Harry saiu da sala de reuniões como um furacão silencioso.
A porta bateu atrás dele com tanta força que o som ecoou pelo corredor inteiro do andar executivo, fazendo duas secretárias se sobressaltarem. Ele não olhou para ninguém. Não cumprimentou, não explicou, não respirou. Apenas caminhou, tenso, como se estivesse segurando o próprio corpo para não explodir de vez.
O elevador desceu devagar demais para o seu humor. Quando as portas se abriram na garagem privativa, o cheiro de concreto frio o recebeu junto com o brilho metálico de seu carro um sedan luxuoso, impecável, silencioso, que naquele momento parecia pequeno demais para conter tudo o que ele estava sentindo.
Entrou e bateu a porta. O impacto abafado ecoou dentro do veículo.
Respirou fundo, apoiando os braços no volante, a testa encostada no couro frio.
A raiva ainda pulsava na garganta, misturada a uma dor antiga e m*l cicatrizada.
Por alguns segundos, ele lutou para controlar o próprio coração.
Depois, pegou o celular e discou o número que conhecia melhor do que o próprio.
Brooks atendeu antes mesmo do segundo toque.
— Diga que você não matou seu pai. — A voz de Brooks era leve, mas atenta. — Porque pelo seu silêncio desde ontem, eu já estava quase ligando para a polícia.
— Não matei — Harry respondeu, com a voz áspera. — Mas quase.
— Então aconteceu de novo?
Harry riu sem humor.
— Aconteceu pior. Jogou a Olívia na minha cara dessa vez.
Houve um instante de silêncio do outro lado, rápido, como se Brooks tivesse prendido a respiração.
— Tá. Você precisa beber. Muito. — Brooks decidiu. — Vem pro bar novo na Westwood, o Blue Raven. Ambiente escuro, música boa, e ninguém te reconhece como “o Bakserville”. Tô indo pra lá agora. Dez minutos.
— Dez minutos. — Harry confirmou.
Ligou o carro. O motor ronronou como um felino caro e irritado.
Ele saiu da garagem acelerando mais rápido do que deveria, como se a velocidade conseguisse arrancar de si as últimas palavras do pai.
O Blue Raven realmente era novo. Luzes azuladas, madeira escura, mesas amplas e discretas. Do lado de fora, parecia um esconderijo urbano; por dentro, era exatamente o tipo de lugar onde homens cansados iam beber sem serem incomodados.
Brooks já estava numa mesa reservada, duas cervejas altas e geladas esperando.
Ele levantou a sobrancelha quando viu Harry se aproximar.
— Você está com a cara de quem brigou com um leão velho. — Brooks comentou. — Deixa eu adivinhar: o leão venceu.
Harry se sentou, puxando a cadeira com um suspiro pesado.
— Ele disse que se eu não arrumar alguém pra estar ao meu lado, vai colocar o Jonathan como diretor.
Brooks arregalou os olhos.
— Jonathan? O mesmo Jonathan que achou que imposto era opcional no ano passado?
Harry não respondeu. Apenas tomou metade da cerveja de uma vez.
Brooks observou o amigo beber, depois apoiou os cotovelos na mesa.
— Tá. Senta. Respira. Começa do início. O que exatamente aconteceu hoje?
Harry passou a mão no rosto, cansado, mas agora com alguém disposto a ouvir.
E no Blue Raven, com a música baixa e a luz azul refletindo nos olhos, ele finalmente se permitiu falar tudo, sem filtro.
A noite estava só começando.
E com ela, talvez, algo fosse mudar.
Harry falava sem parar, despejando cada detalhe da discussão, como se finalmente tivesse aberto uma represa que segurou por tempo demais.
— …e então ele jogou a Olívia na minha cara. A Olívia, Brooks. Quatro anos depois! — Harry esbravejou, a voz grave, cansada, carregada de mágoa. — Ele realmente acha que eu vou aparecer com uma mulher só pra agradar o conselho? Pra montar um circo?
Brooks bebeu um gole, observando o amigo com um misto de preocupação e paciência.
— Harry, seu pai sempre foi assim. Controlador. Possessivo com a empresa. Mas colocar o Jonathan… — Brooks balançou a cabeça. — Isso foi golpe baixo.
Harry passou a mão no cabelo loiro, bagunçando-o, e encostou no encosto da cadeira.
— Eu não aguento mais essa pressão, Brooks. Ele fala comigo como se eu tivesse dezoito anos. Como se eu fosse um irresponsável. — Harry apertou as mãos, o maxilar travado. — Eu me mato de trabalhar. Eu dreno minha vida ali dentro. E ele ainda assim acha que… — sua voz falhou, tomada pela irritação — …que eu não sou suficiente.
Ele estava tão imerso no próprio mundo, tão mergulhado naquela tempestade de raiva e frustração, que quase não percebeu a aproximação de alguém à mesa.
Foi Brooks que se endireitou primeiro, abrindo um sorriso.
— Ah, finalmente — ele disse. — A porção.
Harry levantou os olhos apenas por reflexo, sem realmente esperar nada.
Mas o breve olhar transformou-se em atenção imediata.
A garçonete era bonita. Não o tipo de beleza chamativa ou exagerada mas algo mais quente, natural.
Pele bronzeada, como se tivesse passado metade da vida sob o sol.
Olhos castanhos intensos, profundos, que brilhavam sob a luz azulada do bar.
Cabelos castanhos cacheados caíam em ondas suaves sobre os ombros, movendo-se com leveza enquanto ela colocava a bandeja na mesa.
— Aqui está a porção de vocês, — ela disse, com um sorriso educado.
O detalhe que pegou Harry de surpresa não foi seu sorriso.
Foi a voz.
Um sotaque forte, arrastado de um jeito suave, quase musical.
As palavras pareciam dançar, cantadas… algo no ritmo delas soava diferente. Ele não conseguia identificar de onde, interior? Nordeste? Sul? mas o som o pegou desprevenido.
Brooks agradeceu, abrindo um sorriso amigável.
Harry, por outro lado, ficou olhando por meio segundo a mais do que deveria não por atrevimento, mas porque o cérebro dele simplesmente… parou. Como se estivesse tentando decifrar o som daquela voz.
Ela percebeu o olhar, mas não pareceu desconfortável. Apenas curiosa.
— Posso trazer mais alguma coisa? — ela perguntou, olhando primeiro para Brooks e depois para Harry.
Quando o olhar dela encontrou o dele, Harry piscou como se finalmente acordasse do próprio torpor e endireitou a postura.
— Não — ele respondeu, a voz rouca, surpreendido consigo mesmo. — Só… isso mesmo. Obrigado.
Ela sorriu de novo, um sorriso pequeno que pareceu iluminar seus olhos e se afastou, deixando um rastro suave do perfume que usava, alguma coisa doce e discreta.
Brooks esperou ela se distanciar dois metros antes de erguer uma sobrancelha.
— Bom… — ele disse, apoiando a mão no queixo — …pelo menos agora eu sei que você não morreu por dentro.
Harry o encarou, mas não conseguiu esconder o rubor leve, quase imperceptível, no pescoço.
— Não começa,Brooks.
— Só tô dizendo — Brooks riu — que talvez seu pai esteja errado. Porque claramente alguma coisa ainda consegue te tirar do estado de ogro resmungão.
Harry olhou para a direção em que ela tinha ido, tentando entender por que aquele sotaque ainda ecoava na mente dele como uma música suave.
E, pela primeira vez naquela noite, seu peito não doía tanto.