantil, por isso fugiu de mim. DOIS MESES DEPOIS... Minha vida voltou a andar. Estamos entrando no mês de setembro, e já planejo minha grande estreia na vida adulta com uma festa enorme e cheia de convidados. Faltam quatro meses, mas tudo bem. Quase não vejo Henrique. Ele tem passado muito tempo na delegacia, porque arquivaram o caso dos meus pais e ele está tentando de todo jeito reabrir. Henrique acha que tem a ver com política, como disse em um café da manhã há alguns dias atrás, no telefone e não diretamente para mim. Hoje é sábado. É o primeiro sábado que me sinto disposta para fazer algo além de assistir televisão e comer porcaria, e isso é claramente um reflexo da minha melhora. Não, não é bem uma melhora, é que com o tempo a gente começa a se acostumar com a dor. Ela incomoda menos, mas quando prestamos atenção, ela ainda está ali. Quando saí do meu quarto, vestindo um short curto e uma camiseta um pouco mais larga, meu tênis branco e uma bolsa lateral, vi Henrique sentado no sofá olhando alguns arquivos. Ele desviou os olhos dos arquivos e me fitou de cima a baixo, olhou para baixo e mascarou o semblante bravo que tinha. — Aonde vai? — Perguntou. — Preciso pedir permissão para sair? — Eu o afrontei. Ele se levantou e veio andando até mim, o que me fez prender o ar. Ele é um homem com talvez uns noventa quilos de puro músculo e quase trinta centímetros mais alto que eu. — Não. Mas seria bastante gentil da sua parte se avisasse para onde vai. Ele parecia me fuzilar com os olhos, como se eu estivesse fazendo algo muito errado. Seria meu short? Seria... p***a, o Henrique tá com ciúme? — Por que não me coloca em uma coleira logo, Henrique? Aquelas de cachorro, com GPS. — Ele girou os olhos. — Posso vestir uma roupa de freira também, se isso for melhorar seu humor. Depois da provocação, sorri satisfeita com o efeito que causei nele. Touché, Henrique. — Me ligue se algo der errado. — Disse, sério como antes. Eu achei que tivesse ganhado, mas é impossível ganhar dele. Ele se sentou no sofá e pegou os arquivos, fingindo não se importar. Ele está fingindo, não está? Por que o fato dele não se incomodar me incomoda tanto?
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