01 - Prólogo

1072 Words
Lorena Narrando Tem coisa que a gente nunca esquece. Tem dor que, por mais que o tempo passe, continua morando na gente, quieta, escondida, mas viva. A minha começou bem antes do que eu gostaria de lembrar. Nunca conheci meu pai. Só sei que ele foi embora antes mesmo de eu nascer. E, sinceramente? Nem me faz falta. Quem fez o papel de “homem da casa” foi o Clóvis, marido da minha mãe. Formado, contador de renome, dinheiro ele tinha. Era o tipo de homem que pagava tudo, mas fazia questão de lembrar disso o tempo inteiro. A casa era nossa, mas ele andava por ela como se fosse um rei e nós, simples súditas. Eu e minha mãe. Ele nunca me bateu. Nem um tapa, nem um empurrão. Mas se alguém acha que isso me fez menos ferida, tá enganado. As palavras dele cortavam. E fundo. Até hoje eu lembro de uma vez que eu era pequena, devia ter uns sete anos. Brincando no parquinho do condomínio, tropecei e ralei o joelho. Comecei a chorar, mais de susto do que de dor. Clóvis apareceu na varanda, me olhou de cima a baixo e soltou: — Cala a boca, menina. Chora assim só quem é fraca. Se você não serve nem pra correr direito, serve pra quê? Estou trabalhando e não quero ouvir mais um pio. Minha mãe ouviu e veio tirar satisfação. Brigaram feio. Gritaram, se xingaram, e no final, como sempre, ficou tudo bem. Aquele “bem” que só quem já viveu uma casa quebrada entende. Cresci ouvindo discussões. Cresci entendendo que, mesmo pagando a escola cara, mesmo me dando roupas boas e comida farta, Clóvis não gostava de mim. E nem fazia questão de esconder isso. Quando eu fiz catorze anos, veio a bomba. Minha mãe estava doente. Câncer. Daqueles agressivos, que não deixam espaço pra muita esperança. Foram só alguns meses entre o diagnóstico e o adeus. Duas semanas depois do meu aniversário de quinze, ela morreu. Naquele dia, eu morri junto. Ou pelo menos parte de mim morreu. Clóvis virou um poço ainda mais fundo de arrogância e frieza. As minhas tias e minha avó tentaram me levar pra morar com elas, mas ele não deixou. Disse que me criou desde os três anos e que eu ficaria ali, com ele. E com dinheiro, a gente sabe, tudo fica mais fácil. Ele tinha bons advogados, e minha avó, que era uma senhora simples e sem recursos, apenas com uma aposentadoria, acabou cedendo. Conversamos e combinamos: quando eu fizesse dezoito, ia sair daquela casa e ir morar com ela. A maior preocupação dela, das minhas tias também, era que ele me fizesse algum mäl. Mas eu achava que isso não aconteceria. Ele nunca me encostou um dedo, por que faria isso agora? Com o tempo, aprendi a cozinhar, cuidar da casa, fazer o básico. Era o que eu fazia. Estudava de manhã e à tarde mantinha tudo limpo. A gente não morava em qualquer lugar: era um apartamento grande, condomínio fechado, tudo de luxo. Só que isso não servia de consolo quando a alma tava em ruínas. Clóvis começou a beber. E não era pouco. Chegava tarde, tropeçando, derrubando tudo pela sala. Xingava o jantar, chutava as panelas, fazia questão de transformar a cozinha num campo de guerra. E lá ia eu, madrugada adentro, esfregando o chão, recolhendo os cacos, tentando manter as aparências. Vira e mexe, o condomínio mandava multa. Reclamação de vizinho. Barulho, bagunça. E adivinha pra quem sobrava o sermão? Pra mim. Comecei a ligar pra minha avó, contar por alto o que estava acontecendo. Ela queria chamar a polícia, mas eu implorava pra deixar pra lá. Clóvis ainda não tinha me machucado de verdade. Só era um homem podre que, por algum motivo, se achava no direito de destruir tudo ao redor. Já se passaram dois anos do meu inferno. Até que chegou a noite que mudou minha vida. Era madrugada. Eu dormia, cansada como sempre, quando fui acordada por barulho. Achei que era mais uma vez Clóvis derrubando móveis, tropeçando nos próprios passos. Mas dessa vez tinha algo diferente. O som era mais forte, mais grave. E aí eu ouvi dois gritos. Dois gritos desesperados. Eram dele. Me levantei num pulo. O coração batia tão forte que parecia que ia sair pela boca. Corri pra sala e, quando cheguei lá, congelei. Quatro homens. Altos, armados, todos vestidos de preto. Um deles socava Clóvis sem dó. Os outros três apontavam arma pra ele. — MEU DEUS! — gritei. — O que tá acontecendo aqui?! Tentei voltar pro quarto, mas não deu tempo. Um deles me agarrou pela cintura como se eu fosse um saco de pão. Me levantou com uma facilidade absurda. — ME SOLTA! — berrei, desesperada, me debatendo. — ME SOLTA AGORA! Foi aí que ouvi a voz de Clóvis, fraca, desesperada, mas audível: — Levem ela, Levem a Garota. Ela é virgem! Tem só dezessete anos, ela vale mais do que estou devendo. Eu paralisei. — O quê? — minha voz saiu engasgada. — O que você tá falando? Um dos caras puxou meu cabelo com força, me fazendo gritar de dor. — Cala essa boca, garota! — ele rosnou. — Você vai pro Cavaleiro. — Cavaleiro? — perguntei, confusa, em prantos. — Quem é esse? Ele não respondeu. Me jogou no ombro como se eu fosse um peso qualquer. Eu berrava, chorava, chutava, pedia socorro. Nada adiantou. Naquela noite, meu mundo virou do avesso. Eu, que só queria terminar o ensino médio, sair daquela casa, construir minha vida, me tornei uma moeda de troca. Algo negociável. Um “pagamento”. Não sei o que Clóvis devia. Não sei que tipo de acordo sujo ele fez. Mas sei que ele escolheu me vender. Escolheu me entregar como se eu não fosse nada. E foi ali, sendo jogada dentro de um carro preto, com as mãos amarradas e o gosto do choro na garganta, que eu entendi: o verdadeiro monstro da minha história nunca esteve debaixo da minha cama. Ele dormia no quarto ao lado. E agora, eu ia para as mãos de outro. Nas mãos do meu monstro, vendida pelo meu padrasto. Autora! Olá meus amores, estamos começando mais uma obra. as atualizações diárias dessa história serão a partir do dia: 11/08. add na biblioteca e ativa as notificações que vai ser um babado atrás do Outro.
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