O PORTO DE SPREE NÃO ESQUECE
(Melissa)
Berlim nunca foi gentil comigo.
Ela é fria, dura, cinza e talvez por isso eu a entenda tão bem. Esta cidade não abraça, não consola e não perdoa. Berlim observa. Espera. Cobra. E quem vive nela aprende rápido que sobreviver é uma forma silenciosa de resistência.
O Porto de Spree é onde tudo fica mais claro. O vento corta meu rosto enquanto encaro o rio escuro à minha frente. A água corre devagar, pesada, como se arrastasse segredos antigos demais para serem levados embora. Às vezes, imagino que o Spree guarda memórias. Que não deixa nada desaparecer por completo. Se isso for verdade, então ele se lembra do meu pai.
Meus cabelos castanhos longos, indisciplinados são jogados para trás pelo vento. Eu não me importo. Nunca me importei muito com a aparência, mas sei o que as pessoas veem quando me olham: uma morena de traços firmes, olhos cor de mel que observam mais do que revelam. Aprendi cedo que olhar demais é perigoso. Revelar demais, fatal.
Fecho os olhos por um instante e respiro fundo. O ar gelado entra nos pulmões e arde, mas me mantém acordada. Viva. Presente. Aqui. Sempre aqui. Este lugar nunca fingiu ser bonito. Nunca prometeu finais felizes. O Porto de Spree é honesto e a honestidade dói mais do que qualquer mentira bem contada.
— Você vai se atrasar. A voz da minha mãe surge atrás de mim.
Reconheço o tom na hora. Firme por fora, frágil por dentro.Minha mãe Helena sempre fala assim quando tenta parecer forte por nós duas. Não me viro imediatamente. Continuo encarando a água escura, como se ela pudesse responder perguntas que ninguém mais consegue.
— Ainda tenho tempo. Respondo.
Ou talvez eu só precise de alguns minutos a mais para lembrar por que não posso vacilar agora.
Ouço seus passos se aproximarem e logo sinto sua presença ao meu lado. O vento brinca com seus cabelos claros, já marcados por fios brancos que ela insiste em esconder. Minha mãe envelheceu rápido demais. O luto faz isso. Ele rouba anos, apaga cores, pesa nos ombros até dobrar a postura.
— Esse lugar nunca te fez bem. Ela diz, olhando para o rio comigo.
— Sempre que você vem aqui, volta diferente.
— Esse lugar me lembra da verdade. Sorrio de canto, sem humor.
Ela suspira. Um suspiro carregado de medo, de passado e de coisas que nunca dissemos em voz alta.
— A verdade também pode destruir uma pessoa, Melissa.
Finalmente me viro para ela. Encontro o mesmo olhar preocupado de sempre, o mesmo pedido silencioso para que eu deixe o passado enterrado. Mas o passado nunca ficou no chão. Ele vive em mim. Respira comigo. Caminha ao meu lado todos os dias.
— Eu já estou destruída. digo com calma.
— Só aprendi a conviver com isso.
Minha mãe aperta os lábios, como se quisesse discutir, mas desiste. Ela faz isso desde o dia em que decidiu que eu tinha idade suficiente para saber a verdade. Desde o dia em que pronunciou o nome que mudou tudo, Thomas Montez meu pai.
Meu pai não morreu em um acidente. Não foi azar. Não foi destino. Ele foi assassinado. Executado com frieza. Um recado. Uma ordem cumprida.
O responsável tinha nome, sobrenome e poder suficiente para apagar rastros.
Romero La Rosa Duarte.
Só de pensar nesse nome, algo se revira dentro de mim. Ódio. Dor. E uma escuridão que aprendi a manter bem controlada. Cresci ouvindo o sobrenome Duarte ser sussurrado como uma sentença. Um império erguido sobre sangue. Uma máfia escondida atrás de ternos caros e empresas internacionais.
Der Schattenrat.
O Conselho das Sombras.
— Eu só quero que você viva. Minha mãe diz, mais baixo. — Não que passe a vida inteira presa ao que aconteceu.
Viver.
A palavra soa distante.
— Eu vou viver! Respondo.
— Mas do meu jeito.
Ela me encara como se procurasse a menina que eu fui um dia. A garota que acreditava que justiça existia e que adultos sempre sabiam o que estavam fazendo. Essa menina morreu junto com meu pai.
— Tome cuidado! Ela diz por fim.
— Os Duarte não são pessoas boas.
— Eu sei. Respondo.
Eu sei mais do que ela imagina.
Quando minha mãe se afasta, fico novamente sozinha com o rio e meus pensamentos. Pego o celular no bolso do casaco e olho a hora. Ainda tenho tempo. Tempo suficiente para lembrar de cada detalhe daquela noite.
Eu tinha doze anos.
Lembro do barulho seco da porta sendo aberta com violência. Lembro do cheiro metálico no ar, pesado demais para ser ignorado. Lembro do grito da minha mãe, cortado de forma brutal. Lembro do silêncio que veio depois.
O silêncio é sempre a pior parte.
Por muito tempo, tentei esquecer. Convenci a mim mesma de que o tempo cuidaria de tudo. Mas o tempo não apaga ele apenas revela. Torna tudo mais nítido. Mais c***l.
O plano não nasceu de uma vez. Ele foi se formando lentamente, como uma rachadura que cresce até romper a parede inteira. Cada informação que descobri sobre os Duarte era mais um passo em direção ao inevitável. Romero La Rosa Duarte era intocável. Invisível. Temido. Um homem que mandava matar e dormia tranquilo.
Então surgiu outro nome.
Miguel Duarte.
O filho.
O herdeiro.
O rosto limpo de um império sujo.
O nome dele apareceu pela primeira vez quando eu tinha dezesseis anos. Um empresário jovem, brilhante, respeitado internacionalmente. CEO de empresas espalhadas pelo mundo. Sempre viajando. Sempre distante. Sempre protegido.
Naquele dia, algo despertou em mim.
Se eu não podia alcançar Romero, alcançaria aquilo que ele mais valorizava.
O filho.
Afasto-me do rio com passos firmes. Tudo o que fiz até agora me trouxe até este ponto. Cada escolha, cada silêncio, cada noite em claro. Eu sei o que estou fazendo. Pelo menos é isso que repito para mim mesma quando a culpa ameaça aparecer.
Mitte fica a poucos quilômetros do Porto de Spree, mas parece outro país. O dinheiro muda tudo o ar, os prédios, as pessoas. Ali, o poder anda de cabeça erguida.
E é ali que o império Duarte respira.
Mais tarde, sentada no metrô, observo meu reflexo no vidro escuro. Vejo uma mulher jovem demais para carregar tanto peso. Morena. Olhos cor de mel atentos, calculistas. Expressão controlada. Aprendi a esconder emoções como quem aprende uma língua nova. No começo é difícil, depois se torna natural.
Meu nome é Melissa Montez.
E hoje, eu começo a me aproximar do inimigo.
Ainda não conheço Miguel Duarte pessoalmente. Mas conheço sua rotina, seus hábitos, seus lugares preferidos quando está em Berlim. Ele retorna hoje de viagem. Sempre pontual. Sempre previsível.
Homens como ele acreditam que têm controle sobre tudo.
Isso os torna perigosos.
E vulneráveis.
Quando o metrô para, meu coração acelera. Não é medo. É antecipação. A sensação de algo grande se aproximando. Algo que vai mudar tudo.
Penso no meu pai. No sorriso cansado. Na forma como me chamava de kleine Krieger, pequena guerreira. Ele dizia isso rindo, sem imaginar o quão literal aquelas palavras se tornariam.
— Isso é por você papai. Murmuro.
Saio da estação e caminho pelas ruas de Mitte com naturalidade. Meu plano depende disso. De parecer comum. Inofensiva. Invisível.
O destino ainda não cruzou oficialmente nossos caminhos. Mas está perto. Posso sentir. Como uma tempestade prestes a cair.
Não sei como será o primeiro olhar.
Não sei o que ele vai dizer.
Não sei o que vou sentir.
Só sei de uma coisa.
Quando Miguel Duarte entrar na minha vida, nada sairá ileso.
Nem ele.
Nem eu.