capitulo 3 Catarina

1531 Words
📖 CAPÍTULO 3 — CATARINA O sino tocou às 4h45, como sempre. Não era um incômodo. Era um chamado. E meu corpo já sabia responder antes mesmo da consciência acordar. Abri os olhos devagar, sentindo o ar frio do dormitório entrar pelos pulmões. As outras noviças ainda se mexiam, algumas preguiçosas, outras sorrindo com o despertar. Eu me sentei primeiro não por ansiedade, mas por disciplina. Disciplina é a primeira forma de oração. Dobrei o lençol, alinhei as bordas, ajeitei o travesseiro. Cada gesto organizado acalmava meu coração. A ordem sempre me trouxe paz. A paz… me trouxe até aqui. Fui para o banheiro coletivo. A luz fraca tremia, mas iluminava o necessário. A água fria bateu no meu rosto, despertando tudo de uma vez. Fechei os olhos e murmurei baixinho: — Agradeço por mais um dia, Senhor. Era sincero. Sempre foi. Vesti o hábito azul-marinho com cuidado ritual. Primeiro o vestido, depois a gola, por fim o véu. A textura lisa, o tecido leve, o toque firme contra o pescoço… Tudo ali lembrava quem eu era, quem eu escolhi ser. Peguei meu terço. Beijei a cruz. E sorri. Ser noviça não era peso. Era privilégio. Às 5h30, todas estávamos no corredor, enfileiradas. O chão encerado refletia um pouco da luz que entrava pelas janelas altas. O convento despertava com suavidade passos baixos, vozes contidas, aroma de pão assando na cozinha. Entramos na capela. O silêncio era tão profundo que parecia tocar primeiro o espírito e depois o corpo. Ajoelhei. Ajoelhei com gosto. — Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo… As palavras saíram limpas, alinhadas com meu peito. O incenso queimava devagar, subindo em fios finos, quase dourados. E toda vez que eu respirava, sentia como se a alma se ajeitasse dentro de mim. Não era fuga. Era vocação. Depois da oração, fomos para a limpeza da manhã. Meu setor era o jardim. Eu adorava. O orvalho ainda brilhava nas folhas. O cheiro de terra molhada sempre me lembrava de onde a fé nasce: baixinho, escondido, humilde. Reguei as roseiras. Tirei folhas secas. Abracei a rotina como quem abraça o próprio destino. A Madre Márcia passou, observando. — Catarina, seu zelo é uma bênção. Baixei a cabeça, sorrindo de leve. — Procuro servir bem, Madre. E era verdade. Servir me completava. Ajudar me dava propósito. E silêncio… o silêncio sempre me deu força. Depois do jardim, fomos ao refeitório. Arrumei as mesas, ajeitei as xícaras, enchi as jarras de água. O movimento era simples, mas cada detalhe tinha intenção. Às 8h, fomos para a sala de leitura. Leitura das Escrituras. A parte do dia que mais aquecia meu coração. Sentei na segunda fileira. Minha Bíblia aberta, marcadores organizados, caderno ao lado. Quando a Madre pediu que lêssemos o Salmo da manhã, minha voz saiu firme: — “O Senhor é minha luz e minha salvação; a quem temerei?” Era mais que palavras. Era verdade. Eu não temia o mundo. Eu não temia o amanhã. Eu não temia o desconhecido. Porque eu sabia quem eu era. Eu sabia quem eu escolhi seguir. No intervalo, as outras noviças conversavam baixinho: sobre o coral, sobre as plantas novas do jardim, sobre o bolo do almoço. Eu observava com carinho. Ser noviça não é sobre isolamento. É sobre disciplina. Entrega. Paz. E a paz sempre me encontrou mesmo quando o mundo lá fora gritava. Ao meio-dia, tocou o sino do almoço. Depois, mais oração. Depois, aula de liturgia. Depois, silêncio. Silêncio sagrado. Silêncio que não incomoda. Silêncio que preenche. Enquanto escrevia no meu caderno de reflexões, senti algo… pequeno… leve… uma espécie de pressentimento. Mas não sombrio. Só… diferente. Fechei a página. Olhei pela janela. O céu estava claro, sem sinal de tempestade. As paredes do convento protegiam tudo ao redor. E ainda assim… algo lá fora parecia se mover. Suspirei fundo. Passei o dedo pelas contas do terço. Sorri. — Seja o que for, Senhor… conduza. Porque eu era Catarina. 22 anos. Noviça por amor. Por vocação. E pela absoluta certeza de que meu caminho começava ali mesmo que eu ainda não soubesse para onde ele iria me levar. O silêncio da hora de estudos ainda preenchia o corredor quando ouvi meu nome ecoar de forma suave, mas firme: — Catarina. A voz da Madre Márcia sempre tinha peso de autoridade, mas nunca de dureza. Era como sino de missa: chama, mas não fere. Fechei o caderno, marquei a página com cuidado e me levantei. As outras noviças me olharam de canto curiosidade escondida atrás da disciplina. Madre Márcia não costumava chamar ninguém fora da hora de orientação espiritual. E, quando chamava, não era pra conversa sem importância. Caminhei pelo corredor polido, os passos ecoando baixo. As janelas altas deixavam entrar uma luz branca e gentil. O ar tinha cheiro de livro antigo e óleo litúrgico. Ao chegar na porta do gabinete da Madre, bati de leve. — Entre, filha. — ela respondeu. Entrei. A sala era simples, mas carregada de significado: mesa de madeira escura, imagens dos santos, um crucifixo maior que os outros, e uma pequena estante com livros gastos os mais usados, os mais amados. A Madre Márcia estava sentada, as mãos unidas sobre a mesa, o véu impecável, o olhar firme e, ao mesmo tempo, acolhedor. — Sente-se, Catarina. Obedeci. Meu coração estava tranquilo, mas atento. Eu sempre soube que a disciplina me trazia paz mas aquele chamado despertou uma pontada de expectativa. A Madre respirou fundo e então sorriu, aquele sorriso que iluminava mais do que o sol entrando pela janela. — Filha… falta exatamente um mês para o voto temporário. Meu peito se abriu. Meu coração pulsou rápido, mas sem medo. Quente, vivo, cheio de um amor que não precisava ser explicado. Eu esperei tanto por esse momento… A Madre continuou, observando meus olhos com atenção: — Você tem sido exemplar nos estudos, na disciplina, na humildade e na entrega. A comunidade inteira reconhece sua vocação. Mas, antes de avançarmos… preciso ouvir de você. Com clareza, honestidade… e liberdade. A Madre entrelaçou os dedos, inclinando-se um pouco para frente não para pressionar, mas para olhar direto dentro de mim, como só ela sabia fazer. — Catarina… antes de seguirmos para o próximo passo, eu preciso ter certeza absoluta. Não por mim. Não pela congregação. Mas por você. Meu corpo ficou imóvel. Minha respiração, leve. Eu sabia o que vinha. Sabia porque tinha estudado cada etapa, cada rito, cada renúncia. E mesmo assim… ouvir da boca dela fazia tudo parecer real de um jeito diferente. — O voto temporário — ela continuou — não a torna freira ainda. Mas a coloca no caminho direto, oficial, firme. É a porta antes da porta final. Assenti de leve. Já sabia. Mas quis ouvir até o fim. — Depois do voto temporário… — a Madre prosseguiu — você viverá como uma irmã. Com as obrigações, as virtudes, a vida interna da congregação. Mas ainda sob discernimento. É como… — ela buscou as palavras — um noivado espiritual. O coração apertou bonito dentro de mim. Noivado. Compromisso. Escolha. — E após os anos de voto temporário — ela disse, com a voz suave — virão os votos perpétuos. E então, sim… você deixará de ser noviça, deixará de ser candidata… para se tornar oficialmente uma Freira Consagrada da Ordem das Servas da Divina Luz. O título caiu sobre mim com um peso bom. Responsável. Sagrado. Definitivo. A Madre respirou fundo. — Mas antes de tudo isso… eu só preciso saber uma coisa, Catarina. A mais importante delas. Ela ergueu o rosto. E o silêncio entre nós ficou tão profundo quanto o da capela ao amanhecer. — É realmente isso que você quer? — Quer seguir para o voto temporário? — Quer iniciar o caminho que, um dia, se Deus permitir, a fará Freira? — Quer essa vida… com tudo o que ela exige? — Sem reservas? Sem dúvidas escondidas? — Com o coração inteiro? Meu corpo não tremeu. Minha respiração não falhou. Meu olhar não desviou. Porque eu já sabia a resposta desde o primeiro dia que toquei um terço. Desde o primeiro amanhecer no convento. Desde a primeira madrugada em silêncio. Desde a primeira vez que senti paz verdadeira. Minha voz saiu firme, tranquila e cheia como se já viesse pronta do fundo da alma: — Sim, Madre. Eu quero. — Eu quero essa vida. — Quero o voto. — Quero o caminho inteiro. — Quero servir… e ser instrumento do que Deus quiser de mim. — Sem medo. — Sem dúvida. — Sem faltar com Ele e comigo. A Madre sorriu aquele sorriso que só aparece quando algo sagrado acontece. — Então, filha… — ela disse, tocando minha mão com carinho — prepare o coração. — Em um mês, você deixará de ser noviça… e dará o seu primeiro sim definitivo. Meu peito se preencheu como se alguém abrisse janelas dentro de mim. Um mês. Trinta dias. E eu estaria dando meu primeiro passo real para ser aquilo que sempre desejei: uma Freira. A Madre completou: — Vá para a capela, Catarina. Agradeça. E permita que Ele confirme, dentro de você, o que já ouvimos hoje.
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