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De volta...
Eu sigo no mesmo lugar, sim. Na cama do Casandro, coberta com vários edredons, no mesmo ambiente escuro onde parece que a luz do sol supõe sempre uma intromissão.
Ao esfregar meus olhos, borro a minha mão inteira com maquiagem. É óbvio que eu dormi desde ontem, desde o momento em que lhe pedi para descansar.
Por enquanto não há sinal de nenhum dos meus maridos, então me levanto constatando que sigo nua e suja. Vejo que acabo de empurrar uma camisola cor de rosa que estava em cima da cama pomposamente, e que eles deixaram um bolinho industrial e um suco de laranja para eu tomar de café da manhã.
Tusso algumas vezes, caminhando pelo quarto. O Casandro tem uma guitarra bonita vermelha pousada num suporte na esquina, perto da janela, então a toco sorrindo pouco a pouco. Tento conter o meu lado fofoqueiro, mas não consigo. Começo a observar o quarto todo. Ele não tem fotos penduradas, a não ser dele mesmo. Em algumas ele sai tocando guitarra dentro de bares todo suado e lindo.
Interessante. Bem que eu gostaria de participar desse mundo da música.
Olho que em cima da mesinha ainda há restos de Ron, então pego um copo e bebo. É super hidratante e saudável, veja só. Acho que não vou tomar o café da manhã, assim aproveito para jejuar e perder uns quilos.
Vou até o banheiro do quarto dele, e começo a tomar banho. Á água cai quente na minha cabeça enquanto fecho os olhos, pensando quais serão as boas novas do dia quando eu chegar em casa. Não é como se eu levasse um mês fora, mas eu tenho certeza de que me culparão por todas as desgraças do mundo devido a minha ausência.
Ao sair, visto a camisola e arrumo o meu cabelo. Acabo de ver que o Casandro tem um tubo de tinta roxa na gaveta. Mas ele pinta o cabelo de vermelho. Vou perguntar para ele lá embaixo que raios ele está fazendo com isso. É zoado.
Desço as escadas e encontro Casandro e Luíz no sofá da sala, fumando uns cigarros e comendo sushi do JustEat.
─ Eu estava esperando você acordar, rainha. - Diz o loiro, me olhando.
─ Que horas são?
─ 10am. - Responde Casandro.
─ Ah, ok. Escuta, eu tenho que lavar e secar o meu vestido. Hoje à uma eu tenho aula de reforço na Escola.
─ O que você tem? - pergunta o ruivo.
─ Inglês.
Ele assente.
─ Tá certo, então. - Ele pega minha roupa e a coloca na lavadora. Até o programa de lavado e secado acabar são uns oitenta minutos.
Então Casandro volta a se sentar.
─ E aí, você gostou de ontem? - pergunta Luíz.
─ Gostei. Só me sinto um pouco confusa agora. - Digo, me sentando com eles.
─ Confusa como? - segue o loiro.
─ Sei lá. Sobre se foi certo ou errado.
Ouço Casandro dando alguns risinhos abafados.
─ Bem-vinda ao meu mundo. - Ele diz.
─ O que você quer dizer com isso? - ladeio um sorriso.
─ Para mim não há certo nem errado. Há coisas que eu quero fazer e que eu faço. Acho que você deveria aplicar a técnica.
─ Por quê? - pergunto, curiosa.
─ Porque nós não nascemos para agradar ninguém.
─ Vocês vão manter o segredo?
─ Eu prometo. - Responde Luíz, prontamente. ─ Não sou do tipo de cara deselegante, que sai por aí difamando garotas. E menos você. Não é, senhora?
Rio baixinho.
─ Espero que não. E você Casandro?
─ Eu também não. Até porque sou consciente de que uma anedota dessas infla o meu ego e o do Luíz, mas acaba com a sua reputação.
─ Pois é. Ser mulher é f**a.
Os dois riem.
Acabo rindo também. Que modernos.
─ Pode ficar tranquila por nós dois. - Segue o ruivo.
─ Eu sei que ser mulher "é f**a". - diz Luíz. ─ Eu sou um poeta, quero dizer. Do que um escritor precisa?
─ Empatia. - Interrompo.
Luíz abre um sorriso ladeado.
─ É exatamente o que eu ia dizer.
Sorrio.
─ Você vai publicar algum livro?
─ Eu já publiquei algumas poesias, e ganhei alguns concursos. Eu quero sim publicar tudo o que eu escrevo, por que não? Não porque eu ache que vá ser reconhecido, mas porque, quem sabe, daqui uns cem anos...
─ Eu entendo. - Respondo. ─ Daqui uns cem anos as pessoas vão estudar o século zero, e quem sabe a sua novela não cai nas mãos de um bom crítico?
Luíz ri levemente.
─ Exato. Agora as novelas contemporâneas parecem uma grande besteira, mas com o tempo as pessoas vão se dar conta de como era a nossa vida e as nossas preocupações, e vai ser interessante. Você já leu The Yellow Wallpaper?
─ Não. - Respondo, curiosa. ─ É sobre o quê?
─ É um livro que hoje em dia se considera um clássico feminista. É literatura gótica. Uma mulher da época vitoriana sofre de "histeria", o marido é um doutor e ao mesmo tempo é o marido, então ele tem uma dupla autoridade sobre ela, já que é um homem de razão. Para curar a histeria, ela é submetida a um tratamento que se chama "a cura do descanso". Só que ninguém ao redor dela se dá conta de que essa suposta histeria é frustração, já que ela, e todas as mulheres da época, não podiam estudar, nem trabalhar, nem serem elas mesmas, apenas cuidar da casa e obedecer ao pai ou o marido. Ficar o dia inteiro em casa, presas e frustradas, causava agressividade e pensamentos escuros, paranoias, terror. É bem interessante, eu recomendo.
─ Não é muito diferente de agora. - Solto um risinho irônico.
Luíz fica pensativo.
Ele acaba rindo levemente.
─ O que você quer dizer com isso?
─ Quero dizer que eu tenho o exemplo em casa.
─ Ah, sim?
─ Sim, mas deixa para lá. É muito complicado para explicar.
─ Quando você quiser desabafar, minha deusa, eu vou te escutar.
─ Obrigada. - Assinto.
─ Se não for muito pessoal, claro. - Ele sorri.
─ Mm... - Casandro murmura. ─ Você também está presa num conto gótico; é isso, Lynn?
─ Acho que todas as mulheres estamos. - Respondo.
─ Quem sabe todos nós não estejamos? - o ruivo me olha, enigmático.
─ Onde estão seus pais? - Pergunto, rapidamente, por pura intuição.
─ Eles morreram. - Casandro responde. Não é isso gótico o bastante para você?
─ Às vezes eu penso que é o melhor que pode ter te passado.
Jesus Cristo, Malvina Lynn. Não seja tão fria.
─ Quero dizer... - digo, tentando me corrigir.
─ Hm. Tem seu lado bom. Sobretudo nos primeiros meses. Mas depois... Você está vendo essa casa? Essa casa inteira? Ela fica vazia. À noite ela parece assombrada. E não é que haja espíritos nem nada disso. Eu não acredito em todas essas coisas. Ela fica assombrada porque a imaginação de uma pessoa solitária cria monstros.
─ Então... Se eu não vou conseguir ser feliz nem longe dos meus pais, o que é a felicidade?
─ A felicidade é um momento como ontem. - Casandro abre um sorriso m*****o. ─ Onde três almas se unem para viver a vida livremente.
─ Que lindo. - Remarca Luíz, o "crítico literário" e filósofo.
A felicidade para mim é a liberdade de poder ser e fazer o que eu quiser. É uma meta difícil, já que o nosso contexto sociocultural e as nossas obrigações sempre estão nos limitando.
Casandro diz que a liberdade é dada em momentos, como migalhas de pão.
─ Então você tem esse chalé todo para você? - pergunto.
─ Sim. Todo para mim. De dia é ótimo. Mas de noite eu saio, normalmente.
Assim os seus fantasmas não te atormentam, não é mesmo?
─ Como um vampiro. - Remarco.
Os dois garotos riem, provavelmente de algo que só eles entendem.
Estou curiosa para saber quando e como os pais dele morreram. Porque ele segue vivendo nessa casa, porque não se mudou. Mas ainda não há i********e para entrar nesses assuntos tão pessoais, suponho.
─ Casandro, eu peguei esse tubo de tinta roxa no seu banheiro. Você vai pintar o cabelo de roxo?
O ruivo abre um sorriso ladeado, expondo os dentes, se aproxima e pega o tubo, lendo-o.
Ele acaba rindo.
─ Hahaha. Não. Isso eu comprei na sss no mês passado, eu queria vermelho, mas veio errado. Por quê? É você quem quer pintar o cabelo de roxo?
─ Eu sempre quis ter o cabelo azul. Mas nunca pintei, porque se eu precisar procurar trabalho não vão me querer com o cabelo azul.
─ Depende do trabalho que você procurar. - Responde o ruivo.
─ Como assim?
─ Estamos em Barcelona, gatinha. Aqui há lugar para todos. - Ele abre um sorriso charmoso e agita sua perna, com as mãos sobre sua barriga, debruçado em sua poltrona.
─ Você parece positivo. - Sussurro.
─ Eu não sou positivo. Eu sou realista. - Retruca Casandro. ─ Tudo depende, claro, das suas aspirações. Se você quer ser a gerente de uma empresa de gás natural onde só tem gente padrãozinho e p*u no cu, então acho que você não deveria mesmo pintar o cabelo de azul. Mas se você for mais feliz trabalhando num Club noturno, sendo cantora, cozinheira ou atendente de uma loja de roupas alternativas, vai fundo.
─ Vocês acham que eu consigo encontrar um trabalho como decoradora, mesmo sem haver acabado de estudar?
─ Tudo depende do seu talento e da sua capacidade de mentir. - Casandro ri irônico.
─ Mentir sobre as minhas habilidades?
─ Sobre a sua experiência, linda. - Completa Luíz.
Acabo rindo.
─ Vocês mentem muito para conseguir apresentações?
─ No começo nós tínhamos que mentir, sim. - Diz Casandro. ─ Nós dizíamos que já tínhamos tocado em lugares importantes de Madrid, dávamos referências falsas, essas coisas. Logo conseguimos nos apresentar em várias discotecas de luxo aqui em Barcelona, e já não temos que mentir. Mas no começo... tudo é lábia.
─ Entendo. - Murmuro. ─ Mas eu sou tímida...
─ Eu vou te ajudar se você precisar de algo. Eu sou o seu mestre, não? Os mestres ensinam.
Rio levemente.
─ E eu sou o seu mordomo. - Luíz pisca um olho.
─ Vocês não existem!
─ Nós existimos sim, princesa. Então aproveita. - diz o loiro.
Aproveitar.
─ Pode deixar. - Respondo. ─ Nós três vamos viver intensamente.
─ E sem cobranças. - Adiciona Casandro.
Apenas olho para ele, inquisitiva.
─ Vou responder as minhas mensagens no celular, se vocês não se importam.
─ Não, imagina. - Luíz responde.
─ Seu vestido já acabou de secar, vou tirar ele. - Avisa o ruivo, se levantando.
─ Por que vocês são assim comigo, mesmo sem eu ter feito nada de bom por vocês? - pergunto para Luíz, enquanto Casandro não está.
─ Malvina... Sabe... Há pessoas que você olha e sabe que pode confiar nelas. E outras onde acontece todo o contrário. Eu não preciso explicar o porquê. Eu e o Casandro simplesmente não queremos machucar você, e sabemos que você também não vai nos machucar.
─ Você sabe que eu sou boa, mesmo sem me conhecer?
─ Eu te conheço, quando olho nos seus olhos. - O loiro se aproxima, com um pequeno sorriso. Fico corada. ─ Eles brilham cheios de sonhos. - Sinto como ele toca meu rosto até a boca. Me encarando como se pudesse ver minha alma nua.
─ É isso o que eu sou? Uma frustrada?
─ Não. Uma garota que precisa de um cavalheiro e de um guia.
Sorrio.
─ É contraditório, não? Que estejamos falando de feminismo e, ao mesmo tempo, falando que eu preciso de um cavalheiro e de um guia.
─ Amigos soa melhor?
Rio baixinho.
─ Bem melhor. Eu serei vossa amiga. - Digo, com firmeza. ─ É uma pena que eu não tenha nada a oferecer.
─ Nós te ajudamos agora, você nos ajuda depois.
─ Hm. Agora soa mais justo e racional.
Luíz ri, divertido.
─ Malvina... - ele segura a minha mão. ─ Nós três somos artistas. O que temos em comum, é que ambos perseguimos um sonho, solitariamente, um sonho que só a alma individual de cada um de nós acredita ser possível. É isso o que nos une. É isso com que faz com que, sem precisar contar a nossa vida inteira uns para os outros, confiemos mutuamente uns nos outros. E como artistas que somos, estamos atentos em cada detalhe. Eu, por exemplo, vejo cada expressão sua. A maioria é de preocupação, e medo. Outras são desafiantes, como se você não gostasse de perder o seu tempo, e estivesse ansiosa.
Sorrio.
─ Você tem mesmo talento para ler a alma alheia, não é? - olho para baixo. ─ Parece que eu estou num filme. No Brasil seria impossível estudar numa Escola de Arte, onde todas as pessoas são assim diferentes e sensíveis como eu.
─ Nem todas. - Ele solta um risinho. ─ Mas algumas sim. Dá para encontrar pessoas bem parecidas com você sim. Isso é o melhor de tudo. É um privilégio, sem dúvidas.
─ É um privilégio. - Repito. ─ Um privilégio que vocês têm e outras pessoas não. Um privilégio que eu tenho agora.
─ E você não merece esse privilégio?
─ Eu me culpo às vezes. - Sorrio tímida. ─ E também... Há momentos em que eu sinto que não é o meu lugar.
─ Como assim?
─ Você conhece a Antónia?
─ Sim. - Casandro volta, se sentando e me entregando o vestido seco.
Tiro a camisola e o visto na frente deles, sem pudor. Afinal, né, a nudez é algo natural e eles já viram tudo de mim.
─ Ela fica zoando o meu sotaque, e as minhas roupas. Ela se acha superior a mim.
─ Ela é uma retardada. - Responde Casandro.
─ Mas isso me faz sentir insegura. Ela sempre está bem vestida, e parece não ter nenhum problema na vida. Isso me deixa tímida, eu fico pensando que as pessoas tem nojo de mim.
─ Sabe o que as pessoas tem de você, princesa? - pergunta o loiro.
─ O quê?
─ Inveja. - Responde Luíz.
─ Inveja do quê? Por quê?
─ Inveja de você não seguir as regras e mesmo assim ser aceita e ter amigos. - Responde o ruivo.
─ Mas eu sigo as regras.
─ Não. Você tenta. Mas não segue. - Rebate Casandro. ─ Ela provavelmente tem inveja de, mesmo seguindo as regras, mesmo cumprindo todo o padrão de beleza e comportamento que a sociedade e os pais dela exigem em casa... não ser reconhecida como a rainha. Não ser amada por todos.
─ Você é a rainha. - Completa Luíz, brincando.
─ Ela é uma racista maldita. - Solto meus demônios.
Os dois riem.
─ É exatamente o que eu disse. Ela é espanhola, loira, olhos claros e tem dinheiro. Por que uma brasileira ridícula como você recebe mais atenção do que ela? Ela é só uma invejosa. Na cabeça dela ela se esforçou muito para ser a Barbie que ela é. E você não fez nada. Simplesmente existe com o seu cabelo marrom, com seus olhos escuros, com o seu sotaque marcado e com as palavras que você pronuncia errado. Ela é perfeita. Você é imperfeita. Então por que você parece mais feliz e realizada sempre que ela te olha?
Esses caras são profundos. Abro um sorriso ladeado.
─ Porque eu tenho sonhos. - Respondo.
Luíz abre um sorriso.
─ Ela só quer ser aceita por todos e não consegue. É uma pobre alma. Você não quer ser aceita por ninguém, e todos acabam te amando. - Segue o ruivo.
─ Psicologia inversa? - digo, rindo um pouco.
─ Não sei. - diz ele.
Não é o que acontece com o próprio Casandro? Ele é todo fora dos padrões, mas todos querem algo dele, justamente por isso, por ele ser diferente. As pessoas estão cansadas da mesmice e do conservadorismo na verdade.
Começo a olhar o meu celular enquanto os meninos seguem falando das coisas deles, refletindo, se questionando.
É uma conversa de fundo bem interessante. Eu nunca pensei que eu encontraria pessoas com quem falar desses assuntos tão profundos. E a medida em que vou escutando-os, as coisas que eles discutem ficam ainda mais complexas, Luíz vai anotando frases num bloco de notas. Provavelmente se inspirando para criar uma nova letra.
Mãe: "Aonde você está, sua desgraçada? Quando você chegar em casa eu vou matar você."
Eita.
Pff.
Lynn: "Estou na Escola de Arte. Tenho uma aula de recuperação hoje."
Mãe: "Eu já te disse que em primeiro lugar sou eu e o seu irmão. A sua família. Onde você passou a noite ontem? Eu precisei de você."
Lynn: "Eu dormi fora. Você como sempre não avisou que ia precisar de mim e agora me joga a culpa."
Ela nunca avisa.
Desde os dezesseis anos eu tenho que deixar de viver. Engraçado é que quando estou em casa não acontece nada. As desgraças só ocorrem quando eu saio. Tem dias que eu penso "ok, não vou sair, vou ficar inteiramente disponível para vocês Sr. Matias e Sra. Eduarda". E são nesses dias em que eles estão numa boa. As brigas são imprevisíveis.
Mãe: "Quando você vem?"
Lynn: "Às três da tarde estou aí. Um beijo."
Mãe: "Nós vamos ter uma conversa séria."
Lynn: "Ok."
─ Bom, meninos. Vou indo. - Digo, recolhendo todas as minhas coisas.
Casandro me acompanha até a porta e me despeço de cada um com um abraço, antes de procurar o ponto de ônibus mais próximo.