capítulo 1 cidade vale das sombras
— Nicolas, você é o mais velho e responsável pelos seus irmãos. Preciso cuidar dos negócios e, como sempre, a casa e eles ficam sob seus cuidados.
Victor disse isso antes de sair da enorme mansão na cidade de Vale das Sombras, com a expressão séria e a voz firme, como se cada palavra carregasse anos de hábito e obrigação.
Suspirei fundo, tentando empurrar o peso da responsabilidade para trás dos ombros.
— Peter! Draco! Vocês vão se atrasar!
Chamei da sala, minha voz ecoando levemente pelo hall vazio.
O primeiro a descer foi Peter, calmo, pontual, quase elegante em sua postura. Logo atrás vinha Draco, arrastando os pés, com aquela expressão provocadora que sempre parecia gostar de testar minha paciência.
— Você sabe que não é nosso pai, né, Nicolas? — Draco resmungou com desdém, cruzando os braços.
— Entre nós, quem dá mais trabalho sou eu e a Laila… e ela só tem seis anos.
Apertei a mandíbula, já acostumado com suas provocações constantes.
— Você sabe que quando nosso pai não está, eu fico no comando. Agora andem, antes que se atrasem.
Peter passou ao lado de Draco, murmurando com paciência:
— Vamos logo, Draco. Para de provocar o Nicolas… ele é o mais velho.
— Não entendi sua pressa, Peter.
Draco resmungou, mas deu de ombros e seguiu para fora da mansão.
Balancei a cabeça e olhei para as escadas.
— Laila! Vamos, irmãzinha, você também vai se atrasar!
Ela apareceu no topo da escada, os longos cabelos rosa balançando com a brisa que entrava pela janela aberta. Os olhos castanhos brilhavam de um jeito que só ela sabia, doce e intenso ao mesmo tempo. Hoje parecia estar de bom humor… mas conhecendo minha irmã, isso podia mudar num piscar de olhos.
— Onde está o papai? — ela perguntou, descendo os últimos degraus.
— Ele viajou, Laila. Vamos.
O sorriso dela desapareceu por um instante, substituído por uma sombra de desapontamento. Mas logo pegou minha mão com força, como se quisesse que nada naquele dia pudesse mudar o ritmo dela.
Saímos da mansão e o vento frio do Vale das Sombras nos atingiu de imediato. A cidade parecia um cemitério, envolta em névoa quase constante, como se o sol tivesse medo de nascer ali. As ruas silenciosas, as casas envoltas em sombras, até os pensamentos pareciam mais pesados. É fácil entender porque chamam esse lugar assim: o dia nunca nasce completamente.
Laila balançava meus dedos com cuidado.
— Nicolas… por que a Júlia não apareceu hoje? — ela perguntou, com uma inocência que sabia ser apenas fachada.
Olhei para ela de lado, arqueando a sobrancelha.
— Você sabe, Laila… a Júlia era a quarta babá que você e Draco conseguiram colocar para correr.
Ela soltou um sorrisinho travesso, daqueles que qualquer adulto desavisado acharia puro.
— Ah, mas não é minha culpa se elas se assustam fácil… — disse com aquela voz doce, quase angelical.
Mas eu conhecia minha irmãzinha. Vejo a verdade por trás do sorriso, a escuridão delicada que ela tenta esconder. Nada nela é simples ou previsível.
Enquanto isso, longe dali…
— Ravena, já faz uma semana que seus pais morreram… como você está? — Luna perguntou, sua expressão tentando esconder a preocupação, mas falhando miseravelmente.
Respirei fundo, sentindo o cheiro de poeira, madeira velha e saudade no ar.
— Eu estou bem, Luna. — respondi, embora a verdade fosse apenas parcial.
Meus olhos se voltaram para a casa onde cresci, agora silenciosa, a porta entreaberta como se tivesse sido deixada às pressas. O tempo parecia ter parado naquele instante em que tudo se quebrou.
Agora, a casa estava vazia. Vazia de vozes, de vida… vazia de mim.
Um aperto no peito me atingiu, mas mantive um sorriso fraco, aquele que uso para que ninguém afunde comigo.
Luna deu um passo à frente, segurando meu braço com delicadeza.
— Você não precisa ser forte o tempo todo, sabia?
Fechei os olhos por um instante.
— Eu sei… mas se eu parar agora… eu desabo.
O vento frio levantou alguns fios do meu cabelo, e Luna suspirou sem insistir. Ela sabia como eu funcionava: às vezes calada, às vezes intensa demais, sempre tentando manter a vida sob controle, mesmo quando o caos parecia inevitável.
— Ravena… — chamou meu nome com cuidado.
— Já decidiu mesmo ir para Vale das Sombras?
Meu coração bateu mais rápido. Firmei o olhar, sentindo uma determinação que parecia crescer com a dor.
— Sim. — disse, desta vez sem hesitar. — Eu preciso ir. Preciso recomeçar… de algum jeito.
Luna me abraçou, e pela primeira vez desde o enterro, deixei escapar uma lágrima que escondia semanas de dor, medo e saudade.