SEGUNDA ERA
Eram poucos os julgamentos em que o rei supremo dos sete reinos Erduo Brascher, elfo da terceira ordem e a Rainha Loren Casterra, herdeira do reino bruxo, sua esposa, se faziam presentes. Dada a gravidade da situação, a presença de ambos foi requerida pelo tribunal de justiça da corte.
O julgador responsável por conduzir aquele julgamento, seria Navarra. Um comum, assim como todos os membros do tribunal de justiça. Ele era um homem na casa dos setenta, atarracado, com os lábios curvados para baixo, pesados pelo vício da idade; seus cabelos eram brancos e escassos, recobertos pelo capelo preto, honraria que apenas os julgadores tinham o direito de usar. Sua toga preta com a estola de seda dourada, impunha grande respeito diante de todos os membros dos sete reinos.
Já havia alguns anos que Navarra não conduzia nenhum julgamento, desempenhando apenas o cargo de chanceler da coroa, mas nenhum dos outros julgadores se atreveram a conduzir aquela sessão, o que era muito compreensível, afinal, ninguém se sentia confortável para conduzir um julgamento entre elfos e bruxos, principalmente, quando o réu em questão era filho de um dos governadores regentes do reino bruxo.
Apesar de sua postura rígida, fria e inabalável, o chanceler Navarra tinha as pernas desconfortavelmente tremulas. Ele era um julgador. Na teoria tinha autonomia e liberdade para conduzir o caso. Na teoria elfos e bruxos respeitavam os decretos reais. Na teoria a paz entre essas duas raças era estável, firme e duradoura. Então qual o motivo do desconforto? Navarra se perguntou enxugando o suor fino que se formava em sua testa.
Por mais que o chanceler tentasse minimizar a questão, pensando que tanto ele como sua família dispunham de total segurança por morarem na Cidade Baixa, “a cidade élfica”. Ele não conseguia aliviar a tensão e o nó em sua garganta.
Fechando os olhos, por um breve momento, desejou inventar qualquer coisa que justificasse a sua substituição naquele caso. Mas Navarra tinha um nome a zelar e precisava se manter firme, precisava manter a coragem e neutralidade do julgamento.
Honrar o seu cargo, era honrar todo o reino dos comuns, afinal, somente comuns podiam se tornar julgadores, uma conquista tomada e exigida pela luta e sofrimento de muitos. Não podia permitir que um moleque inconsequente, engolisse a sua coragem, apenas por ser filho de um dos magos mais poderosos do mundo bruxo. Ele era o chanceler da coroa suprema, ele teria que impor sua autoridade sem demonstrar medo e era isso que faria.
Após longos momentos de reflexão, o chanceler suspirou fundo e deu início ao julgamento referente a morte de Lasis Zunuii, elfo da sétima ordem, soldado estudante, morto durante atividade escolar no campo acadêmico de Tunnel, o maior centro de formação estudantil dos sete reinos, localizado nas fronteiras das Terras-nínficas com as Terras-Altas, pelo então acusado, Darius Brett, filho de um dos governadores do reino bruxo, Lucan Brett.
O garoto elfo, não vinha de família renomada, era um elfo comum (sem asas), um dos muitos jovens elfos que seguia seu treinamento para entrar para a guarda real. Pertencendo assim a classe mais baixa entre os elfos. Mas, não deixava de ser um elfo, o que tornava a situação bem mais complexa.
Condenar o filho de um dos governadores bruxos, não era algo que um julgador faria sem se sentir ameaçado, afinal quem confiava em bruxos? Sombrios e traiçoeiros, quem poderia garantir que nenhuma maldição cruenta seria lançada no sigilo de seus feitiços?
Haviam magos responsáveis por impedir qualquer feitiço, ou uso de magia dentro do pequeno Palácio de Lapur, local onde o julgamento estava sendo conduzido. Mas magos eram bruxos e isso não deixava de causar um grande desconforto nos membros responsáveis por conduzirem a sessão.
Por outro lado, a vítima, do caso em questão, era um elfo e o Rei supremo não deixaria o caso impune. Como sua esposa, a Rainha suprema, era uma bruxa, agora cabia a ele, um julgador comum e chanceler do departamento de justiça da coroa, dar seu veredito.
Aquela já era a terceira vez em que as partes se reuniam para apuração dos fatos e isso estava consumindo a curta paciência do Rei, que exigia um veredito.
Navarra não era ingênuo e faria o que fosse preciso para retardar a sentença de Darius Brett, o condenando apenas, quando não houvesse mais como negar sua inocência. Só o condenaria, quando ele por si só, já estivesse irrevogavelmente condenado.
Darius Brett era um jovem sombrio, diabólico e c***l. Os cabelos loiros e lisos, eram curtos, o que dava um ar de desafio, em contradição aos costumes da época, lhe concedendo uma beleza jovial e dissimulada.
Depois de tantos depoimentos, Navarra já o teria condenado mil vezes a morte, mas a coragem para bater o martelo o estava desestruturando.
- Como o senhor pode afirmar que o sr. Brett estava incitando a serpente, se já falou que não tem domínio sobre o idioma acurano (idioma dos bruxos)? – o defensor Malvin, insistiu na pergunta feita a uma das testemunhas, que estava presente, no momento da morte do garoto elfo.
Navarra aceitou o argumento.
- Todo mundo viu que ele estava incitando a serpente. Não precisa falar o acurano pra isso. Ele tinha um sorriso diabólico. A serpente avançava a cada ordem dele – A testemunha, um dos estudantes elfos afirmou, indignado.
- Isso é verdade sr. Brett ? – o chanceler perguntou sabendo que o garoto não seria t**o de admitir.
- Não estava sorrindo. Estava tentando acalmar a serpente – garantiu tranquilo - Gosto de gesticular os lábios quando falo, quem está vendo pode achar erroneamente que estou sorrindo – Brett se defendeu com um debochado sorriso nos lábios.
O descaramento, a frieza, a tranquilidade de Darius, tornava tudo ainda mais difícil. O rapaz não deixava transparecer qualquer fio de medo ou insegurança. Ele era diabólico, sua família era diabólica. O chanceler tocou o colarinho de sua bata se sentindo sufocado, tentando não suar. De soslaio, ele olhava para o governador Lucan, que assim como o filho, não deixava qualquer expressão facial escapar diante da situação.
Navarra solicitou que o professor de acurano viesse depor, o que desagradou a multidão que assistia ao julgamento, principalmente os elfos presentes. O salão estava repleto de centauros, Alfeus, sangues-negros, bruxos, comuns e fadas, todos ansiosos pelo desfecho do julgamento. Navarra não lembrava de ter visto aquele salão tão cheio antes.
- Então, professor Jardel Bittar, o senhor garante que o idioma acurano pode realmente simular um sorriso, quando falado? – O defensor interrogou ansioso.
- O depoimento do professor Jardel Bittar deve ser desconsiderado, pois ele é um bruxo e sua resposta certamente irá em defesa do acusado - A acusação protestou.
- O parecer do professor Bittar será considerado – Interveio Navarra.
Apesar de Darius Brett, aparentemente, ter assassinado um elfo diante de vários alunos no colégio, o chanceler Navarra o inocentou por falta de provas e pois fim ao julgamento. O velho julgador se negou a retornar para casa com aquele caso, mais uma vez pendurado em suas costas.
O julgamento chegara ao fim, a insatisfação corroendo a bile dos elfos. A reprovação dos outros julgadores estampadas como adornos em seus rostos, mas Navarra não se sentiu culpado, portou-se como incapaz de entregar outro veredito, como se a ausência de uma sentença de morte, fosse responsabilidade unicamente da acusação, em não mostrar fatos coerentes e concisos.
Após o julgamento, o rei Erduo decretou que todos os elfos passariam a estudar acurano, o idioma sagrado dos bruxos, o que gerou um certo descontentamento. Como não havia uma proibição em estudar o idioma feérico, ninguém pode se opor ao decreto. Os colégios permaneceram unificados, como seguia o desejo tanto do Rei, como da Rainha, porém, a segurança foi redobrada, tendo agora tropas de soldados centauros espalhadas por todos os colégios. Soldados com total autonomia para dar ordem de prisão a qualquer um que ferisse a paz maior.