Donna fechou a porta da frente com firmeza, como se quisesse trancar para sempre tudo o que deixava para trás. O casaco escuro caía sobre os ombros como uma armadura silenciosa, e o pingente de Santa Ágata pendia do pescoço de Ellis, tremendo com o peso da verdade que ela já intuía.
Ellis estava ali, parada, as mãos fechadas sobre o relicário da santa protetora. Os olhos úmidos brilharam ao ver a filha, e sua voz saiu mais fraca do que pretendia:
— Donna?
Donna, com os olhos duros, a linha do maxilar firme, sustentou o olhar da mãe. Seus lábios se moveram com uma tranquilidade que parecia c***l:
— Está feito.
Ellis assentiu lentamente. Um calor estranho cresceu em seu peito — orgulho e medo misturados, como pólvora esperando a faísca certa. Ela não precisava perguntar. Sabia. Sentia. Era um daqueles momentos em que o instinto materno falava mais alto que a razão.
— Eu vou subir — disse Donna, sua voz era firme, determinada. — Arrumar minhas coisas. E sair dessa casa o mais rápido possível.
Ellis deu um passo à frente, como se a puxada do coração pudesse segurar a filha ali por mais um instante.
— Como assim... você vai embora? Por quê?
Donna parou no meio da escada, sem se virar. A voz veio baixa, carregada de mágoa:
— Pergunta pro Don Vittorio Amorielle.
Ellis ficou estática enquanto os passos da filha ecoavam escada acima. Cada batida parecia um prego cravado na madeira e em seu peito. Em segundos, a dor virou raiva. Seus pés se moveram por conta própria, guiados pelo calor que subia pelas veias. Ela empurrou a porta do escritório e entrou com brutalidade, fazendo-a bater contra a parede. Vittorio levantou os olhos da escrivaninha, a expressão calma demais para alguém que acabara de provocar um terremoto.
— O que raios você fez, Vittorio?
Ele se recostou lentamente, cruzando os braços, a voz baixa e controlada.
— O que eu fiz? Eu não fiz nada.
— Então por que a nossa filha está indo embora dessa casa?
Vittorio se levantou devagar, com uma calma que mascarava a raiva prestes a explodir.
— Porque ela escolheu sair — respondeu ele, irritado. — Ela renunciou ao nome da família, Ellis. Renegou quem ela é. Disse que não quer mais ser uma Amorielle. Ela te contou isso?
Ellis ficou em silêncio por um momento.
— Como é?
— É isso mesmo. Disse com todas as letras. Que se pudesse escolher… não teria nascido uma Amorielle.
— Vittorio… — Ellis balançou a cabeça, os olhos cheios de incredulidade. — Vocês dois são iguais. Ela com certeza disse isso no calor do momento. E você, como sempre, empurrou ao limite a ponte de mandá-la embora.
— Eu não mandei! — gritou ele, a voz finalmente perdendo o controle. — Eu disse que se ela saísse por aquela porta, ela não teria mais nada. Nem meu apoio, nem o nome, nem o dinheiro, nem a proteção!
Ellis ergueu a sobrancelha, com sarcasmo na voz.
— Ah, claro. Então foi só uma forma diferente de colocar ela pra fora. E ainda tem a audácia de dizer que não foi você quem tirou o nome da sua filha.
Vittorio se virou sem responder, foi até a escrivaninha, pegou uma pasta preta de couro e a estendeu para Ellis.
— Abra e me diga se fui eu quem começou isso.
Ela abriu a pasta e seus olhos vasculharam os documentos: certidões, formulários, histórico escolar... todos atualizados. E todos com um nome diferente: Donna Smith.
Ellis olhou para o marido, sem compreender.
— Isso é…
— A nova identidade da nossa filha. — cortou Vittorio. — Ela se inscreveu na NYU para o curso de Direito. Usando isso. Durante a madrugada.
— Quando você descobriu?
— Eu descobri quando recebi o relatório. Ela forjou tudo, Ellis. E quando a confrontei, sabe o que ela me disse?
Ellis balançou a cabeça, sem forças para responder.
— Ela disse que não escolheu nascer Amorielle. E que se pudesse escolher... não queria ser uma.
Silêncio. A resposta foi como uma bofetada no rosto de Ellis.
— Isso não pode ser verdade. Isso não é a Donna.
— É. Ela disse com todas as letras. E não só isso. Ela quer ser Donna Smith. Quer usar o nome do desgraçado do John Smith. Do Jácomo Grecco!
O silêncio se abateu por alguns segundos.
— Ela não quis dizer isso, Vittorio. Você sabe disso. — disse Ellis com suavidade. — Ela sempre soube o que significava o nome dela. Sempre se orgulhou de carregar.
— Então explica por que ela escolheu o nome de John Smith? Do Jácomo Grecco?
Ellis hesitou. O nome pesou no ar.
— Talvez porque ela não sabe a verdade sobre ele. Nem sobre o que aconteceu naquele galpão. — disse com amargura. — Ou será que você esqueceu?
— Esquecer? — Vittorio soltou uma risada seca. — É impossível. Mas mesmo assim… mesmo assim, aquele homem foi o pai dela por seis anos. E eu fui por todo o resto. E é assim que ela me retribui?
Ellis passou a mão pelo rosto. A tensão entre os dois era quase insuportável.
— Talvez você não enxergue que a Donna não está fazendo isso por você. — disse, com calma forçada.
— Ela deixou bem claro que está, Ellis! Ela disse que não sabia onde terminava ela e começava eu. Disse que escolheu Direito por minha causa. Por obrigação. Que não sabia quem era longe de mim!
Ellis não respondeu de imediato. Seus olhos estavam baixos, seus ombros caídos.
— E ela tem razão.
Vittorio arregalou os olhos.
— Então agora você também está contra mim?
— Não estou contra você, Vittorio, mas ela tem um ponto. Ela te admirava tanto, tanto, que fazia tudo para agradar você. E você... colocava ela num pedestal. Como a filha perfeita. A filha mais amada E ela achava que, pra continuar sendo a mais amada por você, precisava seguir todas as suas vontades.
— Eu sempre amei todos os nossos filhos iguais!
— Amou, sim. Mas tratou diferente. A Donna era a sua favorita. A escolhida. Mesmo que você dissesse que não, ela sentia, pois a fez acreditar que era a sua sucessora.
Vittorio virou o rosto.
— Donna nunca poderia ser a sucessora. Jake... bom, você sabe. Marco vai se casar com a filha do Matthew Messina. Temos o Jason. Então por que achar que ela seria?
— Porque você deu esperança. Você a tratou como se pudesse. — respondeu Ellis. — Jake não pode ser. Marco se casará com a filha do Matthew. E Jason… bem, sabemos que ele não tem o estômago. Restava ela. A sua favorita. A menina que você levou para missões, que você incentivou. Que você moldou.
— Ela sabia que era impossível. A Cosa Nostra não aceita uma mulher como herdeira. Não somos a Camorra, Ellis!
— Ela sabia, sim. Mas ainda assim… cada vez que você a elogiava, cada vez que dizia que ela era a mais inteligente, a mais preparada, ela esperava. Esperava que um dia você olhasse para ela e dissesse: por que não?
— Isso não é a Camorra, Ellis. Aqui não tem Catarina Piromalli. E você sabe o que aconteceu com ela.
— Eu sei. Mas isso não muda o fato de que você alimentou um sonho impossível.
Vittorio caiu no sofá, cansado. Estava claro que aquela conversa estava drenando algo dele que nem os anos de guerra haviam tocado.
— Talvez eu tenha errado… — murmurou ele.— Tudo bem, talvez eu tenha confundido ela com as histórias que contei a ela de mulheres fortes dentro da máfia, como a sua, como a da Catarina Piromalli...
— E agora ela tem vinte e cinco anos. É um ponto de virada na vida de uma mulher. Ela está buscando algo que seja só dela.
— Isso é uma crise existencial, então? Eu não lembro de você ter passado por essa crise.
— Você não lembra da minha crise aos vinte e cinco porque, nessa idade, você me comprou, Vittorio. Um contrato de meio milhão de dólares pela vida do Jason. Você se lembra disso?
Vittorio fechou os olhos.
— Ellis, isso foi… diferente.
— Foi? Porque parece que agora a Donna está apenas reagindo ao que a vida toda foi imposta para ela. Ela não vai aceitar um casamento arranjado. Ela csndou de ser moldada para ser algo que não pode ser. E agora, está tentando se encontrar.
Vittorio passou as mãos no rosto. Estava exausto, derrotado, orgulhoso demais para admitir.
— E para isso ela precisa renegar tudo? Usar o nome daquele… homem? Ir para o outro lado do mundo?
— Talvez ela só queira ser, Vittorio. Ser algo que não seja uma projeção sua.
Ele passou as mãos no rosto.
— Até por que ela me odeia e tudo o que eu represento.
— Ela não te odeia, Vittorio. Mas a forma como você reagiu… deixou claro que ela não faz mais parte da família. E isso… isso vai pesar entre vocês dois por muito tempo.
— Nenhuma de vocês entende o quanto isso vai afetar toda a família. Não estou falando como Don, mas como pai... Quando ela pisar em Nova York, tudo o que deixamos para trás vai voltar. E vai voltar contra ela. Ela não está preparada pra isso.
— Eu sei. Mas ainda assim… é só uma inscrição. Ela pode nem passar. A NYU é exigente e concorrida, eu me lembro quando você cobrou favores ao departamento de admissões só para que eu pudesse entrar. E como você tirou isso da Donna, as chances caíram muito para ela.
— E se ela não passar? — Ele riu amargo. — Ela jogou tudo fora por nada? É isso?
— Se ela não passar, vai voltar. Vai pedir desculpas. E isso pode ser bom. Um recomeço.
— E se ela passar?
— Então, em alguns meses, vai para os Estados Unidos, ver que a vida americana comum não é tão bonita quanto parece… e vai querer voltar.
— Donna nunca daria o braço a torcer.
— Talvez não, mas uma coisa eu garanto. Ela não sai dessa casa até o resultado sair. Eu sou a mãe dela. E um filho meu só sai por vontade própria. Não por imposição. E só pra constar, Vittorio... — ela se levantou. — Eu pretendo viver muito, muito tempo.
Ele encarou a esposa. Sabia que não ganharia essa batalha.
— Tudo bem — disse ele, por fim, amargo. — Ela fica, mas eu não sou obrigado a dividir o mesmo teto com ela.
— O que você está dizendo?
Ele pegou a pasta de volta, ajeitou o paletó.
— Estou voltando pra Milão. E só volto quando ela tiver a resposta.
— Vittorio...
Ele se aproximou, deu um beijo frio na testa de Ellis e se virou para a porta.
Ela não o seguiu.
Apenas ficou ali, parada, segurando os documentos da filha que carregavam um nome que não era mais o deles. E enquanto a porta do escritório se fechava com um clique suave, o som soou mais alto do que qualquer grito.