02 - Lorena

1122 Words
Lorena Narrando Me chamo Lorena, tenho dezessete anos, sou loira, olhos castanhos, pele clara, 1,67 de altura e carrego no peito um vazio que nem sei explicar direito. Sou órfã de pai e mãe. Meu pai, na verdade, nunca nem fez questão de me conhecer. Já a minha mãe, essa eu vi partir. Enterrei ela com as próprias mãos quando eu tinha quinze anos. Desde então, tudo desandou de vez. Moro no Leblon, num apartamento luxuoso, com o meu padrasto, Clóvis. Um traste alcoólatra que virou minha cruz. Ele era o companheiro da minha mãe antes dela morrer, e no início até fingia que queria cuidar de mim, mas hoje é só rancor e ódio que ele despeja em cima de mim todas as noites. Durante o dia, minha vida parece até normal. Acordo cedo, vou pra escola, tô no terceiro ano do ensino médio. Gosto de estudar, me esforço, não por mim, mas porque minha mãe sempre dizia que a educação era a única coisa que ninguém podia me tirar. Quando volto pra casa, a rotina é puxada. Lavo a louça que ficou do jantar de ontem, varro o chão, boto roupa na máquina, limpo os banheiros, cozinho alguma coisa pra comer mais tarde. Vou ao mercado. Faço tudo sozinha. Clóvis passa o dia inteiro na rua, provavelmente enchendo a cara em algum bar por aí depois que sai do trabalho. De vez em quando, entre uma tarefa e outra, pego o celular e mando mensagem pra minha família por parte de mãe. Tenho algumas tias que ainda tentam manter contato, primos e primas que mandam meme, falam besteira, me distraem. E também minha vó. A que mais tá comigo é a Milena, minha prima e minha melhor amiga. A gente se entende no olhar. Sempre que dá, ela aparece aqui, ou eu dou um jeito de ir até a casa dela. É com ela que eu desaba, é pra ela que eu conto o que ninguém sabe. Mas quando o sol se põe, tudo muda. À noite, minha vida vira um inferno. Um terror silencioso que grita dentro de mim. Clóvis chega fedendo a álcool, cambaleando, esbarrando nas paredes. E junto com ele vem o caos. Grita, xinga, quebra as coisas. Tem noite que eu me tranco no quarto e rezo pra ele dormir logo. Tem noite que não dá tempo. Hoje, por exemplo, acordei assustada com um estrondo vindo da cozinha. O coração disparou, a garganta fechou, e eu já sabia que era ele. Me levantei devagar, o chão gelado nos pés me arrepiando, mas não era de frio. Quando cheguei na cozinha, lá estava ele: olhos vermelhos, cabelo desgrenhado, o copo vazio na mão tremendo. — Limpa isso aqui, sua preguiçosa! — ele berrou, jogando a garrafa no chão. — Você não faz nada, só sabe gastar! Tô te avisando, o dinheiro tá acabando! E quando acabar, tu vai morar embaixo da ponte com a família da imprestável da tua mãe. Na hora, senti uma lágrima quente descer sem permissão. O peito apertou. Eu odeio quando ele fala assim da minha mãe. Ela foi tudo pra mim. Vivia dia e noite pra me dar o mínimo. Nunca me deixou faltar com nada, mesmo sozinha. Ouvir ele chamar ela de imprestável me rasga por dentro. Clóvis é um monstro. Um desgraçado que destruiu qualquer lembrança boa que eu já tive dele. Hoje ele come igual um porco, sujando tudo, derrubando comida pela casa, e depois joga a culpa em mim. Diz que eu sou inútil, que sou um peso morto. Não existe mais nem sombra daquele homem que foi um dia, quando eu era pequena. Hoje ele só sabe destruir. Às vezes eu me pego imaginando outra vida. Uma vida onde minha mãe ainda estivesse aqui, onde eu tivesse um lar de verdade. Uma vida onde eu não andasse na ponta dos pés dentro da minha própria casa. Onde eu pudesse dormir em paz, sem medo de ser acordada por gritos ou copos quebrando. Mas por enquanto, essa é a minha realidade. Eu acordo, respiro fundo e sigo. Porque sei que, apesar de tudo, eu sou forte. Porque a minha mãe me ensinou a ser. E por mais que doa, eu juro que um dia ainda vou sair daqui. Um dia, essa dor vira força. Um dia, eu viro a página. E Clóvis vai ser só uma lembrança amarga num passado que eu vou enterrar bem fundo. Hoje, quando cheguei da escola, mäl tive tempo de respirar. Nem fechei a porta direito e a campainha já tocou. Corri pra atender achando que fosse alguma entrega ou talvez a Milena, mas quando abri, dei de cara com o síndico do prédio. A expressão dele já dizia tudo: problema. Com os braços cruzados e aquele ar de superioridade que ele sempre faz questão de usar comigo, ele foi direto ao ponto. Chamou minha atenção mais uma vez por causa das multas acumuladas, jogou na minha cara as parcelas atrasadas do condomínio e, como se não bastasse, avisou que o gás ia ser cortado ainda hoje. Tentei explicar, pedi, quase implorei. Olhei nos olhos dele e falei com calma, com a voz quase tremendo, que a culpa não era minha. Que ele tinha que resolver isso com o Clóvis, porque eu só sou uma adolescente tentando sobreviver aqui dentro. Ele simplesmente virou as costas e saiu, como se eu fosse invisível. Voltei pra dentro com o coração apertado. O feijão estava no fogo, quase pronto, e do nada. O gás acabou. Ficou aquele cheiro pela metade, aquele gosto de frustração no ar. Fui até o celular, tentei ligar pro Clóvis várias vezes, mas como sempre, ele não atendeu. Deve estar num bar qualquer, largado numa mesa, enquanto eu fico aqui tentando manter esse lugar de pé com as mãos e o peito sangrando. Sem gás, sem almoço. Olhei pro pão em cima da mesa e foi com isso que me alimentei hoje. Pão seco com tristeza. E sei que, quando ele chegar e ver que o feijão tá cru, o show vai começar. Vai gritar, jogar as panelas no chão, dizer que sou inútil. Já até imagino o roteiro, porque é sempre o mesmo. Sobre amor, essas coisas de coração, paixão, eu nem penso. Não tenho espaço nem ânimo pra isso. Já gostei de um menino da escola, lá no primeiro ano, mas foi só uma bobeira de adolescente. Nunca beijei ninguém, nunca me envolvi com ninguém. Sou virgem, e pra ser sincera, não sei se isso algum dia vai mudar. Às vezes acho que, com essa vida que levo, ninguém nunca vai me querer. E, no fundo, talvez eu também não queira ninguém. Meu peito anda ocupado demais tentando só sobreviver.
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