capítulo 01

2172 Words
Manu Narrando Eu nunca escolhi nada na minha vida. Não escolhi nascer, não escolhi perder meus pais cedo demais. Não escolhi aprender a me virar no mundo antes mesmo de aprender a brincar como qualquer criança devia. Minha vida sempre foi sobre aceitar o que aparecia e sobreviver da forma que dava. Eu nunca tive luxo de sonhar, nunca tive a chance de pensar em “amanhã”. O amanhã sempre foi só mais um dia que eu precisava sobreviver. Lembro lá prós meus doze anos, minha mãe com um carinho que me dói. Ela era simples, trabalhadora, fazia faxina nas casas do asfalto, aquelas madames que nem olhavam direito pra cara dela. Mas ainda assim, ela voltava pra casa sorrindo, sempre dizendo que um dia tudo ia melhorar. Eu acreditava, sabe? Porque criança acredita no que a mãe fala. Só que a vida foi c***l. Um câncer levou ela embora em pouco tempo. Eu ainda lembro dos olhos fundos, do corpo fraco, da tosse que parecia não ter fim. Eu lembro de implorar pra Deus deixar ela comigo, mas parece que Deus nunca escutou minhas preces. Depois dela, eu fiquei sozinha. Meu pai até tentou cuidar de mim por um tempo, mas já ele também não aguento, acabou morrendo de tanta tristeza. Fiquei com a minha avó, que também não foi diferente. A morte foi levando todo mundo que eu tinha, um por um, como se estivesse me testando, vendo até onde eu aguentava ficar sozinha. Eu me vi jogada no mundo. Sem mãe, sem pai, sem ninguém. Só restava o morro, com suas vielas apertadas, suas bocas de fumo, seus vapores correndo de fuzil na mão e as mães chorando pelos filhos que nunca voltavam. Foi aí que aprendi a ser aviãozinho. Eu já tinha dezesseis anos quando tomei a decisão de entrar no movimento. No começo eu tinha medo, tremia inteira. Mas a fome grita mais alto do que medo. Quando você passa dias com a barriga doendo e não tem ninguém pra te dar um prato de arroz e feijão, qualquer oportunidade vira sobrevivência. E ser aviãozinho me dava pelo menos o básico: comida na mesa, um chinelo novo, um sabonete cheiroso de vez em quando. Coisas que, pra quem olha de fora, parecem pequenas, mas pra mim eram um luxo. De vez em quando, as vizinhas me davam um prato de comida, mais não era sempre que isso ocorria, lembro que a dona Odete era a que mais matava a minha fome, mais o marido dela não gostava de mim, e sempre que ele descobrir o que ela tinha feito, ele brigava muito com ela. O tempo foi passando e eu fui calejando. Aprendi a maldade das ruas. A não confiar em ninguém, a não me apegar, a não me iludir. Nesse mundo, afeto pode ser uma fraqueza. Se você ama demais, sofre demais. Se você confia demais, alguém sempre arruma um jeito de te trair. Então eu endureci. Virei pedra. E, por mais que às vezes de noite eu chorasse baixinho no meu canto, de manhã eu já tava de pé, firme, pronta pra mais um dia. Foi nessa época que eu conheci o Dadinho. Ele era só mais um dos moleques metidos a valente, tentando ganhar espaço, querendo mostrar serviço. Mas tinha algo nele que me chamou atenção. Talvez fosse o jeito debochado, aquele sorriso meio torto que parecia não se importar com nada. Ou talvez fosse porque, diferente de muitos, ele me olhava como se eu fosse alguém, não só mais uma menina largada por aí. No começo a gente só se trombava nas esquinas, nas corridas do dia a dia. Ele me soltava umas gracinhas, eu fingia que não ligava. Mas por dentro eu sentia uma coisa diferente. Fazia tempo que ninguém me arrancava um riso de verdade, fazia tempo que eu não sentia aquela pontada no estômago que a gente sente quando tá começando a gostar de alguém. Eu até tentava me segurar, porque já sabia como essas histórias costumam acabar. Mas a vida no morro é um sopro, e às vezes a gente precisa agarrar qualquer respiro de felicidade que aparece. Ele começou a se aproximar mais. Um “cola aí”, um cigarro dividido, uma volta de moto sem destino. Eu nunca fui de dar confiança rápido, mas com ele parecia que as barreiras iam caindo aos poucos. Era como se ele enxergasse além da casca dura que eu tinha criado. Ele me chamava de “princesa do morro”, e por mais que eu fingisse que não achava graça, no fundo me derretia. Eu não me sentia princesa de nada, mas era bom ter alguém que me visse diferente. Ainda assim, eu carregava meus fantasmas. Tinha noites em que eu deitava e a lembrança da minha mãe voltava com tanta força que eu acordava com o travesseiro molhado. Tinha dias em que eu olhava no espelho e não reconhecia a menina que eu tinha virado. Uma mistura de sobrevivente e perdida. Alguém que nunca teve escolha, mas que seguia em frente porque parar não era opção. O Dadinho, do jeito torto dele, parecia entender isso. Ele não cobrava explicação, não perguntava sobre o passado. Só ficava ali, do meu lado, às vezes em silêncio, às vezes rindo de qualquer besteira. E eu comecei a gostar dessa sensação. A sensação de não estar completamente sozinha. Mas ao mesmo tempo, lá no fundo, um medo crescia. Porque eu sabia que nesse mundo, nada dura. O morro não deixa. Uma hora a polícia invade, outra hora é a guerra com morro rival, e quem tá no meio acaba pagando o preço. Eu já tinha visto isso acontecer tantas vezes… meninos que ontem estavam rindo no baile e hoje estavam estendidos no chão, cobertos por um lençol. Mulheres que apostaram todas as fichas em um homem e acabaram sozinhas, chorando com um filho no colo. Será que comigo seria diferente? Eu não sabia. Mas naquele momento, conhecendo o Dadinho, deixando ele se aproximar, era como se pela primeira vez em muito tempo eu tivesse permitido a mim mesma acreditar em algo bom. Nem que fosse só por um instante. E é estranho, porque enquanto eu conto minha história, enquanto eu lembro de cada detalhe que me trouxe até aqui, eu percebo o quanto a vida me endureceu. Eu nunca tive um conto de fadas, nunca tive final feliz. Só que agora, com ele, com essa sensação ter algo, mesmo que pequeno, eu sinto uma fagulha. Uma fagulha de esperança que eu nem sabia mais que existia. Se vai durar pra sempre ? Eu não sei. Se vai me machucar? Talvez. Mas pela primeira vez em muito tempo, eu estava disposta a arriscar. E essa é a minha vida até aqui. Perdas, dores, escolhas que nunca foram minhas. E agora, esse começo torto de algo que pode ser tudo ou nada. Esse cara que ainda é só o Dadinho, mas que, de algum jeito, já tá mexendo com a Manu que eu guardei bem no fundo, atrás de todas as cicatrizes. O tempo passou mais rápido do que eu imaginei. Aquele começo de olhares, sorrisos escondidos e voltas de moto sem destino virou rotina, virou vida. Eu e o Dadinho começamos a nos conhecer de verdade, não só pelo que mostrávamos pro mundo, mas pelo que guardávamos por dentro. Descobri que, por trás daquela marra de moleque que queria conquistar o morro, ele também tinha marcas, também tinha suas dores. Ele não falava muito sobre o passado, mas quando falava, eu via nos olhos dele que também carregava fantasmas. Talvez por isso a gente tenha se entendido tão rápido. Hoje, a gente já mora junto. Não foi nada planejado, não teve pedido romântico nem nada. Foi natural. Um dia ele dormiu em casa, no outro já trouxe uma mochila, e quando vi, metade do guarda-roupa era dele. Eu nunca pensei que ia dividir meu espaço com alguém. Eu era acostumada a viver sozinha, me virar sozinha, acreditar que não precisava de ninguém. Mas com ele foi diferente. Eu me permiti. Me permiti ser feliz, mesmo sabendo que a felicidade no morro é sempre arriscada, sempre ameaçada. É estranho, porque quando eu tô na rua, cercada de barulho, de correria, de risco, eu mantenho aquela casca dura, aquela força que todo mundo espera de mim. Mas quando eu volto pra casa e fecho a porta, eu encontro paz. O olhar dele me acalma, o abraço dele me faz esquecer do mundo lá fora. Mesmo que seja por algumas horas, eu me sinto protegida. É como se ele fosse meu refúgio, e eu, o dele. Já faz quatro anos que a gente tá junto. Quatro anos de altos e baixos, de medos, de perdas no morro, de vitórias também. E nesses quatro anos, a gente começou a sonhar com algo que eu nunca imaginei que fosse querer: formar uma família. Eu, que sempre me convenci de que não tinha nascido pra ser mãe, que não podia me apegar a ninguém, comecei a imaginar um bebê correndo pela casa, chamando a gente de pai e mãe. Só que até agora… nada. A gente tenta, tenta, e nada acontece. No começo, eu nem ligava muito. Achava que era normal, que uma hora ia acontecer. Mas com o tempo, aquela ansiedade começou a bater. Eu me pego pensando se não tem alguma coisa errada comigo. Se é Deus me dizendo que ainda não é a hora, ou se é Ele me dizendo que nunca vai ser. Tem dias que essa dúvida me consome. Eu deito na cama e choro baixinho, com medo dele perceber. Fico me perguntando se meu corpo não serve, se eu não fui feita pra gerar uma vida. E isso dói, porque no fundo eu quero muito. Quero dar a ele essa alegria, quero sentir esse amor que todo mundo diz que não tem explicação. Mas o Dadinho… ele tem sido incrível. Ele percebe quando eu tô triste, mesmo quando tento disfarçar. Ele segura minha mão e diz que tudo vai acontecer no tempo certo, que eu não preciso me culpar, que a gente não tem pressa. Ele fala que, se não for agora, vai ser amanhã. E se não for amanhã, vai ser depois. E se nunca for, a gente vai dar um jeito de continuar feliz juntos. Ele fala que o importante é que a gente se tem, e que isso já é mais do que muita gente no morro pode dizer. Essas palavras dele me aliviam, mas não apagam completamente a angústia. Eu queria acreditar cegamente, queria arrancar essa insegurança de dentro de mim. Só que a verdade é que toda vez que vejo uma mãe com o filho no colo, meu coração aperta. Eu me imagino ali, e logo em seguida vem a dúvida: será que um dia vai ser minha vez? Eu sei que ele fala sério quando promete estar ao meu lado, que não vai me abandonar por causa disso. Mas, mesmo assim, a voz da insegurança insiste em sussurrar. Porque eu sei como funciona o mundo. Aqui, muitos homens acham que mulher só serve se puder dar um herdeiro, se puder multiplicar a família. E eu morro de medo que, no futuro, ele me olhe com outros olhos, que esse amor que hoje é tão firme comece a se desgastar por causa de algo que eu não consigo controlar. Ainda assim, eu tento me apegar ao presente. Tento me lembrar de cada momento que a gente já viveu, de cada noite que eu me senti completa só por estar nos braços dele. Tento acreditar nas palavras dele, acreditar que a gente pode, sim, ser feliz mesmo sem ter um filho agora. E, no fim, é isso que me dá força. Porque, apesar de tudo, apesar dos riscos que a gente corre todos os dias, eu só penso em voltar pra casa. Quando tô na rua e ouço tiro ecoando no alto, quando vejo a correria, quando sinto o medo rondando, eu só consigo pensar no caminho de volta. No sorriso dele me esperando, no cheiro dele impregnado no travesseiro, na sensação de que, pelo menos dentro de quatro paredes, eu tenho um pedaço de paz. Não importa o quanto a vida lá fora seja c***l, não importa quantas cicatrizes eu já carregue. O que me mantém firme é saber que tem alguém me esperando. Alguém que me escolheu, mesmo quando eu achava que ninguém nunca escolheria. E talvez seja isso que Deus queira me mostrar. Que, antes de eu ser mãe, eu precise aprender a ser feliz do jeito que a vida me deu. Que, antes de eu trazer outra vida ao mundo, eu precise aprender a valorizar a minha. Eu não sei. Mas sei que, com o Dadinho do meu lado, eu tô disposta a continuar tentando. A continuar acreditando. Porque, mesmo com todos os riscos, mesmo com todas as incertezas, a verdade é que eu não vejo a hora de voltar pra casa. Sempre.
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