O que realmente é?

4638 Words
As forças universais trabalhavam de formas peculiares para o desenlace dos eventos – ou esse mundo excêntrico e definitivamente não ficcional possuía suas próprias leis vigentes que independiam de onde viera originalmente. Seria prepotência assumir que, de certa maneira, minha dimensão fosse a única fonte confiável de parâmetros sendo que nasci nele, estava enxergando a questão com um panorama muito limitado e medíocre e o paranormal era intrínseco aquela realidade. E claro que, para qualquer regra, há uma exceção: a Lei de Murphy funcionava bem por ali. Não era de se impressionar que as entidades superiores ou a vontade do cosmos, tivesse um senso de humor muito sádico e pretencioso para que algo que, na concepção geral, servia para avacalhar toda aventura, vigorasse – com toda fúria contida em seu âmago. Franzi o cenho. O cara tinha uma parede dedicada a seu quadro com uma moldura dourada adornada com algumas inscrições e símbolos cujo aspecto reluzente promoviam uma ideia de ser alguém de grande importância: e ainda fresco em minhas lembranças, a imagem dele realmente convencia de sua personalidade gentil em uma análise superficial. Levei a mão a cabeça, meditativa. Meu cérebro tinha assimilado uma porcentagem muito baixa das informações repassadas à mim e elas já não eram extensas o suficiente para me respaldar nessa jornada. Agora, para completar minha notória confusão, sonhara com um homem que nunca vi e ele existe – o que converte esse pormenor em um fator determinante e ainda mais bizarro. A epifania custou uns bons minutos e torrou alguns neurônios meus na busca para obter uma resposta racional para tamanha coincidência, gerando-me milhões de dúvidas e, por consequência, muito menos disposição para acompanhar aquilo sem arriscar me embaralhar toda. Vou ver novamente para garantir, pensei. Chequei o quadro minuciosamente para ter certeza de que não estava equivocada e que nada daquilo seria levado a sério – se constatasse o erro. Cocei o queixo com minha mais brilhante expressão de concentração e sobriedade, estreitando os olhos para parecer muito mais imersa na perícia do que realmente estava. Um arrepio rastejou pela minha espinha ao focalizar os olhos da pintura que confrontavam os meus quase como no sonho, porém com a clara diferença de que se tratava exclusivamente de um retrato. – Oh, caramba, é ele mesmo. – murmurei. Alexander... Movida por um mero instinto, estiquei a mão para tocar a tela e ao roçar a ponta do indicador uma sensação calorosa e elétrica se apossou de mim. Recuei com a vibração que trespassou meu corpo, vislumbrando flashes vagos que, à princípio, não se interligavam, contudo, lentamente em um curso contínuo que pude compreender, vi novamente Alexander, dessa vez, não tendo contato direto com ele como outrora. Era uma espécie de recordação ou uma coisa semelhante, pois nela estava o próprio e uma criança. Eu vou estar sempre do seu lado. Forcei um pouco para identificar a menina, sem sucesso. Arregalei os olhos com uma forte impressão de que havia algo ressonando em meu interior e uma mão calorosa entrelaçada com a minha. Tudo se desenrolou tão rápido que quando um senti um toque suave em meu ombro, despertei com um clique como se a experiência de alguns minutos não tivesse afetado ninguém além de mim. – Seja o que foi essa viagem louca, devo dizer que foi impressionante. – Dante disse brincalhão. – Você está bem? – o sorriso dele se reduziu a um semblante preocupado. Resfoleguei, fitando minha mão. – Sim, sim. Estou bem sim. – o encarei ligeiramente estarrecida e o fulgor tranquilizante nas orbes azuis dele me confortaram. Foquei de novo no quadro, me desvencilhando do delírio de alguns minutos. Para ser honesta, apreciava a instalações artísticas em todos os âmbitos, estar envolvida e ter hobby em desenho tradicional favorecia para meu ponto de vista — estava até praticando com o uso de carvão para compor ilustrações mais detalhistas, apesar da sujeirada que essa nova técnica ocasionava. Depois de uma episódica sequência de bizarrices que, em teoria, não poderiam acontecer se tratando de mundo real: me deparar com uma elegante pintura, inspirada no estilo renascentista, de um rapaz que vi em um devaneio era, no mínimo, o menos extraordinário em um paralelo com as atuais circunstâncias. Comprovadamente meu parâmetro ganhou um novo patamar. E lá estava ele com a face pálida e os olhos numa coloração púrpura que se prendiam a todos que se dispusessem a admirá-lo, com naturalidade hipnótica em sua postura. Minha antiga professora ensinou que os pintores desse período costumavam ocultar as imperfeições dos modelos que representavam em suas telas para torná-los visualmente belos e manter sua figura eterna, contudo, não conseguia capturar toda beleza daquele desconhecido que emergiu em meus sonhos, sequer demostrava um respeito no quesito retratação fiel para servir de base de reconhecimento. Não comprometia a obra, só não fazia jus ao cara. — Você o reconhece? — Ace encorajou em um tom interrogativo. — Oh, mais ou menos. — pigarreei para engrossar um pouco a voz de um jeito que soasse mais confiante. Não era por estar nervosa e um pouco atônita que necessariamente precisava dar sinais igual um semáforo. — Eu o vi em um sonho. Ou, pelo menos, alguém muito parecido. — Compreendo. — Ace fitou o retrato com feições difíceis de definir, porém, o que pude identificar pendia para uma apatia oscilante. — Vou lhe mostrar as acomodações, venha. Dante estreitou um pouco os olhos. Fui no encalço de Ace com Dante atrás de mim, não reparei muito a trajetória de corredores percorridos por ainda estar distraída com o ocorrido de minutos antes, tentando entender o que aquilo significava e se minhas faculdades mentais permaneciam intactas ou tudo não passava de uma alucinação — a segunda opção tinha mais crédito. Minha severa e péssima sorte contribuía para que minha imaginação fértil inventasse as mais loucas possibilidades para me convencer que era um caso perdido, simplesmente porque em menos de poucos dias consegui ser atacada por uma b***a, ser magicamente teletransportada para uma dimensão fictício com um personagem de um jogo, aparece um cara que diz saber informações cruciais para mim e, como mencionado anteriormente, não assimilei nem metade disso. Ter um botão de pause seria muito útil nesse momento. — Esse é o seu quarto. — escutei, chacoalhando a cabeça para voltar a realidade com Ace direcionando à uma das portas ali existentes e a abrindo. O lustre do lugar era maior que meu quarto – metaforicamente falando. Gente rica gosta de ostentar, ri internamente. — Espero que tenha espaço suficiente para mim e o senhor de ego grande. — Dante sorriu com meu comentário, adentrando o quarto sem cerimônia alguma. — Temos outros quartos para que ele se acomode. — explicou, observando o meio-demônio prontamente se deitar no sofá sem pretensão nenhuma de se mover. Dante levou a sério o propósito de me auxiliar e proteger. Não esperava nada mais dele, não era a toa que ele sempre foi o primeiro no pódio de personagens favoritos da franquia. Ele encabeçou a missão e não pude deixar de me comover com isso. Ace, em contrapartida, não gostou muito desse nível de i********e e suas feições menos brandas mostravam seu dissabor. – Você falou comigo? – indagou preguiçosamente. – Não se preocupe, estou bem confortável aqui. O cheirinho de desdém sentia de longe; o homem, além de zombar dos adversários, ainda tinha o cinismo de demonstrar total um ar tão presunçoso que somente ele mesmo seria capaz de emanar. — Agradeço a hospitalidade, Ace. Eu posso dividir o espaço com o Dante, afinal é o trabalho dele cuidar de mim em tempo integral. — Não foi esse o combinado exatamente. — Dante objetou, mantendo o tom gracioso enquanto se ajeitava mais no acolchoado. – Acordo é acordo. – repliquei, repousando as mãos na cintura. – Certo, certo. Tudo de acordo com o plano. – deu de ombros. Qualquer um com mais de dois neurônios perceberia a hostilidade crescente e flamejante entre os dois, algo que o Devil Hunter fazia questão de alimentar. – Conversaremos mais tarde, Diva. – Sem cair muito na gracinha dele, Ace saiu com um semblante sereno e inabalável, a recato e decoro de um lorde, permitindo que ficássemos a vontade no enorme cômodo que mais se assemelhava a uma casa de tão fantasticamente grande. Não queria atuar com pouca cortesia e parecer rude com minha conduta vagamente autoritária – em encaixar Dante quando claramente ambos se antagonizavam. Entretanto, em termos de tato, o filho de Sparda era o único que julgava ser merecedor da minha confiança plena em meio a esse caos. Após salvar minha vida, o mínimo que tinha a oferecer, além de uma generosa pizza, era isso no fim das contas. Priorizava sim a busca do conhecimento a respeito de como vim a esse mundo e como voltaria ao meu, mas não seria uma desculpa para ser cega e influenciável ao ponto de não ter minha parcela de desconfiança. Ser ou não ingênua determinaria meu destino e entre viver e morrer, prefiro estar Vivinha da Silva. — Esse lugar é incrível. — explorei cada área com empolgação, parando no que supus ser um closet, destinado a mim, cheio de uma variedade de roupas de diferentes estilos. — Vou aproveitar e tomar um banho. — Quer companhia? — questionou provocativo, no entanto, sem se mexer. — Não. Acho que sou um pouco crescida para alguém me dar banho. — rebati com o senso de humor o mais compatível com sua brincadeira. Dei uma olhada na janela, agraciada com o frescor da brisa que se infiltrou por ali, inspirando longamente. — Você acha que tem algum modo para voltar ao meu mundo? – escovei meu curto cabelo para trás. – Não faço ideia, é por isso que estamos aqui, não? – me virei para confrontá-lo, incerta da minha escolha. – E é melhor ir tomar seu banho ou tomo a sua frente nisso. — Não! – guinchei, apressada. – Doçura, confie em mim. Farei o necessário para dar certo. – pontuou com serenidade. Assenti, escondendo minha euforia com o comentário dele, gritando internamente como uma fangirl. Escapuli para o banheiro e, com todo meu ser protestando por um descanso adequado, me lavei, extraindo de mim a carga estranha e o cheiro estranho de ópio imbuído em mim como se tivesse sido refogada em uma banheira de ervas infundidas. Assim que me troquei, voltei para o cômodo radiante e esbanjando vitalidade. — Isso foi fantástico! — exalei em deleite, secando o cabelo com uma toalha. Me desloquei distraidamente pelo grande espaço, um pouco imersa em pensamentos. — Estou pronta para embarcar em uma longa viagem para os sonhos. — coloquei a toalha no suporte e me deitei, mirando Dante. — Você está confortável dormindo no sofá? — Dá para o gasto. — respondeu indolentemente. – Não seria melhor que dividíssemos a cama? — pigarreei para me recompor do breve segundo de vergonha. – Não é a primeira vez mesmo. – Tentando me seduzir? – provocou sem tirar seus olhos acusadores e audaciosos de mim, arqueando a sobrancelha ligeiramente descrente com minha proposta. — Prefere acordar todo dolorido? — ajustei o travesseiro para transparecer uma invejável indiferença que torci para ficasse espontâneo. Dante ponderou alguns segundos antes de se acomodar no lado vago. — Estava ansiosa para me ter em sua cama? — revirei os olhos com a petulância dele sem, no entanto, segurar a gargalhada. Meu exterior seria a definição de calma e disciplina, agindo como se tudo aquilo fosse normal — sem nenhum surto meu. Contrapondo-se, meu interior tremia todo, não havia uma parte não convulsionada. Por que perder a chance de ficar pertinho da epítome de o homem mais incrível dos jogos, ele fez um nome e era f**a antes que ser f**a virasse moda. A lenda dos hack'n's***h, o filho de uma lenda que virou uma lenda muito maior que o próprio pai. Meu lado fangirl não podia se emocionar mais. Em algum ponto da minha crise interna de fã, adormeci. Foi um fechar de olhos de poucos segundos e quando me dei conta: estava agarrada ao caçador assim como costumava fazer com um antigo dakimakura que possuía (Sem julgamentos, tinha quinze anos!). Me afastei em um impulso grogue, sem grande afetação para não acordá-lo, porém minha intuição, que tem um certo nível de precisão e acertos, alertou sobre ele estar, ao menos, parcialmente dormindo. Para garantir, mexi no nariz dele de leve com o indicador. A reação dele denunciou seu teatro, pois assim que testei, seu rosto se contorceu em uma careta para impedir um espirro iminente. Ri baixinho de sua atuação meia-boca e me levantei com discrição, ignorando a consciência de que em meu entorno o breu engolia tudo. Respirei fundo, acalmando o desconforto familiar que embrulhava meu estômago e lutando contra o medo ridiculamente infantil e me concentrei unicamente em manter a compostura e procurar água para aplacar minha sede noturna. Tateei um pouco a parede para alcançar a porta, saindo por fim. — Da última vez que fui guiada pela curiosidade... Deu r**m. Só que má sorte é questão de perspectiva... E na minha perspectiva... Tenho má sorte. — resmunguei ao notar as similaridades da vez que caiu a luz de casa e, por desventura, acabei aqui. Chutando o pessimismo, me desloquei um tanto perdida, praguejando por não ter sido atenta o bastante para memorizar o caminho do quarto até o salão. As cegas, me guiei pela meu senso de direção torcendo para que fosse tão certeiro quanto a minha intuição se provou ser. Uma canção suave me paralisou. Era a mesma que tinha escutado em algumas ocasiões após minha chegada... Como se me chamasse. Usando o som como guia, andei até onde escutava mais alto – uma porta entreaberta. Com o fascínio nublando a razão, entrei na sala, meio que um genérico ato que se reproduz no automático influenciado pela curiosidade. Uma luminescência inócua me cegou por um instante – meus olhos desacostumados lacrimejaram e pisquei incontáveis vezes para atenuar a ardência e a irritação. Posicionei os braços sobre minha cabeça para servir como bloqueio e assim ter um intervalo mínimo para proporcionar alívio as minhas retinas não adaptadas a um cenário tão iluminado, me poupando de perder a sensibilidade ocular. Franzi o cenho, focalizando no local no qual me encontrava e que, só pela recepção ofuscante, garantiu razões de sobre para me arrepender da minha decisão de ceder a vontade inata de explorar o desconhecido. No começo, baseado no achismo da primeira impressão, pensei que a sala seria uma espécie de salão branco com lâmpadas de sei lá quantos watts capazes de descapacitar os sentidos visuais de quem invadia, mas não, muito diferente do que imaginei, se tratava de um salão enorme com uma claraboia em um formato abobadado que dispersava a luz natural para dentro e o piso, praticamente espelhado – o que me fez concluir que alguém tinha caprichado na faxina ali – a refletia, ficava um jogo complexo de cores e figuras expostas. No centro, imóvel feito uma escultura de mármore, havia uma mulher com um vestido de tons pastéis, variando entre branco, azul e creme. Ela não se virou, mas, aparentemente, notou minha presença perambulando por ali. A canção, entoada a capela, cessou com cordura. A interrupção acabou avivando um estranho sentimento de desorientação em mim que não soube explicar de onde viera, somente que cresceu conforme permanecia paralisada fitando a jovem. Repentinamente, como se desperta de um longo período de sono, reparei melhor nos arredores e de que teria sido uma péssima ideia entrar sem mais nem menos. – Você é a senhorita, Diva, correto? – indagou, sua voz tão angelical e sonora que cativou meus ouvidos. – Sim, sim. – respondi meio abobalhada. – E você, quem é? – Meu nome é Nilin, sirvo o senhor Ace e, agora, a senhorita também. – sorriu graciosamente por cima do ombro. Nilin se virou e tive a visão mais fascinante de uma mulher na minha vida – o que só fortalecia a minha concepção de que só tinha gente bonita nesse mundo. Ela possuía longos cabelos negros e olhos que reluziam em tons de aqua que nunca vi em nenhuma pessoa antes, atribuindo um aspecto mais inocente e elegante a sua silhueta. – Você canta muito bem. – elogiei genuinamente encantada no modo como sua música me tocou. – Oh, obrigada. – É engraçado, porque tive a ligeira impressão que estava me chamando e que a conhecia. – esfreguei a nuca, nervosa. – Loucura, não é? Nilin não soube o que dizer com meu comentário, algo que me fez ter mais consciência de como minhas palavras soaram bobas. – Ah... Bem, desculpe ter te interrompido. – marchei de volta para porta. – Senhorita Diva. – chamou com certa urgência, o que me intrigou. – Você... – pausou como se estivesse ponderando sobre um assunto. – Deseja alguma coisa? – Não, na verdade, não. – Qualquer coisa que precisar, estarei disponível. Então não hesite em me avisar, sim? – a expressão outrora melancólica, se alterou em uma mais amena, com um sorriso cortês. Me arrastei para fora tão mecanicamente que quase podia escutar meu corpo estalando de tensão e vergonha. Tinha sido um encontro excêntrico e embaraçoso, encarando até com uma perspectiva menos severa, um contato promissor. Nunca diria que seria a encarnação da socialização, uma borboleta social, porém quando a pessoa parecia interessante, empurrava minhas limitações no buraco para interagir. A aura que rondava Nina me instigou, como se, por trás da face contida e dócil, existisse uma insondável tristeza. Imersa nessa linha de raciocínio, marchei pelo sinuoso corredor, cuja decoração composta por quadros de artistas desconhecidos estremecia até minha alma, senti um súbito e atordoante esbarro no ombro – que por impulso toquei. Parei meu percurso e o olhei superficialmente, checando se não tinha ninguém mesmo e que fosse fruto da minha imaginação. – Merda, esqueci de perguntar onde fica a cozinha. – praguejei pela minha falta de tato e esperteza. – Pior que se eu retornar lá pra saber, ela vai achar que sou tapada. Vou ter que procurar sozinha! Retomei meu caminho e chegando no andar inferior, vi, pela visão periférica, um diminuto feixe de luz projetado de uma área há poucos passos de mim e, o mais quieta possível, me encaminhei até ele, espiando o local para saciar minha incapacidade de não curiar. Franzi o cenho com a vista: um homem virado de costas segurando um candelabro encarando tão fixamente o retrato de Alexander que aparentava um apreço ou... Ódio. — Pode se aproximar se assim o deseja. — a voz murmurada que vibrou pelo silêncio da enorme sala minimalista, arrepiou o mais profundo da minha alma. Mecanicamente desloquei-me para perto dele, suando frio e rezando para que não viesse uma enxurrada de sermões por dar uma de intrometida e ter espionado ele na surdina. As chamas bruxuleantes das velas lhe conferia uma fisionomia tenebrosa, mesmo com o sorriso afável no qual seus lábios desenharam, a impressão persistiu. Engoli o bolo que subiu minha garganta e a figura cruzou os braços a medida que Ace me direcionava para o assento mais próximo, seus olhos pregados em nossos mais fugazes e simplórios movimentos. — Algum problema? — sussurrou com uma doçura que escorria de sua boca. — É muito tarde para que esteja acordada. — Eu vim tomar água... Me perdi procurando a cozinha. — forcei uma risada para apaziguar o desconforto que crescia feito ervas daninhas. Ace depositou o objeto na mesa poucos centímetros de mim e partiu, voltando com um copo de água e me servindo com bastante gentileza. Nada muito anormal para um cara que deveria ter algum protocolo de conduta que o impedia de ser informal em qualquer circunstâncias, isso me gerou uma certa vergonha de ter, por um breve instante, o enxergado como um homem assustador. Talvez só não estivesse acostumada com pessoas mais restritas quanto as próprias ações, calculando possíveis falhas em cada movimento, pensamentos e falas, tendo que coordenar tudo com excelência. Devia essa neura toda a minha paranóia, mas também não negaria que, diante de tudo que se discorreu, meio que me sentia fora de esquadro. Era nova em um mundo no qual não pertencia e ninguém disse que retornar seria uma tarefa fácil e acredito que o estresse em si me faz raciocinar com uma pressão de perigo inexistente. Concluindo o óbvio, quis questionar a presença do outro indivíduo ali, contudo, assim que Ace se acomodou em uma cadeira praticamente do lado do cara, tive certeza de duas coisas: que só eu o via ou que o cara conseguia a proeza de se ocultar tão bem que nem o dono da residência o reparasse. Beberiquei a água, tomando goles lento para evitar o contato visual prolongado. — Acho que deveria ser nessa parte que diria que sou um ser mágico ou algo clichê do gênero. — uma das manias que desenvolvi para escapar de um embaraçoso episódio sem qualquer diálogo era justamente contar uma piada interna me baseando no que ocorria. Pelo menos na minha cabeça tinha sido muito engraçado, no entanto, ao externá-la soou um tanto quanto tosco. Ace aparentou captar meu espirituoso comentário, entretanto, sem respondê-lo. Pigarreei. — Eu tenho uma dúvida... — iniciei no surto de intrepidez. — Você me chamou de irmã, por que? Ace apoiou os cotovelos na mesa — o que me fez até pensar que ele fosse discursar igual um personagem de anime no clímax — com os olhos claros astutos e severos me fitando. — Eu o contaria no devido tempo, porém os planos mudaram. — afirmou em tom condescendente. Franzi o cenho, o estômago já se revirando mais que liquidificador com a sugestão de algo r**m ser exposto. — Nós somos irmãos. — jogou sem que eu me preparasse para a bomba. — Há muitos anos, quando você nasceu... — pausou, deduzi que estava disperso em suas lembranças. — Nosso pai, a salvou da morte e decidiu que essa dimensão não seria segura para que crescesse e a deixou com aquele casal humano que atualmente considera sua família biológica. — ele levantou com cautela, encurtando a distância insignificante que nos separava e pegou carinhosamente minha mão. O gesto causou uma descarga elétrica em mim que congelou meus músculos, enrijecendo cada célula e me transformando em uma estátua sem reação. Ace apertou ternamente minha mão entre as suas indiferente ao meu estado. — Tantos anos de espera... Anos de buscas intermináveis... Agora que está em casa, não permitirei que nada lhe tire daqui. Você viverá comigo como deveria ter sido se não fosse aquele fatídico dia que nos afastou. Somos uma família. Eu sou sua única família. — abismada com a promessa que se atrelava a suas palavras, não reavi o controle de meu corpo que permaneceu imóvel pelo choque. Sem resistência da minha parte, Ace me abraçou com força, não o suficiente para me machucar, apenas proporcional a emoção que ele esboçava com tanta legitimidade. Meu cérebro não processou tão bem a declaração, operando totalmente no modo automático. — Está dizendo... Que vou viver nesse mundo? — exalei com o que me restara de lucidez. — É o certo, não concorda? Arfei. — Não! — rugi em um lapso de rispidez, desfazendo o abraço com rudeza. — Quero ir pra casa, esse lugar não é minha casa! Só aceitei vir porque achava que poderia me dizer uma maneira para voltar. — recuei alguns passos para não ter novamente contato com ele. Ace fechou os olhos, em seguida, me encarou com decepção. A mais forma mais pura e honesta de descontentamento com minha recusa. Ele não pode esperar que atirando toda essa loucura pra cima de mim me traga, espontaneamente, para o seu lado e aceite como verdade absoluta. — Lamento. — a doçura abandonou sua voz que agora ressoava com autoridade. — Se depender de mim, você ficará. Para sua própria segurança. Sequer tem ideia do que essa dimensão tem e os perigos que se avizinham. — rematou sem titubear. — Tem seu tempo para reconsiderar e pensar com mais clareza. Sem alarde, Ace saiu do salão. Assim que seus passos deixaram de ser audíveis pelas proximidades, desmoronei em meus joelhos alquebrados com o coração a mil e tentando conciliar o que me fora dito sem, de fato, compreender. Toquei minha testa para acalmar a vertigem súbita que se despontou com o estresse. — Será que posso ter um pouco de privacidade? — resmunguei indignada para a figura prostrada no mesmo ponto de antes. — Minhas sinceras desculpas pela falta de cortesia. — ele proferiu com empatia, saindo do breu. Arregalei os olhos ao identificá-lo pela luz oscilante e parca, horrorizada e atônita, frenética e imediatamente mirando o quadro e o homem cuja face transbordava benevolência e simpatia. — Você... Céus... Meu sonho... O quadro... — gesticulei exasperada para encontrar uma melhor forma de me comunicar sem parecer uma pessoa sem articulação para compor um frase coerente. — O que está acontecendo? — Fique tranquila, sim? Respire fundo, se concentre apenas no exercício e limpe a mente. — sugeriu sensibilizado e com uma preocupação que combinava com alguém com feições tão bem desenhadas e emanando uma atmosfera acolhedora. Ele esticou a mão suavemente para tocar meu ombro em um gesto solidário, algo que rechacei de súbito, erguendo o braço para empurrá-lo. E o atravessei. Literalmente. — Ok. — me recompus, repetindo a mim mesma que ainda não chegou minha cota de absurdos. — Deixa eu ver... Alternativas que possam explicar essa maluquice... — ri nervosamente. — Só existe uma na verdade, ninguém real atravessa outra, exceto se... Você esticou as canelas? Alexander elevou ligeiramente a sobrancelha de um jeito que me despertou uma imensa e quase incontrolável vontade de rir. Se era de ser engraçado ou ansiedade no pico, deixaria a critério de julgamento. — Sabe... Tipo... Isso... — ele balançou sutilmente a cabeça que desprendeu algumas mechas de seu cabelo loiro, emoldurando seu rosto angelical. — Não sabia que existiam outras expressões para se referir a morte. — concluiu, o que apagou a impressão de ingenuidade e lerdeza à primeira vez. — Sim, estou morto. Por incrível que tudo soe, tal afirmativa não ocasionou um acesso de medo tampouco me abalou a ponto de desmaiar como qualquer pessoa sã faria — um tipo de comoção que normalmente teriam. Levei na boa, afinal era uma bizarrice para acrescentar na lista e desenvolver uma experiência com o sobrenatural com estilo, porque nada mais charmoso e convincente que se comunicar com um fantasma cuja finalidade é, basicamente, assombrar. Baseado em tudo que já assisti e li durante minha vida, geralmente espíritos desencarnados tinham assuntos pendentes para resolver e por essa razão ficavam na Terra. Alexander seria como o Gasparzinho, o Fantasminha Camarada? — Não entendo muito bem dessas coisas, mas... — limpei a garganta, formulando uma forma de orientá-lo. — Você deveria ir para o céu ou inferno? Alexander riu. Baixo e com a discrição de um gentleman. — Não sou exatamente esse tipo de fantasma, Diva. — Aparece nos meus sonhos, ninguém te vê só eu, sabe meu nome... Então é sim esse tipo de fantasma. — Cruzei os braços. — Falando sozinha, doçura? — congelei com o timbre rouco de Dante. — Eu... — olhei para Alexander que ostentava o sorriso bem humorado que enfatizava o fator invisível de suas competências fantasmagóricas. — O que faz aqui? — Te procurando. — se aproximou quase encostando em Alexander. — Depois de um tempo ficou muito solitário dormir sozinho. — anuiu com o típico teor irreverente. E tão magicamente quanto imaginei vindo dele, os sentimentos ruins se desfizeram, esvaecendo esquecidas. Ele me conduziu de volta, dando um pouco de alento após tantos sustos por uma noite.
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