Donna respirou fundo, tentando conter o nó que se formava na garganta. Era como se algo se abrisse dentro dela, uma brecha entre o que ela sempre acreditou — que estava à sombra do pai — e a verdade crua, ali, diante dela. Aquela carta, aquele futuro, era dela.
Donna o encarava, buscando nos olhos dele qualquer traço de mentira. Não encontrou.
— Foi só isso mesmo que você fez?
— Sim. E claro, tive que garantir que toda sua documentação como Donna Smith estivesse em ordem. Mas essa era a parte fácil.
Donna baixou os olhos para o envelope sobre a bancada. Era pesado. Literal e simbolicamente.
— A mamãe sabe?
— Ainda não — disse ele.
Donna assentiu.
— Tudo bem.
Vittorio se aproximou um pouco mais.
— Vai aceitar então?
Ela demorou um pouco para responder. Sentou-se lentamente, as mãos ainda sobre o envelope.
— Sim. Mas com algumas condições.
Ele sorriu de lado.
— Quais?
— Eu não vou morar no apartamento da família.
Vittorio imediatamente franziu o cenho.
— Você vai ficar exposta.
Ela sorriu, irônica.
— Passei meses para desvincular minha imagem e minhas conexões da família. Meses, papa. E consegui. Não faz sentido me colocar de volta nessa situação agora.
Vittorio assentiu, devagar, mas ainda infeliz com a ideia.
— E a segurança?
Donna cruzou os braços.
— Não quero seguranças.
Vittorio cruzou os braços, os ombros mais rígidos.
— Não é uma questão de querer, você vai precisar. Nova York não é Pedesina. Lá temos inimigos reais. Poderosos.
— Eu serei Donna Smith lá. Ela não tem seguranças. Ela anda de metrô. Ela come cachorro-quente na rua. E é assim que vai ser.
Ele soltou um suspiro longo, exasperado.
— Você é minha filha — ele disse, baixo. — E precisa de pelo menos seis seguranças.
— Ninguém lá sabe disso.
— Uma hora, alguém vai saber.
Donna deu de ombros.
— Eu vou arriscar.
O silêncio se prolongou entre os dois. Ele a encarava com o peso de anos de decisões difíceis. Ela sustentava o olhar, como se desafiar o pai fosse a última forma de provar que podia escolher o próprio caminho.
— Pelo menos seis — ele repetiu.
— Nenhum — ela devolveu.
Ele fechou os olhos, respirando fundo, e então murmurou, com uma vulnerabilidade rara:
— Por favor.
Ela abriu os olhos, brilhantes, mas duros.
— Confia em mim.
Ele respirou fundo, claramente relutante. Mas então cedeu com um suspiro.
— Tudo bem. Mas… — inclinou-se à frente, o olhar duro — qualquer coisa que acontecer, você liga para mim. A qualquer hora. Sem hesitar.
Donna soltou uma risada fraca, com os olhos marejados.
— Você não vai poder fazer muita coisa, lembra? Eu tô fora da família.
Vittorio a encarou com uma força irrefutável.
— Talvez. Mas ainda é minha filha. E isso significa que eu vou fazer tudo o que for preciso quando se trata de você.
Donna mordeu o lábio inferior, pensativa, e depois murmurou:
— Mesmo com outro sobrenome?
— Você nunca precisou ter meu sobrenome para ser minha filha. — Olhou nos olhos dela, com aquele olhar que parecia atravessá-la. — Só precisou ser você. E isso sempre bastou pra mim.
As palavras atravessaram Donna como uma flecha. Simples. Diretas. Carregadas de amor de um homem que raramente o dizia, mas sempre o demonstrava — mesmo nas formas mais tortas.
As lágrimas vieram sem aviso. Quentes. Salgadas. Não eram suaves, mas sim pesadas, libertadoras. Meses de dor, de negação, de vergonha, de orgulho, de solidão. Tudo veio à tona.
Ela se levantou da banqueta, foi até ele. E, sem pensar, o abraçou.
Vittorio a envolveu nos braços, com a força de quem luta contra o tempo, como se pudesse protegê-la de tudo — do mundo, dos erros, até dela mesma. Ele passou a mão nos cabelos dela, devagar, como fazia quando ela era pequena e acordava de um pesadelo.
— Você pode ser o que quiser, Donna… — murmurou, junto ao ouvido dela. — Só não tente ser… o que não é.
Ela encostou o rosto no peito dele, sentindo o coração forte e constante sob a camisa.
— Obrigada — sussurrou. — E só pra você saber… eu gosto de ser sua filha.
Vittorio fechou os olhos por um instante, como se aquelas palavras fossem uma oração. Depois, sorriu com ternura.
— Eu sei. Eu sempre sei de tudo, lembra?
Donna riu entre lágrimas. Depois ele a afastou um pouco, as mãos ainda em seus ombros.
— Agora, vá se deitar. Vai precisar descansar. Você tem uma nova vida para começar.
Donna pegou o envelope com as mãos trêmulas, olhando para ele como quem ainda tentava acreditar.
— Boa noite, papà.
— Boa noite, Donna.
Ela se virou para sair, os passos mais leves, a respiração mais funda. Mas antes de atravessar o limiar da porta, ouviu a voz do pai outra vez.
— Espera.
Ela se virou. Vittorio ergueu o queixo.
— Parabéns pela aprovação.
Donna sorriu. E foi o tipo de sorriso que ele não via há meses — aberto, genuíno, limpo da dor. Ela apenas assentiu antes de desaparecer pelo corredor, levando com ela o futuro entre os braços.
***
A maçaneta girou com precisão silenciosa, e a porta pesada do quarto do casal Amorielle se abriu com um leve rangido abafado, apenas o bastante para que Vittorio deslize para dentro como uma sombra. Seus passos eram firmes, mas com a cadência cuidadosa de quem conhece intimamente cada parte daquele espaço. Assim que fechou a porta, fez questão de travá-la, o clique seco ecoando de forma quase inaudível, como um ritual que repetia sempre que voltava tarde da noite, sem querer perturbar a paz frágil do sono de Ellis.
O quarto estava mergulhado em penumbra, iluminado apenas pela tênue luz da lua que filtrava-se pelas cortinas de linho branco. O ar era morno, e o perfume de lavanda que Ellis usava nos travesseiros pairava suavemente, mesclado ao aroma amadeirado que Vittorio carregava sempre consigo. O homem caminhou até o closet, sem acender luzes, movendo-se como se conhecesse o espaço com os olhos fechados — e de fato conhecia. Despiu-se ali, primeiro o terno escuro, depois a camisa de linho italiano que ainda carregava vestígios do perfume amadeirado que usava. As abotoaduras bateram na madeira com um som metálico, e ele congelou por um segundo, atento ao menor indício de que Ellis acordaria.
Nada.
Meias, sapatos, o cinto de couro... tudo foi deixado ordenadamente. Entrou no banheiro e tomou uma ducha rápida. A água quente escorria por seus ombros largos, levando embora o cheiro de cigarro, pólvora e vinho tinto — vestígios de uma noite resolvida à maneira dos homens como ele. Ao desligar, pegou a toalha branca, secou o corpo vigorosamente e amarrou-a em torno da cintura com um nó despreocupado.
De volta ao quarto, parou por um instante à beira da cama de dossel, observando Ellis adormecida. O lençol de linho claro subia e descia suavemente com a respiração tranquila dela. Os cabelos castanhos estavam espalhados pelo travesseiro, e o contorno de seu rosto, parcialmente oculto, parecia ainda mais sereno sob a luz prateada.
Vittorio sorriu com aquele misto de ternura e desejo que só ela era capaz de provocar. Então, com um gesto silencioso, desamarrou a toalha e a largou sobre a poltrona ao lado, deslizando para dentro das cobertas, nu, como veio ao mundo. O calor do corpo de Ellis, a maciez da pele, o aroma familiar — tudo o ancorava ali, naquele momento.
Passou o braço forte pela cintura dela, puxando-a suavemente contra o peito. Ellis resmungou, o corpo se ajustando instintivamente ao dele, e, sem abrir os olhos, murmurou com a voz sonolenta e rouca:
— Terminou seus assuntos?
Vittorio sorriu, encaixando o rosto nos cabelos dela, inalando profundamente aquele perfume que tanto amava.
— Terminei. Inclusive... Donna.
Ellis estremeceu levemente, abrindo os olhos devagar e se virando para encará-lo. A penumbra não escondia a confusão estampada no olhar dela.
— O que você fez? — perguntou, a voz agora desperta, mas controlada, como sempre fazia quando o assunto era Donna.
Vittorio sustentou o olhar dela, com aquela calma que irritava e seduzia ao mesmo tempo, e respondeu:
— Só o que, sem dúvida, deixou Donna muito feliz.
Ellis arqueou uma sobrancelha, se apoiando no cotovelo, e soltou um suspiro tenso.
— Essa felicidade... envolve ela voltar para a família?
Vittorio soltou um riso abafado, puxando-a de volta para si, como se quisesse impedir qualquer distância física ou emocional.
— Não, amore mio... Isso está fora de cogitação.
Ellis franziu o cenho, apertando levemente o braço dele.
— Então, o que foi?
Vittorio se inclinou e beijou o pescoço dela, a ponta do nariz roçando a pele quente, arrepiando-a.
— Não vou contar — sussurrou. — Não quero tirar do seu rosto essa expressão genuína de felicidade... Prefiro que ouça da própria Donna amanhã.
Ellis soltou um leve riso incrédulo, mas havia algo nos olhos dela — aquele brilho misto de curiosidade e medo, que sempre surgia quando se tratava de Donna.
— E quando você vai contar a todos que ela... que Donna está saindo da família?
Vittorio continuou distribuindo beijos pelo pescoço e pelos ombros nus de Ellis, afastando devagar a alça da camisola de seda, expondo ainda mais a pele macia.
— No tempo certo — respondeu, com aquela ambiguidade calculada que tanto o caracterizava.
Ellis fechou os olhos por um segundo, respirando fundo, e então, com uma voz mais suave, disse:
— Vittorio... Eu sei que você quer controlar tudo... Mas hoje aconteceu uma coisa, e eu...
Antes que terminasse, Vittorio levou os dedos aos lábios dela, interrompendo-a com delicadeza, e sussurrou com aquele tom que mesclava reverência e desejo:
— Signora Amorielle... seria possível, por acaso, que você deixasse que eu fizesse amor com você agora?
Ellis riu baixinho, apertando de leve o pulso dele, mas então olhou nos olhos dele, séria.
— Sim... — murmurou — mas antes eu preciso de respostas.
Vittorio a puxou mais para perto, envolvendo-a completamente com os braços fortes, os corpos tão próximos que era impossível saber onde terminava um e começava o outro.
— Só para você saber... — disse ele, com a boca roçando o queixo dela — está tudo de acordo com o que deveria ser.
Ellis o empurrou de leve, encarando-o com aquele olhar que parecia atravessar todas as defesas dele.
— Isso não responde a nada.
Vittorio soltou um suspiro resignado, beijando os lábios dela suavemente, e depois sussurrou:
— Amanhã você terá todas as respostas.
Ellis arqueou a sobrancelha, o olhar afiado, mas ao mesmo tempo terno. Puxou o rosto dele, beijando-o com intensidade, como se quisesse arrancar dele todas as respostas que ele insistia em esconder.
O beijo foi longo, faminto, mas ao mesmo tempo contido, até que ela se afastou, deixando a mão descansar sobre o peito dele.
— Então amanhã... você fará amor comigo, se merecer — murmurou com um meio sorriso, e deslizou o corpo, se virando de costas para ele, se aconchegando sob os lençóis.
Vittorio ficou parado por um segundo, perplexo, encarando as costas nuas e os cabelos espalhados dela.
— É sério? — perguntou, com aquela incredulidade que só ela conseguia provocar.
Ellis puxou o lençol até os ombros, fechando os olhos com fingida serenidade, e murmurou:
— Boa noite, Don Vittorio.
Ele riu, abafado, e se aproximou, envolvendo-a novamente por trás, colando o corpo ao dela, mas respeitando o espaço que ela claramente havia imposto. Ficou ali, com o rosto enterrado nos cabelos dela, sentindo o cheiro, o calor, o pulso de vida que sempre o fazia voltar, não importava quão longa ou difícil fosse a noite.
Fechou os olhos, com um sorriso satisfeito, enquanto pensava em como, apesar de todos os segredos, de todas as manipulações e escolhas, aquela era, inegavelmente, sua casa.
E amanhã... amanhã Ellis saberia.
Assim como Donna.
E então, como sempre, o mundo continuaria girando — ao redor delas.