Aquilo que está por trás

2328 Words
Uma música suave e repetitiva ecoou languidamente pela lanchonete parcialmente vazia — não seria o seu gênero musical favorito tampouco um som sugestivamente tranquilo que faria com que relaxasse com o ritmo. Soava como uma sinfonia à monotonia de uma manhã fria de uma quarta feira, sem grandes eventos além das chuvas ocasionais no qual Lyana acreditava ser um presságio para um rigoroso outono. A temporada de instabilidade de temperatura se apresentava mais próxima e o clima menos acolhedor. Tentou apreciar melhor a canção seguinte reproduzida na jukebox, bebericando o café morno que pedira minutos antes, ouvindo o que lhe parecia algo mais como um indie mais ambiental, o que favorecia em se prender a determinados assuntos que não conseguia esquecer. Vagando para um terreno cheio de minas que qualquer passo em falso as acionaria. Do outro lado, vendo pela janela, havia um cartaz com uma fotografia de uma jovem adulta estampado com letras garrafais o nome e informações básicas para providenciar pistas e saber seu paradeiro para os transeuntes. Apesar de querer levar a situação para um lado menos negativista brincando com o fato de que o garota na imagem não iria gostar que usassem a foto que menos estava fotogênica, seu coração pesava com a as possibilidades de uma série de coisas ruins que podem ter acontecido com ela e que não tinha feito um bom trabalho como amiga não sendo rápida o bastante para socorrê-la, talvez tivesse um resultado diferente com sua chegada. Nunca saberia. Ivy Marie Valentine desapareceu há dias. Sem deixar rastros para trás que indicassem a identidade de seu raptor ou, na melhor das hipóteses, da sua truculenta fuga. Sem avisos para que não houvesse uma perturbação real de suas condições, simplesmente evaporou como se não existisse — igual os inúmeros casos do gênero. Os folhetos impressos com seu retrato preenchiam cada poste da cidade e logo estariam pelo país todo como um procedimento padrão. Fitou alguns panfletos dispostos na mesa que precisava distribuir: os pais de Diva estavam trabalhando arduamente com as mesmas linhas de raciocínio que os investigadores e dentre as teorias formadas pelas evidência de combate na casa, se tratava de um sequestro. Aquele material todo servia para ver se alguém forneceria um testemunho fresco para que ela fosse encontrada logo. Essa rotina tem durado dias intermináveis sem sucesso — revirando seu estômago de ansiedade a cada hora sem respostas. Os pais de Diva se empenhavam na busca indo ao limite de suas capacidades. Eles não queriam que sua filha virasse apenas mais um rosto nas fichas de desaparecidos, pois viver com a incerteza de sua localização e seu estado lentamente os mataria por dentro. Entendia completamente essa dor e não desejava vê-los definhar com as dúvidas. Entretanto, no fundo, sabia que essa questão não se resolveria como mais um caso de pessoas que somem sem deixar rastros. Bebeu uns goles do café, tirando um pingente do bolso do casaco: tinha sido um presente de aniversário que dera a Diva que se unia ao seu próprio cordão como um par — que ela passou a usar sempre desde então. Simbolizando a amizade longa de ambas e que uma completava a outra. Recostou-se na mesa, afundando em suas lembranças que a engolfavam como uma avalanche. Quis bloquear aquela tempestade de emoções ao máximo para não perder a compostura e se debulhar em lágrimas, mas quanto mais tentava contê-las com mais força elas vinham. Sem mais oferecer resistência com as forças prestes a se esvaírem, recordou da noite do sumiço da melhor amiga, já com a adrenalina jorrando por dentro. A chuva iniciou-se tímida, nada que causaria grandes problemas e estranhou que na casa de Diva a energia tenha simplesmente ido à baixo. No entanto, a distância viu faíscas percorrerem as paredes — pelo seu conhecimento vago a respeito de raios, madeira não era condutor, embora tivesse suas dúvidas quanto a concreto — algo que nem a mais destrutiva tormenta seria capaz de produzir. Era um fenômeno muito específico para ser uma reação de descargas elétricas comuns e engoliu em seco com um súbito temor que lhe ocorreu. Aquilo não podia estar acontecendo, não estava pronta. Correu o mais rápido que suas pernas exaustas conseguiam na pista molhada, com a voz firme, indagou profundamente: — Está na linha, Diva? Pela convivência que ambas tiveram, sabia mais que qualquer pessoa que Diva possuía um certo grau de fobia da escuridão e que arrumar coragem para sair de sua zona de conforto no completo breu não era uma tarefa fácil na qual ela lidaria bem. Decidiu impulsionar seu corpo com mais velocidade, sentindo o pulsar do coração acelerado martelar em seus ouvidos devido a intensidade da corrida. — Estou na rua da sua casa, me espera! — pediu a plenos pulmões, disparando para perto do carro de um dos vizinhos. Escutou uma segunda voz, bem acentuada e uma masculina. — Lyana! Chama a polícia! Um maluco invadiu minha casa! — escutou um grito e sons de um corpo caindo no chão, uma confusão de ruídos que a desesperaram até não ouvir mais nada. Seu sangue congelou e sem perder tempo, chegou na porta de entrada que estava trancada, para seu desespero. Nem mesmo com suas investidas causava algum efeito para derrubá-la, tornando sua luta mais cansativa e devastadora. Rodeou a casa em direção a janela e viu: o brilho branco envolver Diva. — Não! — berrou sem ter a chance de reverter a situação e assistindo sua amiga desaparecer, impotente e inconsolável. Despertou em um rompante, esquadrinhando o local sem movimentação e suspirou, guardando o pingente. Terminou o café e voltou ao trabalho, tocando o amuleto que a pessoa que amava lhe presenteou ao que pareceu séculos atrás se perguntando se ele a perdoaria por não cumprir a promessa. ××× A aura intimidante vinda do homem ressoava com intensidade — embora se vestisse como um cavalheiro de classe e elegância, adornado com preto dos pés a cabeça, havia algo nele que não condizia com sua imagem suntuosa. Ele ergueu a cabeça e as gemas verde lago que transmitiam austeridade e frigidez, logo derreteram em uma resplandecência de carinho que, geralmente, compunha um padrão de cordialidade entre conhecidos — como se reencontrassem um amigo próximo após anos de separação, o que não era o nosso caso. Não estava na minha cartilha de “como sobreviver em um universo supostamente fictício” nada orientando quanto aos indivíduos originários desse mundo terem um aspecto não humano muito suspeito — ou talvez seja um dos clássicos sintomas de paranoia se manifestando e que enchia minha mente de bobagens e crenças de que ninguém daquele mundo fosse como eu. Algo em mim estalou, me trazendo para a realidade na qual ainda estava imóvel igual uma estátua e com os olhos presos no rapaz. Tomar consciência de como meu comportamento denotava estranheza, me fez abrir caminho para autorizar a passagem do suposto cliente — é que deduzi de acordo com o óbvio. Sem cerimônias, ajustou a gola da camisa que, pela minha perspectiva, parecia de um material caro. Na verdade, todas as peças que integrava suas vestimentas quase gritavam, a plenos pulmões, luxo e bom gosto — nada que meu orçamento universitário fosse capaz de pagar. Seu visual destoava até com o cenário e não imaginaria que alguém com grandes aquisições quisesse vir pessoalmente, pelo meu vago conhecimento, as negociações deveriam ter o suporte de um informante — falou a especialista em Devil May Cry. Em uma inspeção rápida, não encontrei uma identificação — não que esperasse um crachá da parte dele — ou um pertence que sugerisse algo dentro dos meus parâmetros de normalidade que, até a atual ocasião, tinham ido parar na terra do nunca. — Bem vindo ao Devil May Cry! — saudei educadamente. Assim que ele adentrou o recinto em passos cautelosos, retirou a cartola que usava e mexeu no cabelo longo e escuro para ajeitá-lo no penteado ideal — tudo isso em um curto intervalo de tempo. Tinha que admitir: o cara era bonito. Daqueles que as meninas apreciavam com sorrisinhos e babavam discretamente — ou não, nem todas agiam com tanta naturalidade. Os cabelos negros caíam graciosamente pelas laterais de seu rosto como uma moldura para destacar sua aparência suave, divergindo com o caráter mais despojado de Dante, pois, enquanto o meio-demônio possuía pelos faciais por fazer e um aspecto mais selvagem, o rapaz não apresentava um único defeito na pele ou uma pelugem característica de um homem da suposta idade — ele conseguiu a proeza de ter uma skincare melhor que da Lyana que, para mim, simbolizava a perfeição. Ninguém competia com minha melhor amiga no que se refere a cuidados pessoais e vaidade, no entanto, ali, na minha frente, um cliente que facilmente poderia ter o mérito de ser um rival digno para ela — a batalha dos dois seria lendária. A princípio, acreditei que o desconhecido fosse direto conversar com Dante sobre o trabalho — afinal essa era a profissão dele —, entretanto, ele se virou com fluidez e se pôs diante de mim, evitando invadir, de forma abusiva, meu espaço pessoal. Ele inclinou a cabeça ligeiramente para frente como uma reverência discreta e polida. A impressão inicial, de que uma ínfima parte dele era estranha, se evaporou prontamente com sua postura. — Posso ajudá-lo? Ou veio aqui apenas para admirar a recepcionista? — Dante gracejou sem pudor, jogando até com o fato de ter atendido o rapaz. — Só sou recepcionista se me pagar. — repliquei, repousando as mãos na cintura. — Ei, não vamos inverter a rede de negócios aqui, você que está me devendo, senhorita. — se levantou com feições serenas de um homem, lindo pra caramba, sem grande afetação. O rapaz o mirou por uns segundos e voltou a me encarar, com uma expressão serena. — Estive procurando por você. Por um longo tempo. — murmurou com gentileza. — Não sabe o quanto estou feliz que esteja bem. — Eu te conheço? — não sei se fora devido ao efeitos primários do estresse ou pelo desconcerto, minha voz saiu rouca e a pergunta soou arrastada. — Não, infelizmente. Entretanto, eu a conheço muito bem e, pelo que vejo, você virou uma bela mulher. — um sorriso iluminou suas feições que já emanava ternura, tornando a conduta mais credível. Ruborizei com ele tecendo comentários favoráveis a minha aparência. — O que faz nesse lugar decadente? O rapaz balançou a cabeça condescendentemente. — Claro, as circunstâncias a obrigaram a viver aqui. — Minha agência pode não ser um hotel de luxo. — ouvi a pisada ruidosa e a risada pretensiosamente sarcástica ecoando e, pela minha visão periférica, vi Dante se aproximar, com sutileza e irreverência. — Mas não vejo ninguém reclamar, claro que se estiver incomodado e com bastante disposição, convido você a fazer uma colaboração com as tarefas domésticas. O homem não se abalou ou se demonstrou intimidado com a petulante proximidade do caçador. — Afinal, precisa de algo, amigo? — acidez jorrava pelos lábios do mestiço como um veneno. — Se é que meus serviços agradem alguém do seu tipo. — Não preciso de você, demônio. — a frieza na qual ele se muniu ao falar com Dante evidenciou um certo nível de desprezo. — Você sabe quem ele é? — indaguei ao estranho. — Não é difícil não saber que é o infame Dante, cuja linha de trabalho é a das mais desprezíveis assim como o caráter duvidoso. — Dante sorriu arrogante e bem humorado a respeito do comentário do homem a sua reputação. — Eu vim buscá-la. Essa não é sua casa tampouco um local que seja apropriado de moradia. Ele segurou minhas mãos, aquecendo-as entre as suas enluvadas. — Pra mim é ótimo. — retruquei confusa, rejeitando o contato invasivo. O que não deixava de ser verdade, era o cenário do meu jogo favorito e que melhor lugar pra ficar senão esse? — Escutou a madame, parceiro. — Dante debochou em toda sua glória soberba. — E poderia ser melhor se limpasse. — acrescentei, nocauteando o ego dele. — Assim você me magoa. — fingiu se ofender. — Eu posso te oferecer segurança e resposta, algo que esse caçador vulgar não poderia. — fitou fixamente o meio-demônio com placidez. — Ou estou errado? Franzi o cenho. — Ele me salvou e está tomando conta de mim, então independente de qualquer coisa a presença dele é importante. — repliquei, confiante. — Eu posso provar que tenho o que procura. Confie em mim, minha intenção é esclarecer suas dúvidas, minha querida irmãzinha. — estendeu a mão e engasguei com o que ele me chamou. Arregalei os olhos com a menção da palavra irmã em uma sentença que não fazia sentido algum. — Vamos com calma, creio que esteja me confundindo com outra pessoa. — gesticulei exageradamente, engolindo em seco. — Talvez pela minha aparência ser bem comum isso possa acontecer. — Não, eu não confundi. — seu tom adotou um ar mais sério. — Gostaria de explicar mais, mas não agora e não aqui. Podemos marcar um encontro para amanhã? Te contarei tudo que necessita saber, só confie em mim, é tudo que peço. Que sério, pensei. Soava esperançoso e ingênuo, contudo, sequer o conhecia. Tinha que confiar baseado em nada? — Isso é um pouco... Difícil de digerir... — mordisquei a unha do polegar muito indecisa. — Acho que é minha única aposta para agora. — Doçura, não aprendeu nada com seus pais? — Dante colocou o braço em meus ombros em um gesto de cumplicidade. — Sobre? Dante inclinou displicentemente a cabeça em direção ao rapaz. — Não falar com estranhos? É isso? — Não confiar em estranhos. — frisou a última palavra. — E o que está fazendo? — Confiando em um estranho? — dei uma risadinha constrangida. — Não tenho muitas opções aqui e, tecnicamente, você também é um estranho... Embora eu te conheça por causa dos jogos. — Já é o bastante para o benefício da dúvida. — Dante contrapôs gracioso. — Eu disse que a ajudaria e não vou deixá-la na mão, temos um trato, não? Ele tem bons argumentos, admito. — Eu vou apenas se Dante for também. — pedi, engolindo um pouco a inquietação. — Certo, estou de acordo. — fez uma reverência sutil, o gesto fugaz revelou um pingente cuja pedra rubra atraiu meus olhos como um mariposa encantada com a luz de uma lâmpada. Lyana possuía um vagamente semelhante com uma cor distinta. Os dedos delgados de Lyana acarinhavam distraidamente a jóia como se delicado artefato possuísse um significado profundo que cabia somente a ela — um segredo que ela se recusava a compartilhar. Conhecia há anos e ela sempre fora alguém envolta em muitos mistérios, embora a própria dissesse que não tinha nada a esconder. — A propósito, meu nome é Ace, Ace Clockwell. — Prazer em conhecê-lo, Ace. Sou a Diva, mas creio que já deva saber, não é? — ele estendeu a mão em um convite mudo e, não querendo estragar o clima já afetado pelo estranhamento dos dois homens, a segurei e, de imediato, sentindo uma pequena descarga que passou pelo meu braço e percorreu meu corpo com o contato. A sensação que me ocorreu fora tão absurdamente bizarra que uma parte minha desejou se afastar, todavia, temi que estivesse apenas sendo influenciada pela não discreta inimizade de Ace e de Dante. — Que lindo pingente você tem. — murmurei dispersa, algo que fez o homem me fitar de soslaio. — É um presente de família. — comentou com um tom tranquilo e melancólico. Não precisou de muito para captar a mensagem e ter consciência de que o assunto era delicado e, por consequência, doloroso. Tinha sido tão insensível que achei melhor não falar nada e permanecer calada até o final disso. — Ele não é um simples acessório, é um artefato de poder. Arregalei um pouco os olhos. — Eu te contarei mais a respeito em outro momento. — seu sorriso afetuoso aqueceu meu coração, me encorajando a depositar minha confiança em suas atitudes. — Eu tenho que partir por agora. Amanhã estarei esperando para levá-la na estação, está bem? — Oh, claro. Por mim, tudo certo. Ace plantou um beijo no dorso da minha mão e entregou um papel com instruções para a viagem do dia seguinte. Ele não parecia ser um homem de desperdiçar tempo, pois não tardou muito para ir. — Há algo de errado com esse cara. — fitei Dante intrigada. — E por conveniência ele surge do nada atrás de você? Não acredito em coincidências tão absurdas, mesmo com uma cota bastante alta dessas coisas. — É uma pista, não? — Doçura, não acredite em tudo que vê. Quando se tem certo tempo no meu ramo, aprende que nem tudo é o que parece. Ouça o conselho dos mais experientes. — sentou na cadeira, sem afastar os olhos de mim. — Então... Acha que não devo ir? — Não, você deve ir. E é por isso que vou junto, uma garantia extra nunca é demais. — cruzou as pernas preguiçosamente sobre a mesa que, apesar de não estar nas melhores condições, possuíam uma resistência impressionante. — Se aquele cara tentar uma gracinha, terei uma ou duas lições para ensinar a ele. — Você não gostou dele. — afirmei com curiosidade. — Você, por acaso, detecta a intenção alheia? Dante riu. — Não é difícil ler alguém, doçura. — Quem conhece melhor a situação, dita as regras. — murmurei calma. Independente do limiar tênue da ficção e realidade, precisava julgar o ocorrido com bastante cautela e estipular, como um seguro, uma restrição no que tange as relações afetivas com Dante e de que maneiras incutiria no nosso progresso — delimitar bem como iríamos nos conectar. Sem me basear em tolices de fã e o esmagador crush que nutria pelo caçador de demônios, tinha que definir meus objetivos a partir do pressuposto que, mais que desejos levianos, carecia dos meios para retornar a minha dimensão original e Dante seria a chave para desbravar esse complexo jogo de enigmas. Na minha cabeça o planejamento era à prova de erros, impecável e com ações arquitetadas com prudência e que, de fato, me orgulhava da elaboração. Agora, repassando para a prática, perdera o brilho metódico e sua finalidade completamente desvirtuada do que pretendia. Meu fracasso se devia mais por meu, nada discreto, afeto pela franquia e, por consequência, do protagonista. Talvez estivesse alimentando uma ilusão que, quando voltar, vai atormentar meus dias com a saudade e agitação fervorosa da verdade dolorosa — e mesmo ciente de todos os riscos, de como destruiria meu coração mergulhar nas águas turvas sem ter a certeza de que resultaria em algo, não queria me frear. Figurativamente falando, comparava aquilo como uma apólice de um negócio instável que não tinha uma boa previsão futura e, ainda assim, decidi crer no um em um milhão. Se está na chuva é pra se molhar, certo? Dante se distraía disparando dardos no alvo, satisfeito com sua precisão nos acertos e não pude evitar admirá-lo, não tão aficionadamente, mas atenta o suficiente para assistir suas vitórias com empolgação. — Tem algo no meu rosto que te agrada? — ele perguntou sem rodeios, lançando o último projétil que se enterrou na mosca. — O quê? — foi a reação mais ridiculamente embaraçosa que tive e que me denunciou com êxito. — Você está um bom tempo olhando pra mim. — olhou-me de soslaio, a impertinência dele ao fato o elevou ao status de convencido mor. — Não que isso me incomode, muito pelo contrário. — dirigiu sua total atenção a mim e paralisei com o coração saltando truculento, martelando contra a caixa torácica. — Não estava te encarando! — pigarreei para contornar meu constrangimento. — Só foram olhadas ocasionais e é normal, porque não me habituei com sua presença. Preciso de um período de experiência, essa loucura foi demais pra mim. — Não é vergonha nenhuma admitir que te atraío. E sei que sou do seu gosto, seu par ideal, talvez? — o veludo rouca de sua voz acariciou seus ouvidos e, por um milagre, não tremi na base. Bufei com o cinismo notável dele. Não daria mais armas para ele se munir contra mim, sobretudo, por ter um conhecimento básico de sua atitude. E, durante minha divagação, me ocorreu uma dúvida sobre suas próprias motivações para me auxiliar já que, no fim, não ganharia nada. — Ei, Dante, por que resolveu me ajudar? — Hm? — ele ponderou, sorrateiramente se arrastando até a poltrona próxima de mim. — Nenhuma razão em especial. — Mesmo? — O que mais alguém como eu faria encontrando um serviço promissor que garante liberdade do tédio sem previsões? — deu de ombros, seus olhos cheios de diversão. — Estava procurando uma boa oportunidade de entretenimento e essa história parece ser o meu tipo específico, simples. Sou um homem de preferências bem modestas e comuns, sabe? — Claro, claro. — desanimei um pouco com sua resolução. — Bem comuns. — enfatizei essa última parte que entoava como uma ironia se relacionasse ao seu meio nada convencional. — O pagamento é o bônus. — engoli em seco, enrubescendo. — Se desejar adiantar, nesse caso, seria obrigado a aceitar que me acompanhe a qualquer noite de pizza. — acrescentou com uma vibração eufórica e sutilmente sedutora. — Isso soa bom pra você, doçura? — A programação perfeita para um encontro com um meio-demônio. — balancei a cabeça contagiada com a leveza construída com uma brincadeira bobinha. — Bem, se vou ficar a próxima temporada por aqui, onde vou dormir? — Minha humilde loja tem as melhores acomodações para os mais exigentes clientes. — indicou o sofá cujo o estofamento de couro vermelho ocre estava gasto. — Aqui temos um respeitável sofá que tem tanta história quanto a aparência dele sugere. — Sinalou a porta que conduziria ao andar superior. — E, claro, meu quarto. Sinta-se livre para escolher qual opção for melhor para a senhorita. Até mesmo eu estou a sua disposição para aquecê-la nas noites frias. Corei. — Pode dormir no meu quarto se preferir. Não vejo problema em me ajeitar no sofá para descansar durante sua estadia. Olhei o móvel e franzi o cenho. — Não me importo em dividirmos a cama, quero dizer, não é justo que tome seu quarto. — resfoleguei com o movimento ousado. — Tem certeza, doçura? Com toda certeza que sim. — Absoluta. — se desse pra trás agora, além de ser constrangedor, seria um chance que permiti que escapasse. — A decisão final é sua, doçura. Fique a vontade. — abriu a porta para que pudesse acessar a área interna na loja e encontrar seu quarto. — Obrigada. Subi as escadas e me apressei em explorar o cômodo, revirando os olhos com a bagunça e os pôsteres de mulheres quase totalmente desnudas. Deitei na cama, ignorando a zona de caos ao meu redor. Havia um aroma peculiar mesclado a um perfume nos travesseiros, era inebriante e se espalhava também pelos cobertores. Abracei um dos travesseiros e inalei a fragrância impregnada nele, um gesto excêntrico e, por algum motivo inexplicável, me ajudou a pegar no sono. Inquieta, sentindo alho pesado rastejando sobra a superfície da minha consciência, tive mais uma razão para acreditar que estava sonhando. Normalmente sonhamos com lugares que tenhamos ido ou visto nem que seja apenas uma vez, mas aquilo era diferente. Parecia uma espécie de santuário ou algo bem semelhante a isso, e se bem me lembro nunca fui a um lugar assim na minha vida. Foi então que eu olhei para minhas mãos, nelas vertiam aquele líquido escarlate como de uma ruptura, só que tinha pleno conhecimento que não eram meu. De quem eram? Me remexi, assustada até que um calor suave e firme me envolveu protetoramente, afugentando os resquícios do pesadelo. Suspirei aliviada ainda sonolenta. Antes que retornasse a mim plenamente, a letargia me dominou e me entreguei a ela correspondendo a névoa de cansaço que dançava sobre mim. Esfreguei os olhos preguiçosamente, piscando numerosas vezes para limpar meu campo de visão turvo e desanuviar a mente entorpecida. Sem reconhecer exatamente o local no qual estava, andei sem rumo, me guiando pelo meu senso de direção que não contribuía para me dirigir a um caminho pra algo. Parei ao ver duas figuras de costas para mim: uma menina e um homem de cabelos loiros que virou ligeiramente o rosto como se tivesse consciência da minha presença, contudo, não saiu de perto da criança. Dei alguns passos para trás, indo da mesma maneira que entrei: em completo silêncio. — Procura alguma coisa? — congelei e girei meu corpo no susto, encontrando o homem de antes parado no topo de uma escadaria que nem tinha percebido existir ali. Ou provavelmente se tratando de um devaneio, ela só surgiu com o propósito puramente poético de um sonho. — Você estava... — passei a mão pelo rosto bastante atordoada. — Quem é você? O que quer comigo? O homem cujas feições parcamente ocultas se revelou: Seus olhos eram de tom lilás com um brilho de força e respeito e o cabelo loiro claríssimo, sua pele pálida leitosa — lembrando-me vagamente cisnes. Com as pernas vacilantes, encurtei a distância que nos separava com certa urgência. — Estive te esperando por um longo tempo, Diva. — ele murmurou, sua voz firme e cheia de confiança. Diva? — Como sabe quem sou? Ele começou a andar elegantemente. E nem precisava ser um gênio para constatar que a probabilidade de se induzir o mesmo sono não funciona e como tenho arriscado muito, resolvi fazer um pouco mais. — Espere! — pedi, subindo as escadas. — Posso, ao menos, saber seu nome? Ele sorriu. — Meu nome? Espreguicei-me com dificuldade por ter algo pesado preso a mim. Arregalei os olhos ao constatar que os braços de Dante que me atavam a ele, não com força, quase como se estivesse me abraçando. Um arrepio subiu minha espinha com a respiração suave dele batendo na minha nuca. Tentei levantar, mas fui impedida por Dante. — Não levante agora. — pediu meio sonolento. — Durma mais um pouco, querida. — Temos que sair. — Agora não. — Ok, você venceu. Voltei a me aconchegar na cama, absorvendo o calor que emanava do corpo de Dante. E adormeci novamente. ××× Ajustei os óculos escuros, vendo o horário para a chegada do nosso trem. Massageei o ombro negligenciado pelo cansaço e minha deficiente reserva de energia matutina — isso devido ao longo sono. Suspirei pela quarta vez em menos de meia hora, o tecido preto não se encaixava tão bem em meu tipo físico não muito provido de massa na região dos s***s, basicamente meio plana. Não era muito adepta do visual mais provocante que consistia em uma calça jeans justa e uma blusinha preta que descaradamente se apertava em meus s***s de uma maneira pouco discreta, todavia, não estava no direito de reclamar se considerasse que não eram minhas e não estava em melhores condições econômicas para me dar ao luxo de escolher. Segundo Dante, Trish havia deixado uma pequena quantidade de roupas no antigo depósito e que, por falta de sorte nomeada carinhosamente como “atacada por um monstrengo”, não trouxera nada para reposição e teria que me contentar com as peças do vestuário dela. — Ficou bem em você. — Dante afirmou com um riso contido, não pela minha irritação e sim pela implicância com uma vestimenta. Ele não parecia tão ciente de como aquele estilo não combinava comigo mesmo pelo tanto que resmunguei durante o trajeto. — Claro, como se uma camisa coladinha fosse confortável. — cruzo os braços. — Não tenho o corpo da Trish. — sinalei para o ponto chave da discussão e Dante arqueou uma sobrancelha com meu comentário desgostoso. — Não vejo qual é o problema. Me virei, ficando de costas para Dante que tocou meu ombros minutos depois. — É a nossa deixa, doçura. Entramos no vagão e nos acomodamos nos assentos correspondentes, o meio-demônio fechou os olhos para cochilar não tomando tanto espaço no cubículo que compartilhávamos. Assisti o cenário passar como um borrão enquanto conciliava toda a loucura desses dias, sem notar como meu olhar vagueava até Dante — ele era quase como um ímã que me magnetizava. Chacoalhei a cabeça e optei por ficar em silêncio, esperando que a viagem transcorresse sem grandes imprevistos. Ao chegarmos no local indicado, Ace se aproximou e meneou a cabeça cortesmente. — Agradeço que tenha vindo, Diva. Não é como se eu tivesse escolha, pensei. Ouvi uma sucinta risada vinda de Dante que me fez cogitar a sandice de... Não, não. Isso nunca aconteceria. Ace nos guiou até um veículo — com minha falta de conhecimento sobre o tema — lembrava um pouco o Impala do Dean Winchester, bem cuidado e com uma polidez na lataria que daria inveja a qualquer carro último modelo. Havia outro homem nos aguardando, ele abriu a porta para mim e Ace, porém Dante não fez muita questão com a cortesia, se acomodando no banco da frente com o motorista. Por mais que disfarçasse, ocasionalmente mirava o pingente de Ace com mais curiosidade do que deveria transparecer. Ainda que o motivo fosse bobo, em um ponto de vista imparcial, não pude evitar a comparação com o colar que Lyana amava e que ela nunca contava muito sobre, somente escapando que se tratava de uma relíquia presenteada por um alguém especial. Um solavanco involuntário me trouxe de volta a realidade com um suspiro sôfrego que atraiu olhares curiosos para mim, me fazendo praguejar mentalmente pelo brusco despertar. No entanto, finalmente ter chegado ao nosso destino acalentou o sentimento de vergonha, para minha sorte. — Venha, sinta-se a vontade. — Ace indicou educadamente. Tomada pela euforia, peguei o braço de Dante — que não se opôs — e o puxei para vir junto comigo para dentro do grande casarão, não prosseguindo sem ele ao meu lado. Julgando pelo que convivemos nesse curto período, ser grata e desejar sua presença para me sentir segura complementava a ideia de unir o útil ao agradável. Isso somado ao prazer de estar com uma paixonite de infância e adolescência, um privilégio para poucos. Meus olhos percorreram com assombro o local amplo, cuja decoração ostentava luxo e bom gosto. A típica morada de um homem com recursos que se deleitava com uma mobiliário que talvez, em alguma época longínqua, pertencera a algum m****o da realeza e que custaria muito mais que alguém com um orçamento medíocre como o meu sonharia comprar. O lustre candelabro tinha um aspecto antigo no seu design, porém, restaurado. Até mesmo o corrimão da escadaria tinham uma clara inspiração nos padrões dos séculos passados. — Esse lugar é lindo! — exclamei exultante. — Amo estilo vintage e tudo relacionado! — Fico feliz em saber que meu gosto é também de seu agrado. — Ace sorriu respeitosamente. — Vamos, Dante? — sorriso, percebendo que minha mão estava entrelaçada com a dele e praticamente o arrastando pra todo lugar que ia. Não tinha visto que estávamos tão próximos tampouco como aquilo fluiu tão naturalmente a ponto dele não rejeitar. Corei pelo contato, só quem sem nenhuma intenção de quebrá-lo. Dante me olhou com o semblante amigável, sorrindo tão convencido que o amaldiçoei internamente por não fazer o mínimo esforço para encobrir a satisfação de ver o quanto me desestabilizava. Ace nos conduziu a um salão amplo com a iluminação proveniente do próprio sol, visto que havia uma claraboia em formato redondo sobre nossas cabeças e as paredes compostas firmemente por vidraças, todas aparentemente bem resistentes e, na única estrutura de tijolos no fundo, pendia um quadro grande de moldura dourada . — Ei, eu conheço esse homem. — murmurei, hipnotizada com a visão do modelo usado, a imagem quase angelical. Caminhei absorta até ela em um silêncio solene, contemplando a pintura com fascínio. Parada ante o retrato, chequei as coincidências e comparei ao rapaz do sonho, avaliando o quão louco seria se tivesse relacionado. — Alexander.
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