Escolhas que mudam tudo

909 Words
Os dias estavam mais leves. Karen acordava sem o peso no peito, sem os pensamentos acelerados que a consumiam desde a juventude. Acordava com o som da risada de David ecoando pela cozinha, com cheiro de café fresco e pão na chapa feito por ele — o mesmo homem que, anos atrás, esmagara seu coração sem piedade, e que agora preparava seu desjejum com um sorriso de canto e olhos apaixonados. Mas mesmo a calmaria traz ventos novos. E, naquele fim de tarde, um deles chegou com força. — Temos um problema — disse Heitor, entrando na sala de reuniões com o semblante tenso, um envelope pardo em mãos. Karen franziu o cenho, interrompendo a conversa com David e a diretora de marketing. — Que tipo de problema? Heitor deslizou o envelope até ela, que o abriu com agilidade. Dentro, documentos selados da Diniz Alimentos Internacional — filial da empresa no México. Ao ler as primeiras páginas, seu corpo enrijeceu. — Eles querem comprar a parte majoritária da operação. Estão dispostos a pagar caro... mas exigem controle total — murmurou, encarando Heitor. David se aproximou e leu os papéis por cima do ombro dela. Arqueou as sobrancelhas. — Esse grupo... é o mesmo que tentou comprar a minha empresa em Orlando antes do colapso. Karen o encarou com seriedade. — Você tem certeza? — Absoluta. Eles agem como aliados estratégicos, mas por trás estão ligados ao fundo de capital que comprou concorrentes menores e os levou à falência para dominar o setor. É uma proposta envenenada. Heitor confirmou com a cabeça. — E se recusarmos, podem iniciar um movimento hostil. Já estão comprando ações de acionistas menores. Karen respirou fundo. — Temos pouco tempo. --- À noite, sentada no jardim de sua casa, Karen observava o céu nublado. As luzes de São Paulo tremeluziam ao longe, indiferentes às decisões que ela precisava tomar. David se aproximou com duas taças de vinho. Entregou uma a ela e sentou-se ao seu lado. — Você está muito quieta — disse, depois de um silêncio confortável. — É que essa decisão pode mudar tudo. Se vendermos, ganhamos fôlego, mas perdemos nossa alma. Se recusarmos, corremos risco de perder tudo. — E o que seu instinto diz? — Que não devo vender. Mas meu lado racional ainda não decidiu. David apoiou o cotovelo no encosto do banco e a encarou. — Você construiu esse império sozinha. Sobreviveu a perdas, traições, desastres. Você não precisa de ninguém para decidir o que é melhor para ele. E muito menos para você. Karen riu baixo. — Quem diria que um dia ouviria isso de você... — Eu errei com você tantas vezes, Karen. Hoje, meu maior orgulho é poder estar ao seu lado para te apoiar. Não para te comandar. E se quiser lutar, eu luto com você. Ela virou-se e encostou a cabeça no peito dele. — Você mudou mesmo, David. — Eu mudei porque te perdi. E mudei mais ainda porque te reencontrei. --- Dois dias depois, uma reunião extraordinária foi convocada com todos os acionistas, diretores e membros do conselho. Karen entrou na sala como uma tempestade silenciosa: elegante, firme, imponente. Todos sabiam o que viria. Ela se posicionou diante da mesa longa e falou com voz clara: — Recebemos uma proposta milionária para vender parte importante da Diniz Internacional. Mas essa proposta representa algo que não aceito: a perda de nossos princípios, da nossa identidade. Recusar significa arriscar. Aceitar significa render-se. E eu nunca fui de me render. Um burburinho percorreu o salão, mas ela ergueu a mão e continuou: — Se tiverem que me tirar da presidência para aceitar essa venda, tentem. Mas, enquanto eu estiver aqui, nossa empresa será comandada com propósito, não com medo. O silêncio que se seguiu foi absoluto. Depois de alguns segundos, um a um, os membros começaram a aplaudir. Primeiro discretamente. Depois, com força. E então veio a frase de Heitor: — Estamos com você, Karen. --- David a esperava na saída da sala, de braços cruzados e sorriso orgulhoso. — Que discurso. — Achei que meu coração fosse sair pela boca. — Ninguém percebeu. Parecia a rainha do tabuleiro. Karen se aproximou e o abraçou. — E você é meu cavalo. David riu alto. — Espero que isso seja uma metáfora elogiosa. Ela o beijou. — É. Um pouco torta, mas é. --- Nos dias que seguiram, os investidores que tentaram forçar a venda recuaram ao perceberem a resistência interna. Karen, com o apoio de David e Heitor, fortaleceu o capital da empresa com parcerias menores, seguras, e lançou um plano de expansão para países da América do Sul — sem perder o controle acionário. Foi nessa fase que David fez algo inesperado. — Quero abrir uma nova empresa — disse ele, ao lado dela no sofá, com um notebook no colo. — Sério? Depois de tudo que viveu? — Sim. Mas dessa vez, quero fazer certo. Do zero. Ético. Sustentável. E... com você. Karen arregalou os olhos. — Comigo? — Não estou te pedindo sociedade — disse, sorrindo. — Estou te pedindo inspiração. E talvez... permissão para provar que consigo fazer do meu nome algo limpo, sólido. Algo que honre o homem que me tornei. Karen ficou em silêncio por alguns segundos. — Você já está fazendo isso, David. E eu estarei com você. Ele segurou a mão dela. — Mesmo que eu fracasse? — Mesmo que você caia. Eu te ajudo a levantar.
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