Fall Out

4725 Words
A frustração se apoderou de cada célula que formavam meu ser em sua totalidade, coroando a lista brilhantemente confusa de eventos com doses de um fraco nivelamento emocional ocasionado pela minha decadente tentativa de organizar o dito caos ocupando meu quarto de aresta à aresta. Uma grande parcela — senão tudo — vinha da minha falta de pontualidade para gerenciar a arrumação. Sempre fui desligada no contexto de organizar o imprescindível e o resto deixava para depois — seguido da facilidade que me distraía ao achar um objeto aleatório em vez de focar na minha obrigação. Respeitava aqueles que, com seus exemplos de paciência e perseverança, manobravam a limpeza e a organização com dedicação. Enquanto minha consciência me encorajava a sair da procrastinação, uma pequena intrusa invadiu o espaço desfilando sua fofura felpuda pela pilha de bagunça acumulada pelo chão, sem se importar onde pisaria contanto que não tivessem obstáculos intransponíveis em seu preguiçoso trajeto até minha cama. Sendo uma gata relativamente territorial, Biscoito gostava de se esticar nos travesseiros para sua soneca antes que a Bolacha, a amigável e hiperativa cachorra da família, viesse a sua procura, interrompendo sua paz com lambidas inconvenientes. — Será que é tarde pra empurrar a bagunça pra debaixo do tapete? — brinquei, sentando na beirada da cama. Assimilando mais adequadamente a situação e expulsando o dissabor da falta de ânimo, comecei a examinar minuciosamente o cômodo para memorizá-lo antes de dizer adeus pelos próximos quatro anos que duraria o curso universitário — gravando as boas recordações vividas ali. Não tinha como evitar a hesitação com a separação, mesmo que temporária, da casa que passei minha vida toda até então. “Ânimo!”, pensei alvoroçada. Saltei para afugentar os resquícios de melancolia presentes em mim, fazendo questão de jogá-la para escanteio e retomando o vigor para prosseguir a tarefa. Com cautela e precisão, despreguei as fotografias dispostas no mural, certificando de não danificá-las no processo cirúrgico de recolhê-las. Sorri com as imagens, relembrando de quando as tirei e armazenando-as em uma caixa de madeira com tranca para protegê-las do tumulto que seria com os ítens empacotados entre as caixas de papelão. Finalmente poderia dizer com clareza: uma nova etapa na minha vida prestes a se iniciar — um caminho completamente diferente do que estava acostumada no ensino médio e, ao mesmo tempo, fascinante estendia-se à minha frente. Seria a época mais promissora e também complexa para minha carreira, cada esforço, mesmo o mais simplório, teria devido peso para minha formação. A faculdade abriria portas e me proporcionaria as melhores — ou piores se não seguisse à risca meu cronograma — experiências para construir um excelente futuro. Como um pássaro que precisa deixar o ninho, decidi que embalaria meus pertences e deixaria o quarto vago para que, talvez, meus pais pudesse alugar para obter uma renda extra. Biscoito se espreguiçou meio alheia as minhas atividades e apenas se exilou em seu próprio conforto. — Seu nome deveria ser Soneca. — afagando a cabeça dela, alongando ligeiramente. — Você só dorme. Havia algumas caixas já lacradas e ainda faltava muita coisa a guardar e, como prometi a minha mãe, que terminaria antes de anoitecer, me agilizar no cumprimento do prometido serviria como uma recompensa. Só não contava muito com o fato de que, além de encaixotar o que deixaria em casa, também teria que separar o que levaria comigo para o alojamento, o que não poderia ser muito, pois dividiria o quarto e nada causa mais má impressão que gente espaçosa e egoísta. Torci para que minha colega não fosse desse tipo — aguentar quatro anos com uma pessoa folgada seria, no mínimo, um saco. Pena que teria que enfrentar o destino c***l de uma vida acadêmica impiedosa sozinha, sem minha amiga e fiel escudeira do meu lado para combater a rotina massacrante de uma universitária. Será que o salgado vai ser caro a ponto de precisar de um vale só pra me alimentar? Sentiria falta de casa, minha família e dos meus livros, meus desenhos e... Meus consoles. Coloquei uma playlist selecionada a dedo para escutar enquanto criava coragem para catalogar o que levaria e o que ficaria, a primeira canção reproduzida tratava-se da Bring on The Men do musical — e meu mais novo vício — Jekyll & Hyde, o som fluiu pelo cômodo e, contagiada, cantei junto. — We say bring on the men. And let the fun begin! A little touch of sin. Why wait another minute? — cantarolei no ritmo. Em meio a indecisão e a zona que acumulou-se com minha corajosa exploração, pensei em como meus pais reagiriam com o cenário que mais parecia um campo de guerra que um cômodo que acolheria um ser humano. Conhecendo bem minha querida e rigorosa mãe, ela não iria gostar nem um pouco daquilo. Coisas da vida, não é? Ela estaria uma pilha de nervos, mas, se todas as estrelas e o universo estiverem alinhados à meu favor e com minha sorte — na verdade não acreditava nisso, só que considerando minha valiosa vida em perigo, apelar pras leis cósmicas parecia ser uma excelente ideia —, não receberia uma última punição (Vai que o chinelo teleguiado de minha mãe atravessasse quilômetros unicamente para me apanhar). Afinal essa seria as semanas de despedidas e durante um período, não encontraria meus pais com a frequência que disponho agora. Pausei por um breve momento para tomar um banho para me revitalizar para arrumação, aproveitando a água quente para relaxar do estresse antecipado que cobrava um imposto pesado sobre meu corpo. Sai do banheiro com menos tensão e me deparei novamente com meu quarto que estava, o que classificaria como, a encarnação caótica, o desprezo absoluto da ordem. Olhei para o relógio cronometrando meu progresso e quanto tempo levaria para terminar. A música ecoou alto por toda parte fora Beautiful de Heathers musical. Não podia fugir e nem culpar ninguém da tragédia à minha frente, exceto eu mesma. Vamos lá, você consegue! Podia ter feito tudo de cada vez, porém se não for para meter a mão na massa, nem entro — talvez tivesse arriscado para além da minha capacidade de limpar tantas coisas simultaneamente. Me espreguicei, preenchida pela determinação flamejante. Tomei toda coragem que podia, arregacei as mangas e comecei a arrumar as coisas com uma paciência surreal. Escrevi nas caixas qual seria seu conteúdo, tendo cautela com meus incontáveis livros espalhados. Nesse ínterim todo, encontrei sketchbooks velhinhos com desenhos antigos e dei uma rápida folheada, sorrindo com minhas obras não terminadas de uma época iluminada e visionária que meus hobbies consistiam em arte tradicional. Franzi a testa quando a música seguinte a tocar fora In the Dark of the Night. Até chegar em uma específica: uma retratação meio borrada de um monstro que atormentava meus sonhos quando era criança. A cor usada na ilustração era preto com detalhes vermelhos que aparentavam ter sido pintados às pressas e com extrema força, marcando a folha. Como se tivesse colorido com medo ou com muita raiva — não recordava qual deles seria. — Que coincidência estranha. — balbuciei, tracejando os contornos brutos com os dedos, revivendo o sentimento que a recordação dos pesadelos trazia consigo. Isso não me atormenta mais. Rasguei a página inteira e joguei no lixo, não muito disposta a preservar um desenho tão perturbador. Retomei minhas tarefas, tirando meus livros e cadernos com finas camadas de poeira da prateleira, elevando minha auto consciência para minha negligência com meus pertences. Vi que no fundo de armário, vagamente oculto, havia um caixa também ligeiramente empoeirada no qual acondicionava meus maiores tesouros: meus jogos. Minha coleção preciosa que ia desde fitas do falecido gameboy até CDs. Sorrindo feito uma criança, arrumei todos em uma caixa vazia para conservá-los. Cogitei a possibilidades de vendê-los para alguém que realmente gostaria de adquiri-los para que não ficassem apenas no fundo da garagem sendo afetados pela umidade e se desgastassem sem uso com os anos, principalmente com outras prioridades em mente, porém ao ver minha suada e respeitável edição de colecionador de Devil May Cry no qual paguei os olhos da cara, juntando meu salário de meses no meu trabalho de meio período — pra bancar meus gostos luxuosos por jogos —, desisti na hora. Meu amor imensurável pelo mundo gamer contribuiu com hábitos meus que suponho que nunca largaria. Em meio a todos aqueles jogos, um pacote destacou-se entre eles, não lembrava tê-lo posto lá. Despreocupada, como a maldita curiosa que sou, abri o papel pardo que o envolvia e que revelou ser o jogo Devil May Cry 4, tive que me segurar para não gritar de euforia. Biscoito, nada satisfeita com minha crise eufórica, saiu do quarto — provavelmente se refugiando no de minha irmã mais nova. — Não acredito! — comemorei. — Isso é um sinal? Um sinal que devo jogar? Pôr as duas atividades na balança soava como uma disputa desleal. Tenho que estar com tudo pronto no mais tardar amanhã e se jogasse atrasaria meus planos. — Se for pra jogar mesmo, preciso de um sinal mais específico. — gracejei, aguardando alguma manifestação sobrenatural digna de filmes de suspense. O que não aconteceu, obviamente. Ri da minha própria brincadeira b***a. Ouvi barulhos vindos do andar de baixo, nada muito fora do comum. Claro que o fator sozinha fomentava idéias aterradoras de que, porventura, alguém invadiria a casa. Em contrapartida a essa fração irracional, suspeitei que meus pais ou um dos meus irmãos teria chegado e, para me assegurar, fui averiguar. Peguei meu taco de beisebol, para caso de necessidade — se, por um acaso, meu medo estivesse correto. — Mãe? — gritei conforme descia as escadas, no entanto, só obtive silêncio em resposta. — Pai? Annabeth? Alguém aí? Na moral, não tem graça. Parecia aquele filme que passa na programação da TV todo santo Natal em um ritual incessante para as festividades... Esqueceram de Mim? Acho que esse é o nome. Com dezoito anos era bem normal passar um dia ou mais sozinha, então as circunstâncias não eram as mesmas. Hesitante e um pouco amedrontada, verifiquei bem superficialmente o local. O primeiro andar estava quieto e escuro, nada diferente do comum. Bolacha me mirou confusa e marchou para sua caminha, talvez imaginando o que tinha na minha cabeça pra estar com um bastão. Revirei os olhos com minha mente tão imaginativa. Um calafrio percorreu minha nuca, um formigamento que se expandiu pela espinha dorsal e causava impressão que algo me observava na escuridão. Sexto sentido apitando? Assim que minha busca óbvia por nada acabou, subi correndo as escadas — tinha uma mania de correr sempre que apagava a luz, um medo de um monstro me pegar ou algo assim — fechei a porta do quarto e continuei meus afazeres dispersa e analisando quem teria me presenteado com o jogo. Ao meu lado o telefone começou a vibrar, nem precisava olhar para saber quem era: Lyana — minha amiga desde sempre, companheira de jornada e irmã de coração. A ruiva mais fabulosa, o amor da minha vida, o ser mais dotado de animação, aquela que encheu meus dias com loucuras de toda natureza. Como minha melhor amiga, que literalmente cresceu comigo, ela tinha a lista mais louca para atravessar o rito de passagem de estudante de ensino médio para uma universitária em alta expectativa. — Hello, beautiful. — entoou com o sotaque mais divertido que somente ela conseguia articular. — Oi, Lya. — Como vai, Divinha? — perguntou, supus que ela estaria checando as unhas bem feitas como parte de um costume normal dela. Diva era um apelido que Lyana tinha me dado, um que não gostava tanto. Ou melhor, eu gostava, mas não combinava comigo. De Diva eu não tinha nada. Quando falam de alguém com essa alcunha, geralmente se imagina uma beldade nascida sob a bênção de Afrodite tamanha classe e bons atributos, uma modelo em seu auge. E eu não sou modelo... E nem cantora. — Estou maravilhosamente bem. — me acomodei entre as almofadas na cama. — O que faz? — Pensando se devo ou não me entregar a umas horinhas de jogos. — Não deveria estar empacotando suas coisas? — dei uma risada constrangida com o questionamento. — Quer ajuda? — Não precisa não. Não há nada aqui que não possa lidar. — Claro, mas há alguns minutos estava considerando parar tudo pra jogar. — rebateu. — Diva, sua mãe vai ficar brava se ver a bagunça que sei que seu quarto deve estar. Eu te conheço há... — Catorze anos — completei, rindo. — Não se preocupe, está tudo sob controle. — a tranquilizei, pegando o jogo. — Não é minha culpa se meu coração pertence ao Dante. — Dante? Você levou um garoto aí? — Lyana berrou, me obrigando a afastar um pouco o celular da orelha. — Então quem é esse Dante? Seu novo namorado? — ela perguntou, sua voz demonstrando bom humor provocativo. Senti meu rosto esquentar e engasguei. — Não é nada disso. Eu estou falando do jogo. E você sabe que não levo rapazes para meu quarto. — Claro que sei, você é meu bebê inocente — brincou, gargalhando. — Ainda acho que deveria aproveitar mais sua vida, afinal é uma só. — E eu aproveito: dormindo, comendo, jogando e assistindo séries. Ah! Estudando também. E não tenho vontade de gastar horas correndo atrás de pretendentes. — Não me refiro a isso, Divinha. Algo mais... Não sei, tente viver um pouco. — ela suspirou. Naturalmente, sabendo bem as intenções dela, já tinha uma vaga ideia do que ela queria dizer: Lyana achava que eu não vivia minha vida o suficiente — uma visão bastante peculiar de como se a qualquer momento fosse morrer e teria que experimentar a intensidade de perto. E quem pensa tanto na morte pra ter esse nível de interpretação? Não é como se fosse morrer logo. No mundo dela, tinha que provar tudo que uma pessoa da nossa idade deveria: beber, ficar acordada até tarde e essas balelas que definitivamente não combinavam comigo (Na verdade não combinavam nem com ela, mas era uma forma aparente de afogar as mágoas?). Não dá pra saber com certeza, Lyana nunca se aprofundou muito nas questões emocionais. Nem em nossas noites do Toddynho. — Ah, não, obrigada. — Bem, de qualquer jeito não pode me culpar por tentar. — É, continue tentando e até conseguir te vejo outra hora. — Ei, espera! Antes que tivesse chance de retrucar, desliguei o telefone voltando minha atenção total para as últimas caixas que encheria. Ajeitei o cabelo que caia descuidadamente no meu rosto atrapalhando minha visão após a corrida. Não levem a m*l, apenas não gosto de frequentar esses lugares de índole duvidosa. Talvez por não ser uma frequentadora assídua, convenhamos que não é qualquer um que tem fôlego para ficar a noite toda dançando ou fazendo sei-lá-o-que. Pessoalmente, funciono com o modo economia de energia ativado. A terapeuta da minha mãe, a pedido da própria, diagnosticou, por alto, que minha introspecção vinha do estágio mais leve de fobia de escuridão, a Nictofobia. Em aspectos usuais, meu comportamento social era o básico de alguém da minha idade, nada que me excluísse de um certo padrão. Com o conhecimento esdrúxulo de psicologia que tirei dos sites da internet, o meu caso era equivalente ao medo das crianças de ter algum bicho papão no escuro. E minha querida mãe aconselhou que eu tomasse medidas para superar esse problema consultando a terapeuta no futuro, não fui muito a frente nesse ponto por casualidade. Uma garota da minha idade com medos que normalmente pequenos com menos de dez anos possuíam é um tanto vergonhoso para comentar com outro adulto — ainda que, no geral, a fobia não atrapalhava minha rotina. Não é como se tivesse alguma coisa à espreita na escuridão, certo? O vento frio invadiu o quarto e espalhou alguns papéis avulsos, me despertando do meu impasse pessoal. A atmosfera gélida assentou-se pelo cômodo, diminuindo a temperatura e fazendo com que minha respiração saísse como vapor. Minhas roupas não protegiam meu corpo o suficiente para não tremer com a mudança brusca. Um estrondo alto retumbou. Chuva? Outro estrondo. Este me sacolejou com sua abrupta intensidade. — Vai cair uma tempestade. Detesto tempestades. — grunhi aborrecida, abraçando os cotovelos. A televisão, outrora desligada, se acendeu e emitiu ruídos estridentes, quase como se ela transmitisse sinais de conexões piratas, o que acontecia com rádios; chiados ensurdecedores, a recepção de imagem desfocada e com cores difusas, me deixaram mais desconfortável e intrigada. Ela tinha anos de uso e nunca teve problemas de conexão que a danificasse assim, acreditava que seu tempo de vida útil seria prolongado e que as próximas gerações também desfrutariam ou que se vendesse, arrumaria um bom pagamento pela boa conservação e o funcionamento. Agora tinha certeza que essa opção não iria rolar. Aquilo parecia uma creepypasta ou algo do tipo. E eu nem curtia muito essas histórias. Aborrecida e tensa e dirigi-me para a porta, tentei abri-la, sem conseguir. Puxei a maçaneta e a agitei para que destrancasse. — Só pode estar de s*******m! — chutei a porta, conseguindo somente mais uma dor que uma solução. Passei as mãos em meu cabelo, um reflexo desencadeado pela ansiedade, e enxuguei o suor que escorria pelo rosto. Nervosa, olhei para a TV que estranhamente desligou sem eu ter o feito nada. A luzinha vermelha que indicava que ela funcionava, também apagou. — Deve ter sido uma má sintonia ou sei lá… — murmurei pasma. — Ou falha de energia. Não foi nada, repeti mentalmente essas palavras como mantra. Tudo pareceu rodar, não sei se foi o efeito imediato do alívio ou por puro medo. Seja qual dessas alternativas foram, meu organismo se preencheu com o jato inesperado de adrenalina e terror. Fechei as janelas com a nova ventania violenta que soprava para dentro do quarto. As lâmpadas acima piscaram sem parar, fazendo com que tivesse mais razão quanto minha teoria — me angustiando um pouco. Gritei com o escuro súbito e inconveniente que reinou absoluto depois da tempestade que rugia do outro lado das vidraças. — Que loucura. Pelo menos vou ter uma desculpa pela enrolação — suspirei, caçando meu celular pela cama e assim que o peguei, disquei o número de Lyana. Para minha felicidade, ela atendeu prontamente. — A que devo a honra? — debochou. — Nossa, minha melhor amiga é comediante. Pode vir aqui em casa? — resmunguei baixinho ao bater o mindinho na quina de um dos móveis. — Teve uma queda de luz aqui, sem contar que está acontecendo coisas estranhas. — Que tipo de coisas? — sua voz soou prudente e preocupada. — Sei lá, barulhos. Só venha logo, ok? — Estou indo agora, fique na linha e me avise se sentir algo. — aconselhou, ouvi ela correndo pela casa. Peguei a lanterna tática — que custou caro na época que a adquiri e a utilizava em exploração — em uma das gavetas e empurrei a porta que, por sorte, desemperrou com um clic suave que nem desconfiaria que outrora estivesse travada. — Deveria processar sua companhia de luz, sabe, pelas avarias. — uma voz toldada de diversão entoou. Virei o rosto bruscamente, apontando o feixe de luz para minha janela aberta onde um estranho homem se acomodava com toda tranquilidade. Como ele entrou? Um calafrio rastejou pela minha espinha — intensa e premonitória. Meus instintos mais primitivos de sobrevivência romperam a barreira da razão, rugindo furiosamente para que minhas pernas vacilantes ganhassem vigor para escapar do cerco. Qualquer pessoa com mais de dois neurônios já estaria resistindo ao terror para ter uma possibilidade, mesmo ínfima, de sair ilesa de uma circunstância desesperadora. Dentre todas as ações de emergência imagináveis, fiquei ali, congelada, sem reação além da expressão de perplexidade e tensão que retratava tão bem a ponto do invasor achar graça rir despreocupadamente. — Não fique assim, vai me dizer que nunca recebeu visitas de alguém no seu quarto? — ele fitou a bagunça perceptível pela iluminação parca da lanterna e franziu o cenho. — A julgar pela sua excêntrica decoração, talvez não seja tão frequente. Aterrorizada, meus olhos repousaram na maçaneta da porta e analisando os prós e contras de uma evasão sagaz sem ser pega no processo. — Já que quer jogar, lhe darei cinco minutos de vantagem. Melhor correr e bem rápido. Girei nos calcanhares e irrompi porta a fora, esbarrando com a parede do corredor durante a empreitada. — Tic tac, tic tac. O tempo está passando, precisa ser mais rápida. — cantarolou. — Lyana! Chama a polícia! Um maluco invadiu minha casa! — gritei. Tropeçando pelos cantos e usando a luminosidade para situar-me, trafeguei sem rumo quando senti um aperto forte do tornozelo. — O quê? — gritei confusa. Sem chance para assimilar o ocorrido, fui jogada contra o parapeito e rolei escada abaixo, batendo minha cabeça no chão — o que prejudicou ligeiramente minha percepção. A umidade e o aroma enferrujado e enjoativo denunciaram o ferimento — o impacto abrupto me deixou zonza por um breve momento. Tentei me reerguer, entretanto, minhas pernas ficaram bambas e não pude sair do lugar. — Muito bem! — os aplausos reverberaram pelo silêncio ocioso. — Cumpri minha palavra, cinco minutos de vantagem. Você é bem lenta, esperava mais. Ouvi o ruído do meu celular que fora interrompido pelo esmagar de algo. — Acho que seu aparelho já era. Que pena. Arrastei-me até a lanterna e procurei o que quer que fosse, jogando a luminescência que piscava para todas as direções desengonçadamente: foi quando eu pude vê-lo, a criatura mais horrenda que já vi na vida; parecia um esqueleto de armadura, a pele a mostra era arroxeada, tinha dentes afiados e os olhos vermelhos selvagens. — Que merda... O que está acontecendo? — indaguei amedrontada. — Isso não é real! Isso é um sonho! Atônita, rocei os dedos pelo ferimento recém feito. Não, a dor é real. Isso é real. — Fique tranquila, nós viemos apenas te levar. Se quisesses te... — o intruso gesticulou, movendo o indicador pelo pescoço. — Teria feito há um bom tempo. Meu trabalho e do meu amiguinho aqui é somente te buscar.  Choraminguei, forçando meu corpo a fugir, ou, ao menos, tentar. Resistir era a única maneira inteligente de sobreviver. — Agora, chega de jogos. A b***a agarrou meu pescoço, asfixiando-me. Entorpecida pelo terror, meus instintos gritavam que ele iria me matar, suas enormes garras pairavam sobre sua cabeça com braços erguidos, pronto para atacar. — Não! — berrei em um ímpeto selvagem. O pânico com a possibilidade de morrer criou um estado de torpor em mim — um temor que revirou meu estômago acompanhado da vertigem que fez o mundo rodar. O fulgor forte e cegante, que despontou repentinamente, engoliu tudo e rachou em linhas irregulares feito uma peça de cerâmica recém fendida, escapando fragmentos do que se assemelhava a vidro rompido. — Droga. Ela despertou antes do previsto. — grunhiu irritado. ××× Usei a lente de vidro pequeno para proteger meus olhos enquanto contemplava o eclipse em seu apogeu. Ter a chance de assistir em primeira mão e em um ponto onde seria privilegiada com uma vista esplendorosa, me agitou de ansiedade e m*l pude reprimir o júbilo. Lyana também parecia, à princípio, tão alegre quanto eu fitando todo o processo no qual a lua se alinhava com o sol e projetava sua sombra no planeta. No entanto, sua expressão mudou e ela suspirou longamente. — É estranho pensar em como, por um momento, a escuridão cobre a Terra, não é? Reviver essa lembrança em particular me conduziu a inúmeras questões que não se resolveriam, mesmo porque, a certeza que tinha era de que estava sonhando. Ou talvez fosse uma alucinação final criada pela minha mente fértil. Dizem que quando está próximo de bater as botas, algumas áreas do cérebro continuam ativas e, nesse ínterim, experimentamos a vida como se passasse diante de nós como um filme. No meu caso, um filme bem trash e sem bom roteiro. Isso significava que morri? Estendi a mão ao máximo para alcançar algo — me assegurar que teria uma maneira de evitar a queda. Mesmo de olhos fechado, notava como a vibração em meu entorno mudava igual a brisa morna que, gradualmente, virava um vendaval. Afundando no fluxo cálido do limbo, senti como se, subitamente, fosse consciente de cada função do meu corpo e do que seria capaz. Até escutava nitidamente meu coração bater e seu ritmo ininterrupto. Vaguei leve e confusa no nada, o que era normal pra um delírio de pós mortem. No entanto, esse sonho louco e sem sentido soava diferente do que teorizei inicialmente. Meus olhos abertos e a semi consciência só provaram que não poderia ser um devaneio. Tudo parecia detalhadamente real. Simplesmente flutuava e tudo que conseguia ver com os olhos cansados era o mar de escuridão e pequenos flashes — dentre eles a do dia do eclipse. Estaria morta mesmo? A única coisa que lembro, embora não sendo uma memória confiável considerando minha condição entorpecida, foi de ter sido atacada por um cara e uma medonha criatura. Depois disso, nesse intervalo, o branco mental e o calor que percorreu minhas células. Isso não importava, não naquele momento. Um ruído dolosamente alto ressoou, me afetando minimamente. Arquejei com a intensidade da propagação da onda sonora como se tivesse chocado contra uma parede de vidro e ela estilhaçou sob a influência de um peso esmagador. Forcei meus olhos, através da névoa que dançava sob meu campo de visão, para poder enxergar melhor o ambiente lúdico. E lá estava uma figura familiar de cabelos prateados e roupas vermelhas emitindo um brilho vigoroso que dispersou lentamente as trevas. Ele disse algo que não consegui entender. Vamos, reaja, exigi de mim mesma, querendo desanuviar minha mente e sentidos adormecidos. A escuridão ilusória desapareceu com o fulgor do homem, dando lugar a realidade na qual eu caia em queda livre em direção a uma morte horrível e patética. E, como uma garota desprovida de sorte, o monstro acima de mim tentava me agarrar para terminar o serviço. O homem sorriu e entrou em ação. Ele subiu um pilar e atirou-se, sem qualquer traço de medo, contra a b***a sacando a espada enorme, a mão da criatura foi cortada antes que pudesse me tocar. Meu corpo parou de cair e um braço quente me ergueu, estava desorientada e tonta pra fazer algo. Também não era como se isso fosse uma coisa r**m se considerasse que não viraria purê. Como apenas uma mão livre, o meu salvador partiu ao meio o monstro, pressionando-me delicadamente junto ao seu calor seguro. A luz miraculosa recaía sobre nós, me conferindo a chance de visualizá-lo em meio a minha visão falha pela pancada. Uma confusão de percepções me atingiu com força esmagadora, entre lampejos de lucidez vi a imagem de um anjo que me socorreu, tão inumanamente belo que minha necessidade crucial no momento era apenas me acolher em seus braços sem me importar com o amanhã. Escutei uma cacofonia vinda de diversas direções, uma série de ruídos que não conseguia identificar e o esforço exigia muito de minhas capacidades limitadas pelas dores e a sensação de estar grogue e incapaz de oferecer um cuidado real sobre mim mesma. Respirei fundo com o sentimento de estar amparada por braços seguros e ternos, aliviando meu pânico. Balbuciei uma frase incoerente, querendo entender onde e com quem estava. A pessoa murmurou tão suavemente que todo horror anterior emergido com o ataque dissipou-se e a serenidade inebriante substituiu-a. Enlacei o pescoço do meu salvador e reclinando a cabeça em seu ombro, acolhida e protegida. Não soltei ele com receio de ser arrancada daquela redoma segura. Parte de mim ansiava pelo sono dos justos enquanto a outra queria identificar o meu herói e agradecer, tinha que ser justa em ser grata. Todavia, com a névoa que nublava meus olhos lentamente se dissolvia, percebi que, além de não reconhecer o local onde me encontrava, para meu infortúnio, a pessoa que me resgatara não somente reconheci como também o vi nos jogos, portanto, não tinha como ser um mero produto do meu cérebro fantasioso. Quando o Lendário Devil Hunter Dante sorriu para mim, tive certeza que estava em uma enrascada.
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