O dia seguinte começou igual a tantos outros na vida de Yara: despertador tocando às nove, olhos ardendo pelo sono m*l dormido e o frio londrino entrando pelas frestas da janela.
Ela se levantou devagar, colocou o uniforme ainda úmido porque a secadora do prédio estava quebrada há semanas e saiu rumo ao bar, onde o cheiro de fritura e cerveja derramada já fazia parte da rotina.
O turno foi pesado desde o início. Gente demais, pedidos demais, gerente irritado demais.
E Yara… cansada demais.
Por isso, quando o terceiro copo escorregou de sua mão e estilhaçou no chão, ela fechou os olhos com força, já sabendo o que viria.
— Santos! — o gerente bufou, aproximando-se com o cenho franzido. — Três copos em um dia? Você sabe que isso vai ser descontado do seu pagamento, certo?
O rosto de Yara queimou de vergonha.
— Eu sei, senhor. Desculpa. Eu não fiz por querer…
— As desculpas não pagam as contas. — Ele virou as costas, irritado. — Se concentra. Se não melhorar, vamos ter que rever suas horas.
As palavras bateram mais forte do que ela gostaria de admitir.
Horas reduzidas significavam menos dinheiro.
E menos dinheiro… significava que sua mãe, no Brasil, teria que escolher entre pagar a conta de luz ou comprar remédio para a irmã mais nova.
Quando o turno acabou, Yara saiu pela porta dos fundos do bar, o ar frio batendo contra o suor do trabalho.
Ela abraçou o casaco contra o peito e ficou ali parada, respirando fundo, tentando colocar os pensamentos em ordem.
Londres era linda, mas também era dura.
E, naquele momento, parecia ainda mais distante do que nunca de tudo que ela conhecia.
Sua mente viajou para longe:
A casa simples em Salvador onde nasceu, desceu para o Rio de Janeiro, onde cresceu.
O barulho da panela da mãe cozinhando feijão.
A risada alta das irmãs no quintal.
O cheiro de mar, de comida boa, de vida simples.
Um aperto surgiu em sua garganta.
Ela tinha vindo para Londres para ajudar a família.
Para juntar dinheiro.
Para dar às irmãs uma chance melhor do que ela teve.
Mas até agora… tudo parecia ser luta.
— Três copos… — ela murmurou para si mesma, sentindo os olhos arderem. — Pelo amor de Deus, Yara, se concentra…
Ela pegou o celular e olhou a última mensagem da mãe:
“Filha, não se preocupa. Estamos bem. Só se cuida, tá?”
Yara sorriu tristemente.
— Ah, mãe… se você soubesse.
Ela respirou fundo de novo, recolheu a força que ainda restava e começou a caminhar pela calçada.
A noite estava só começando, e ela precisava se recompor antes de chegar em casa.
Não queria que Beatriz percebesse seu cansaço não quando a amiga já tinha problemas o suficiente.
Mas, enquanto caminhava, Yara não fazia ideia de que seu caminho e o de Harry estavam prestes a se cruzar de novo…
E que sua vida estava muito perto de deixar de ser apenas “sobrevivência”.
Harry passou a manhã inteira tentando se concentrar no trabalho.
Tentou revisar relatórios, analisar projeções, verificar contratos pendentes.
Mas cada vez que os números começavam a fazer sentido, a mesma imagem voltava à sua mente:
A garçonete do bar.
O sotaque diferente.
O sorriso rápido.
O jeito leve demais para alguém claramente cansada.
E, principalmente, a ideia.
Aquela ideia insana de transformá-la em sua noiva falsa.
Ele apoiou o cotovelo na mesa e esfregou a têmpora, irritado consigo mesmo.
— Ridículo… completamente ridículo. — murmurou, fechando o relatório que não tinha conseguido ler nem pela metade.
Mas, ainda assim, era o único plano que parecia lhe dar algum controle.
Algo concreto.
Algo que ele poderia usar para finalmente encerrar a chantagem emocional do pai.
Duas vezes ele tentou voltar ao trabalho.
Duas vezes falhou.
Às três da tarde, ele simplesmente jogou a caneta sobre a mesa, levantou-se e pegou o casaco.
— Sr. Bakserville? — a assistente chamou ao vê-lo passar. — O senhor vai sair?
— Sim. Avise que já encerrei o expediente. — ele respondeu, curto.
No elevador, seu reflexo apareceu nas portas de metal: terno impecável, expressão fechada, mandíbula rígida.
A imagem de um homem no controle.
Só que ele se sentia qualquer coisa, menos isso.
Harry estacionou seu carro do outro lado da rua.
O bar era o mesmo da noite anterior, mas durante o dia parecia mais discreto, com a fachada apagada e poucos clientes.
Ele não sabia ao certo o que tinha vindo buscar.
Mas seu olhar se acendeu quando a porta dos fundos abriu.
Yara saiu de lá.
Com o uniforme preto, um casaco leve e o cabelo preso de qualquer jeito, ela parecia exausta mas ainda assim, de alguma forma, carregava aquela mesma leveza.
Harry ficou imóvel, observando-a sem coragem de se aproximar ainda.
Ela puxou o celular, guardou rapidamente e atravessou a rua até um pequeno food truck que vendia hot dogs.
O vendedor a cumprimentou pelo nome o que fez Harry arquear uma sobrancelha.
Ela já era conhecida ali.
A cena era simples.
Mas para Harry, parecia… íntima.
Yara sorriu para o vendedor, pediu algo e ficou esperando com as mãos nos bolsos, balançando o pé, quase dançando sem perceber.
O vento frio brincava com alguns cachos soltos em volta do rosto dela.
E ele sentiu o peito apertar.
Ela não era como as pessoas à sua volta.
Não tinha a postura endurecida dos londrinos.
Havia calor nela.
Vida.
Cores que pareciam deslocadas naquela cidade cinza.
Harry percebeu, então, que estava encarando demais.
Passou uma mão pelo cabelo, tentando se recompor.
— Você está realmente considerando isso… — murmurou para si mesmo.
Sim. Ele estava.
A cada minuto mais.
Yara recebeu o hot dog, agradeceu com um sorriso grande demais para quem claramente estava tendo um dia difícil, e se afastou, sentando num banco próximo.
Harry deu um passo à frente.
Depois outro.
Então parou.
Porque, pela primeira vez, percebeu uma coisa muito simples:
Ele nem sabia o nome dela.
E estava prestes a lhe fazer a proposta mais louca da sua vida.
Mas naquela tarde, enquanto observava Yara comer sozinha, comendo devagar como quem saboreava um momento raro de descanso…
Ele soube que precisava falar com ela.
Não hoje.
Mas em breve.
Muito em breve