Capítulo 2

1475 Words
Scarlett Dias atuais Respiro fundo enquanto estou em pé no balcão da cozinha, preparando o café da manhã para meu marido e minha filha. A cozinha é iluminada e arejada, com grandes janelas que deixam entrar a luz do sol da manhã. Qualquer um que olhasse para dentro pensaria que esta é uma casa feliz, uma família feliz. Não é, e estar de volta a Chicago depois que meus pais pegaram o dinheiro de Torello e nos mudaram para a Inglaterra não está ajudando. Sim, estou em uma casa melhor e tenho mais dinheiro, mas dinheiro não… compra felicidade. Pego os ovos da frigideira, coloco-os em um prato e os levo para minha filha de sete anos, Daniella . — Coma, querida.— Meu tom de voz é repleto de luz, escondendo a escuridão interior. Ao me virar para voltar ao fogão, vislumbro meu reflexo na janela. A mulher que me encara é uma estranha. A vida se foi de seus olhos. A luta nela se foi, exceto pela proteção de sua filha. Sou uma casca da mulher que um dia fui. — O café da manhã está pronto?— A voz rouca de Patrick corta o silêncio, e eu me encolho involuntariamente. — Sim.— Volto correndo para o fogão e coloco os ovos restantes num prato. Coloco-o na mesa, ao lado do assento dele. Patrick senta-se, com a testa franzida numa carranca perpétua. Daniella olha para ele nervosa, enquanto o garfo cutuca os ovos. — Esses ovos estão cozidos demais — Patrick dispara, com o olhar fixo em mim. — Você não consegue fazer nada direito? Sinto a familiar pontada de vergonha e humilhação quando as palavras de Patrick me cortam como lâminas invisíveis. Com o passar dos anos, aprendi a suportar suas críticas constantes, o menosprezo velado em cada frase, cada olhar. Mas nunca fica mais fácil. Nunca. Ainda assim, prefiro isso a empurrões ou tapas. — Eu posso refazer... — começo, num sussurro hesitante. — Não se incomode. — ele interrompe, seco como sempre. Lanço um olhar para Daniella , que finge prestar atenção ao prato, os ombros curvados como se carregassem o peso do mundo. Essa não é a vida que imaginei para mim. Já fui forte. Independente. Cheia de sonhos. Mas aquela Scarlett morreu — ou foi enterrada viva sob a crueldade de Patrick e o medo paralisante que me domina dia após dia. m*l consigo lembrar da garota que se apaixonou perdidamente por Dylan, o menino que me prometeu o mundo com os olhos e os lábios. Por que estou pensando nele agora? Deve ser porque estou de volta a Chicago. A cidade onde tudo começou... e terminou. Uma onda de raiva me percorre, mas é rapidamente esmagada por uma avalanche de pavor. Não posso me dar ao luxo de desafiar o temperamento de Patrick. Da última vez que o enfrentei, ele me empurrou contra a parede e apertou meu pescoço até que vi estrelas. Não posso permitir que Daniella testemunhe isso novamente. Não suporto a ideia de ela ter medo do próprio pai. Ela me encara, os olhos escuros arregalados de confusão e preocupação. Forço um sorriso — ou uma tentativa patética de um —, mas a dor em meu peito é pesada demais para esconder. Observo em silêncio enquanto Patrick termina o café da manhã. Ele se levanta, e o arrastar áspero da cadeira sobre o chão de madeira parece um trovão no silêncio tenso da cozinha. — Estou indo para o escritório — diz ele, com a voz ríspida de sempre, pegando a maleta. — Tenha um bom dia — respondo, num tom mecânico, sem vida. Palavras vazias, ditas apenas para evitar outra explosão. Assim que a porta se fecha, Daniella salta da cadeira e corre para me abraçar com força. Digo a mim mesma que ela busca segurança... mas, às vezes, acho que é ela quem tenta me oferecer consolo. Que tipo de mãe estou sendo, se minha filha sente que precisa cuidar de mim? — Por que ele está sempre tão bravo? — pergunta baixinho. Pisco, lutando contra as lágrimas. Há tanta ternura em sua voz, tanta inocência. E tudo o que eu consigo sentir é culpa. — Algumas pessoas... ficam m*l-humoradas de manhã. — Minha voz falha, envenenada pela mentira. — Tudo vai ficar bem. As palavras me queimam a língua. Sei que não vão. Mas como posso destruir a última faísca de esperança de Daniella ? Patrick deixou claro que, se eu tentar ir embora, ele machucará minha filha. E isso... isso eu jamais permitirei. Depois de alguns segundos, afasto-me lentamente e lhe ofereço um sorriso suave. — Vamos. Tenho que te levar para a escola. Caminhamos de mãos dadas pelas ruas tranquilas do bairro, e não consigo evitar as comparações. Cresci em uma parte modesta da cidade. Sempre fui estudiosa, centrada. Ganhei uma bolsa para uma escola particular e, por um tempo, achei que meu futuro seria brilhante. Alguns me achavam tímida demais, retraída... Mas bastava me provocarem para descobrirem que minha língua era mais afiada do que parecia. Essa versão de mim morreu com Patrick. As lembranças dos meus dias despreocupados vêm como um vendaval, trazendo com elas o rosto de Dylan. A maneira como ele sorria, como me fazia sentir como se eu fosse tudo. Foi um amor doce, jovem, ingênuo. Mas a dor que veio depois — a rejeição, o silêncio, o exílio — foi devastadora. Nunca superei. E agora que estou de volta, as feridas estão se abrindo de novo. A Inglaterra me deu um pouco de paz. O sistema de saúde me ajudou na gravidez, minha mãe esteve presente nos primeiros anos de Daniella. Fiz faculdade, me formei. A vida estava, aos poucos, se encaixando. Nunca perdoei Dylan, mas com o tempo entendi: éramos jovens. Jovens demais para prometer eternidade. E então, Patrick. Perfeito demais para ser real. Carismático, culto, educado. Dizia que queria ser pai de Daniella . Em menos de seis meses de casamento, mostrou quem realmente era. Me afastou do trabalho, da minha família, me reduziu a uma sombra. Chegamos à escola. Ajoelho-me e abraço Daniella com força. — Eu te amo, querida. Tenha um ótimo dia. — Eu também te amo, mamãe. Não fica triste, tá? Vejo-a correr para dentro do prédio, com a mochila balançando nas costas e o coração leve. O meu, em contraste, pesa como chumbo. Estou arruinando a infância dela. E isso me despedaça. Depois de passar no banco — Patrick me dá uma mesada controlada, como uma adolescente — saio para a calçada e esbarro numa parede de gente. — Desculpa. E então o mundo para. Meu coração quase sai pela boca quando reconheço o rosto. Dylan Torello. Uma enxurrada de sentimentos me toma: raiva, mágoa… e algo pior. Uma centelha de amor. Pequena. Persistente. Seus olhos escuros encontram os meus, e o reconhecimento floresce como um sol que eu desejava que nunca mais nascesse. — Scarlett... — diz ele, sorrindo como se nada tivesse acontecido. — Uau, você está aqui. Você está linda. As palavras me cortam. Como ousa? Como se o tempo não tivesse passado sobre minhas feridas, como se tudo tivesse ficado bem. — Aposto que você nunca achou que me veria de novo — murmuro, amarga. A expressão dele se torna confusa. — Por que você diria... — Não tenho tempo para isso. — corto, com a voz fria, venenosa. — Só nos faça um favor e morra, tá? Não espero resposta. Viro-me e saio, com o coração trovejando de dor, traindo toda a raiva que tento manter. Caminho rápido, a cabeça fervilhando. Depois de tudo, uma parte de mim ainda anseia por ele. Pelo toque. Pelo beijo. Pelo amor. Para sempre, ele disse. Quase acreditei. Mas ver Dylan ali, sorrindo como antes, me destruiu. Por um segundo, me senti aquela garota outra vez — ingênua, apaixonada, cheia de fé. Mas isso é passado. Perigoso. Inaceitável. Será que ele é casado? Ele pensa em mim? Ele sabe da existência de Daniella? Não importa. Não pode importar. A presença dele é uma ameaça, não uma lembrança doce. Patrick não suportaria. E eu não posso arriscar a segurança da minha filha por um amor morto. Acelero o passo. Preciso voltar para casa. Me esconder. Me recompor. Assim que fecho a porta, sinto minhas forças se dissiparem. Me jogo no sofá, o rosto entre as mãos. E então choro. Pela dor. Pela perda. Por tudo que abdiquei para manter Daniella segura. Ela é tudo o que me resta. Tudo o que importa. Por ela, enterrarei essa parte de mim de novo. Mesmo que, por dentro, continue sangrando. Com os olhos vermelhos e o peito em ruínas, levanto. Há tarefas a cumprir antes de Patrick voltar. Uma casa a manter. Uma filha a proteger. Por Daniella, farei o que for preciso. Até o fim.
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