Pré-visualização gratuita 01 - Yolanda
Prólogo — Yolanda
O ar cheira a ferro, suor e medo. Um cheiro que gruda na pele e entra pelo nariz como se quisesse morar dentro de mim. Já perdi a noção do tempo desde que me arrancaram daquela casa velha no interior do México. Desde então, cada dia é uma mistura de vozes em outro idioma, olhares que me despem sem tocar e ordens que não ouso desobedecer.
Hoje, o silêncio do lugar me diz que algo diferente vai acontecer. Sinto no estômago, aquele tipo de sensação que avisa que a vida vai mudar, mas não pra melhor.
Estou sentada num banco de madeira, com os punhos presos por uma cinta fria. O vestido que colocaram em mim é curto demais, grudado no corpo, como se fosse feito pra humilhar. Uma mulher de cabelo vermelho e olhar vazio passa por mim e ajusta o tecido no meu ombro, sem dizer uma palavra. Ela também tem medo. Aqui, todo mundo tem.
Do outro lado da parede, ouço vozes grossas, risadas abafadas, o tilintar de copos. Alguém diz algo em português, entendo poucas palavras, mas o tom é claro: dinheiro.
Dinheiro.
Sou isso agora. Um número. Um valor.
A porta se abre e dois homens entram. Um deles me puxa pelo braço, sem olhar no meu rosto. O outro segura uma arma e diz algo que soa como “sem cena, menina”. Engulo o choro que tenta escapar. Se eu chorar, eles se divertem. Se eu reajo, eles batem. Já aprendi.
O corredor é escuro, iluminado só por lâmpadas amareladas que piscam. Passo por outras portas trancadas e, por um instante, escuto um soluço. Não estou sozinha.
Meu corpo inteiro treme, mas tento manter o que me resta de dignidade. Não quero que eles vejam o medo. Só que é impossível disfarçar. Minhas mãos suam, o coração bate tão rápido que sinto o som dentro da garganta.
A sala do leilão é um porão amplo, úmido, cheio de fumaça de cigarro. As paredes descascadas deixam à mostra o cimento manchado. No centro, um pequeno palco de madeira, iluminado por refletores brancos. Em volta, cadeiras e mesas ocupadas por homens, todos de preto, alguns com anéis grandes, outros com correntes enormes no pescoço. O som das conversas diminui quando me empurram pra frente.
Por um segundo, penso em correr. Mas pra onde? Há seguranças em cada canto, e um deles encosta o cano da arma na minha coluna. O toque gelado me paralisa.
— Anda. — ele rosna no meu ouvido.
Subo os dois degraus com as pernas bambas. O salto alto arranha a madeira e o barulho ecoa no porão inteiro. Um homem de terno escuro, com um microfone nas mãos, sorri pra plateia. É o apresentador. O dono das vozes.
— Senhores... — ele começa, arrastando as palavras — esta é Yolanda. Nova. Vinda do México. Rara, intacta.
O público murmura. “Intacta.” É assim que eles dizem “virgem”.
Sinto o estômago revirar.
O homem segura meu queixo e vira meu rosto pro público. A luz me cega, e tudo que vejo são sombras. Ouço risadas. Alguém assobia. Outro faz uma oferta baixa, só pra provocar.
Quero sumir.
Quero acordar.
Mas a vida não é um pesadelo que se encerra com o abrir dos olhos.
O apresentador começa a contagem.
— Dez mil.
— Quinze.
— Vinte e cinco.
As vozes sobem, uma sobre a outra, como um coro de predadores disputando uma presa.
— Cinquenta mil. — uma voz grave corta o ar, firme, sem hesitação.
O silêncio toma a sala. O apresentador sorri, satisfeito. Procura quem fez o lance. As luzes se movem e param num homem sentado na penumbra. Não o vejo direito, só a silhueta. Ele não parece nervoso. Não se inclina, não cochicha, não bebe. Apenas observa.
— Cinquenta mil, senhores! — o apresentador grita, animado. — Quem dá mais?
O coração dispara. Cada lance é como um golpe.
— Sessenta mil.
— Oitenta.
— Noventa.
Meus olhos ardem. Tento não chorar. Eles adoram ver lágrimas.
— Cem mil. — a mesma voz grave repete, sem levantar o tom.
O apresentador fica mudo por um instante.
Cem mil.
Minha liberdade vale cem mil reais.
Ouço palmas, risadas, murmúrios de aprovação. “Comprada.” A palavra ecoa como sentença. O homem de terno se aproxima e diz algo perto do meu ouvido, em espanhol m*l falado:
— Agora você tem dono, mexicana.
Don... dono.
As palavras me atravessam como lâmina.
Sou puxada pra fora do palco. As vozes atrás de mim se misturam a música alta, a gargalhadas, a apostas de quem será o próximo. Um dos seguranças me empurra num corredor estreito, e o som se apaga atrás da porta.
Caminho cambaleando, tentando entender o que acabou de acontecer. O medo é tão grande que parece outro corpo grudado em mim. Quero gritar, mas o som não sai.
Lá na frente, um homem me espera. Alto, de ombros largos, vestindo preto da cabeça aos pés. Não usa máscara, e isso me assusta mais do que se usasse. O olhar dele é direto, pesado, como se enxergasse tudo que eu tento esconder.
Por um segundo, acho que ele vai sorrir. Mas não. Só me observa, calado, com algo entre raiva e curiosidade.
— É ela? — ele pergunta, sem tirar os olhos de mim.
— A própria — responde o segurança. — A peça mais cara da noite.
O homem dá um passo à frente. O som das botas ecoa no chão.
O coração bate tão forte que me dá enjoo.
Ele não diz nada por alguns segundos. Só me encara.
Sinto vontade de virar o rosto, mas algo me prende.
Talvez o medo. Ou talvez seja o fato de que, pela primeira vez desde que fui trazida pra esse inferno, alguém me olha diferente. Não com desejo, mas com algo que não entendo.
Ele faz um sinal com a cabeça, e o segurança solta minhas amarras. Os pulsos ardem, marcados. Passo a mão devagar, tentando aliviar a dor.
— Você fala português? — ele pergunta.
Falo que sim, quase sem voz.
— Então me escuta — a voz dele é baixa, mas firme — a partir de agora, ninguém toca em você sem a minha ordem.
As palavras me confundem.
Não sei se é ameaça ou promessa.
Ele se vira e começa a andar, e o segurança me empurra pra segui-lo. Cada passo parece pesar toneladas. O corredor parece mais escuro agora, mas não é a luz, sou eu que tô apagando por dentro.
Penso na minha mãe, no cheiro do milho assado nas ruas do México, nas risadas das minhas irmãs. E dói. Dói lembrar que tudo ficou pra trás, que talvez nunca mais veja nada daquilo.
Chegamos a uma porta de ferro. Ele abre, entra primeiro, e só então faz sinal pra eu seguir. O quarto é simples, limpo demais pro lugar onde estamos. Na mesa, uma garrafa de uísque, dois copos e uma arma.
— Senta. — ele diz.
Obedeço.
O silêncio entre nós pesa mais do que as correntes que me trouxeram até aqui.
Não sei o nome dele. Só sei que é o homem que pagou cem mil reais por mim.
E, de algum jeito, sinto que essa noite é só o começo de algo muito pior ou de algo que ainda não tem nome.
Fecho os olhos e respiro fundo.
O medo continua ali, mas junto dele vem uma fagulha estranha, quase imperceptível. Não é esperança, é raiva.
Raiva de estar viva e não poder decidir nada.
Raiva de ser chamada de peça.
Raiva de precisar de um monstro pra sobreviver a outros piores.
Quando abro os olhos, ele ainda está me observando.
E é nesse olhar frio e indecifrável que percebo: minha vida agora pertence a ele.
Mas minha alma…
Minha alma ainda é minha.
Autora!
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