Os dias estavam mais leves. Karen acordava sem o peso no peito, sem os pensamentos acelerados que a consumiam desde a juventude. Acordava com o som da risada de David ecoando pela cozinha, com cheiro de café fresco e pão na chapa feito por ele — o mesmo homem que, anos atrás, esmagara seu coração sem piedade, e que agora preparava seu desjejum com um sorriso de canto e olhos apaixonados.
Mas mesmo a calmaria traz ventos novos. E, naquele fim de tarde, um deles chegou com força.
— Temos um problema — disse Heitor, entrando na sala de reuniões com o semblante tenso, um envelope pardo em mãos.
Karen franziu o cenho, interrompendo a conversa com David e a diretora de marketing.
— Que tipo de problema?
Heitor deslizou o envelope até ela, que o abriu com agilidade. Dentro, documentos selados da Diniz Alimentos Internacional — filial da empresa no México. Ao ler as primeiras páginas, seu corpo enrijeceu.
— Eles querem comprar a parte majoritária da operação. Estão dispostos a pagar caro... mas exigem controle total — murmurou, encarando Heitor.
David se aproximou e leu os papéis por cima do ombro dela. Arqueou as sobrancelhas.
— Esse grupo... é o mesmo que tentou comprar a minha empresa em Orlando antes do colapso.
Karen o encarou com seriedade.
— Você tem certeza?
— Absoluta. Eles agem como aliados estratégicos, mas por trás estão ligados ao fundo de capital que comprou concorrentes menores e os levou à falência para dominar o setor. É uma proposta envenenada.
Heitor confirmou com a cabeça.
— E se recusarmos, podem iniciar um movimento hostil. Já estão comprando ações de acionistas menores.
Karen respirou fundo.
— Temos pouco tempo.
---
À noite, sentada no jardim de sua casa, Karen observava o céu nublado. As luzes de São Paulo tremeluziam ao longe, indiferentes às decisões que ela precisava tomar.
David se aproximou com duas taças de vinho. Entregou uma a ela e sentou-se ao seu lado.
— Você está muito quieta — disse, depois de um silêncio confortável.
— É que essa decisão pode mudar tudo. Se vendermos, ganhamos fôlego, mas perdemos nossa alma. Se recusarmos, corremos risco de perder tudo.
— E o que seu instinto diz?
— Que não devo vender. Mas meu lado racional ainda não decidiu.
David apoiou o cotovelo no encosto do banco e a encarou.
— Você construiu esse império sozinha. Sobreviveu a perdas, traições, desastres. Você não precisa de ninguém para decidir o que é melhor para ele. E muito menos para você.
Karen riu baixo.
— Quem diria que um dia ouviria isso de você...
— Eu errei com você tantas vezes, Karen. Hoje, meu maior orgulho é poder estar ao seu lado para te apoiar. Não para te comandar. E se quiser lutar, eu luto com você.
Ela virou-se e encostou a cabeça no peito dele.
— Você mudou mesmo, David.
— Eu mudei porque te perdi. E mudei mais ainda porque te reencontrei.
---
Dois dias depois, uma reunião extraordinária foi convocada com todos os acionistas, diretores e membros do conselho.
Karen entrou na sala como uma tempestade silenciosa: elegante, firme, imponente.
Todos sabiam o que viria.
Ela se posicionou diante da mesa longa e falou com voz clara:
— Recebemos uma proposta milionária para vender parte importante da Diniz Internacional. Mas essa proposta representa algo que não aceito: a perda de nossos princípios, da nossa identidade. Recusar significa arriscar. Aceitar significa render-se. E eu nunca fui de me render.
Um burburinho percorreu o salão, mas ela ergueu a mão e continuou:
— Se tiverem que me tirar da presidência para aceitar essa venda, tentem. Mas, enquanto eu estiver aqui, nossa empresa será comandada com propósito, não com medo.
O silêncio que se seguiu foi absoluto. Depois de alguns segundos, um a um, os membros começaram a aplaudir. Primeiro discretamente. Depois, com força. E então veio a frase de Heitor:
— Estamos com você, Karen.
---
David a esperava na saída da sala, de braços cruzados e sorriso orgulhoso.
— Que discurso.
— Achei que meu coração fosse sair pela boca.
— Ninguém percebeu. Parecia a rainha do tabuleiro.
Karen se aproximou e o abraçou.
— E você é meu cavalo.
David riu alto.
— Espero que isso seja uma metáfora elogiosa.
Ela o beijou.
— É. Um pouco torta, mas é.
---
Nos dias que seguiram, os investidores que tentaram forçar a venda recuaram ao perceberem a resistência interna. Karen, com o apoio de David e Heitor, fortaleceu o capital da empresa com parcerias menores, seguras, e lançou um plano de expansão para países da América do Sul — sem perder o controle acionário.
Foi nessa fase que David fez algo inesperado.
— Quero abrir uma nova empresa — disse ele, ao lado dela no sofá, com um notebook no colo.
— Sério? Depois de tudo que viveu?
— Sim. Mas dessa vez, quero fazer certo. Do zero. Ético. Sustentável. E... com você.
Karen arregalou os olhos.
— Comigo?
— Não estou te pedindo sociedade — disse, sorrindo. — Estou te pedindo inspiração. E talvez... permissão para provar que consigo fazer do meu nome algo limpo, sólido. Algo que honre o homem que me tornei.
Karen ficou em silêncio por alguns segundos.
— Você já está fazendo isso, David. E eu estarei com você.
Ele segurou a mão dela.
— Mesmo que eu fracasse?
— Mesmo que você caia. Eu te ajudo a levantar.