O Dia Que Não Devia Existir
Maya sempre acreditou no amor. Não naquele amor perfeito de filmes, mas no amor real — aquele que exige coragem, que machuca, que transforma. Ela acreditava porque precisava acreditar. Porque, depois de tudo o que perdeu, desistir do amor seria como aceitar que o mundo tinha vencido.
A cidade grande nunca dormia, mas Maya passava noites em claro, encarando o teto do quarto, ouvindo o barulho distante dos carros e sentindo o peso da culpa esmagar o peito. O acidente tinha acontecido no dia do seu aniversário de dezenove anos. Seus pais estavam a caminho de uma surpresa. Nunca chegaram.
Desde então, Maya carregava a sensação constante de que, se tivesse feito algo diferente, talvez tudo fosse diferente.
Jack foi quem segurou sua mão quando tudo desabou.
Eles se conheceram antes da tragédia, num tempo em que a vida ainda parecia simples. Ele tinha um sorriso fácil e um jeito calmo de falar. Depois da morte dos pais, j**k não tentou consertá-la. Apenas ficou. E isso foi tudo.
Ela o amava com intensidade.
E ele a amava também.
Quando j**k recebeu uma proposta de trabalho fora do país, ambos fingiram acreditar que dariam um jeito. Mas a distância, o cansaço e a dor fizeram o que sabiam fazer melhor: afastar.
O término veio sem gritos, mas deixou um silêncio impossível de preencher.
Um ano se passou.
Depois do acidente, Maya passou a medir o tempo de outra forma. As horas não corriam mais; elas se arrastavam. O dia parecia longo demais, a noite silenciosa demais. Ela evitava olhar fotos antigas, mas também não conseguia apagá-las. Havia algo c***l em lembrar e algo ainda pior em tentar esquecer.
Em alguns momentos, Maya se sentia irritada consigo mesma por ainda estar ali, respirando, enquanto tudo o que amava havia desaparecido em segundos. Em outros, sentia medo de admitir que ainda queria viver. Era um conflito constante, travado em silêncio, longe dos olhos de qualquer pessoa.
Ela aprendeu a esconder a dor atrás de gestos automáticos: acordar, trabalhar, responder mensagens com frases curtas. Poucos percebiam o esforço que isso exigia. Poucos sabiam que, por dentro, Maya ainda era aquela garota parada no tempo, presa à lembrança de um aniversário que nunca deveria ter existido.
Quando fechava os olhos, fazia promessas que nunca cumpria. Prometia que seria mais forte, que deixaria o passado onde ele pertencia, que não se culparia mais. Mas a culpa não precisava de convite. Ela sempre voltava.
Ainda assim, em meio ao caos, Maya continuava. Não porque tivesse esperança, mas porque desistir parecia exigir uma força que ela já não tinha. E talvez, lá no fundo, existisse uma pequena parte dela que acreditava que sobreviver também era uma forma de honrar quem havia partido.
Maya nunca conseguiu esquecer o som. Não foi o impacto em si, mas o silêncio que veio depois. Um silêncio pesado, definitivo, como se o mundo tivesse parado por alguns segundos apenas para puni-la. Ela lembrava de cada detalhe daquele dia: o cheiro do bolo ainda fresco na cozinha, as mensagens de parabéns chegando no celular, a pressa dos pais dizendo que voltariam logo. Era seu aniversário. Um dia que deveria ser feliz.
Desde então, datas comemorativas passaram a ser apenas marcas no calendário. Maya aprendeu a sobreviver entre lembranças que insistiam em voltar quando ela menos esperava. Às vezes, bastava atravessar uma rua movimentada ou ouvir uma sirene distante para que o coração acelerasse e a culpa voltasse a apertar. Ela se perguntava, repetidas vezes, se tudo teria sido diferente caso tivesse insistido para que ficassem em casa, caso não tivesse desejado sair para comemorar.
A cidade grande continuava viva ao redor dela, indiferente à sua dor. Pessoas passavam apressadas, rindo, reclamando do trânsito, planejando o futuro — algo que Maya não conseguia mais fazer com naturalidade. Ela seguia em frente por obrigação, não por vontade. O apartamento parecia grande demais para alguém que aprendera a viver com o vazio.
Jack foi quem tentou segurá-la quando tudo começou a desmoronar. Ele apareceu nos dias mais difíceis, trouxe comida quando ela esquecia de comer, permaneceu em silêncio quando falar doía mais do que calar. Maya o amava por isso. Amava o jeito como ele não exigia nada além do que ela podia oferecer naquele momento. Com ele, não precisava fingir força.
Ainda assim, nem mesmo o amor foi capaz de preencher tudo. Maya sabia que carregava algo quebrado dentro de si, algo que j**k não tinha obrigação de consertar. Ela tentava sorrir, tentava acreditar que o tempo faria seu trabalho, mas algumas dores não diminuem — apenas aprendem a se esconder melhor. Naquela noite, ao apagar as luzes e se deitar sozinha, Maya entendeu que sua vida havia se dividido em duas partes: antes e depois daquele aniversário. E nada jamais seria igual novamente.
Naquela noite, Maya permaneceu sentada na beira da cama por longos minutos, encarando o nada. O mundo seguia exigindo que ela continuasse, mesmo quando tudo dentro dela pedia pausa. Ela respirou fundo, como se o ar pudesse organizar o caos que sentia no peito. Não havia respostas, apenas a certeza de que sobreviver também doía.
Ao se deitar, pensou nos pais não como no acidente, mas como eram antes dele: rindo, reclamando, vivendo. Era a única forma de não deixar que a culpa apagasse tudo de bom que ainda existia em suas lembranças. Com os olhos fechados, Maya permitiu-se chorar em silêncio. No dia seguinte, o mundo não mudaria — mas ela acordaria novamente. E, naquele momento, isso já era tudo o que conseguia oferecer.
Antes de adormecer, Maya percebeu que viver não significava estar pronta ou curada. Significava apenas continuar, mesmo com medo, mesmo cansada. O amanhã ainda era incerto, mas existia. E, por mais doloroso que fosse admitir, ela ainda estava ali para enfrentá-lo, um dia de cada vez.
Ela não sabia quando tudo ficaria mais leve, mas decidiu continuar esperando por esse dia, mesmo em silêncio.
E, naquele instante, respirar já era um pequeno ato de coragem em silêncio.