02 - Yolanda

1152 Palavras
Yolanda Narrando Meu nome é Yolanda Ramírez, tenho dezenove anos e nasci em San Miguel del Valle, uma cidade pequena perdida no interior do México. Lá, a vida é simples e dura. As ruas são de terra, as casas têm o mesmo tom de poeira do deserto, e o vento sempre carrega cheiro de milho e fumaça. Cresci ouvindo minha mãe dizer que Deus não dava um fardo maior do que a gente podia carregar, mas o meu, às vezes, pareceu pesado demais. Meu pai adoeceu cedo. Trabalhava na lavoura de pimenta, e o sol queimava mais do que a pele. Um dia ele simplesmente caiu no chão e nunca mais foi o mesmo. Fígado, disseram. Desde então, minha mãe virou o alicerce da casa. Acordava antes do sol e dormia quando a lua já estava alta, lavar vai passava para fora, e ainda cuidava dele e de mim e das minhas duas irmãs pequenas, Isabel e Lucinda. Aos treze anos, eu já ajudava no que podia. Comecei vendendo temperos na feira, com um avental maior que eu e as mãos cheirando a cominho e orégano. Aprendi a sorrir mesmo cansada, porque um sorriso vendia mais que o melhor tempero do mundo. Cada peso que eu ganhava era guardado num potinho de vidro na cozinha, junto com os trocados que minha mãe juntava lavando roupa pros vizinhos. Eu sonhava em mudar de vida. Não queria luxo, só o básico: um teto decente, comida suficiente e ver minhas irmãs estudando. Às vezes, quando o calor era demais, eu fechava os olhos e imaginava um lugar com mar, casas brancas e vento fresco. Nunca pensei que esse sonho ia virar o começo do meu pesadelo. Foi numa sexta-feira, na feira, que tudo começou. O movimento tava fraco, e eu arrumava as sacolas quando uma mulher se aproximou. Tinha sotaque, mas falava espanhol bem. Elegante, de salto, perfume caro, diferente de qualquer um que eu já tivesse visto ali. — Você trabalha aqui todo dia? — perguntou, olhando pras bancas. — Sim, senhora. Desde cedo. Ela sorriu. — Você é educada. E trabalha bem. Tenho uma proposta que pode mudar sua vida. Essas palavras ficaram ecoando na minha cabeça o resto do dia. “Mudar minha vida.” Ela disse que estava contratando jovens pra trabalhar para um Ceo, numa casa grande, de uma família importante. Falou de um salário bom, moradia, comida e até curso de idiomas. Tudo parecia sonho. Ela me elogiou novamente, disse que eu era linda demais para trabalhar na feira. Perguntei: — E eu posso mandar dinheiro pra minha mãe? — Claro, querida. — ela respondeu, sorrindo. — Você vai poder ajudá-los de verdade. Naquela noite, contei tudo pra minha mãe. Ela ficou dividida, medo de me perder, esperança de me ver vencendo. Meu pai só conseguiu dizer: — Se for pra um lugar bom, vai, filha. Faz o que eu não pude. No dia seguinte, a mulher voltou. Tinha um contrato. Um papel cheio de letras pequenas. Disse que era só pra formalizar o trabalho. Eu mäl entendo direito o espanhol escrito, imagina o português. Assinei. Assinei achando que tava assinando meu futuro, mas era o começo do inferno. A viagem começou com promessas. Um carro veio me buscar. Disse que ia me levar até a capital, e de lá eu embarcaria de avião. Mas o carro seguiu por horas por uma estrada deserta. Quando tentei perguntar, o homem no banco da frente respondeu curto: — Fica quieta. Senti o medo subir como febre. Chegamos a uma casa isolada, portão alto, janelas trancadas. Lá dentro, outras meninas. Umas choravam, outras olhavam pro nada. Eu tentei entender, mas ninguém explicava nada. Uma mulher entrou e mandou que a gente entregasse os documentos. — É só pra registro — disse, pegando minha identificação. Nunca mais vi aquele papel. No terceiro dia, colocaram a gente num caminhão, com as janelas cobertas. Disseram que era pro aeroporto. Mas não havia aeroporto nenhum. Só o som do mar e o cheiro de ferrugem. Quando percebi, já era noite. Fomos empurradas pra dentro de algo apertado e metálico, depois entendi que era o porão de um navio. As portas se fecharam e o barulho do motor começou. O chão tremia, o ar era pesado, e alguém chorava num canto. Tentei manter a calma, mas o coração batia rápido demais. Horas depois, acordei assustada com o balanço. Estava deitada num colchão fino, a cabeça latejando. Quando tentei levantar, bati na parede. Era uma cabine pequena, sem janela, com uma lâmpada fraca pendurada por fios. A porta estava trancada. Bati com força. — Tem alguém aí? Por favor, me tirem daqui! Uma voz masculina respondeu do lado de fora: — Cala a boca, garota, ou vai apanhar. As pernas fraquejaram. Encostei na parede e comecei a chorar. Naquele momento, entendi. Eu não ia trabalhar pra um CEO. Eu ia virar escrava. Os dias seguintes foram um borrão. O navio balançava, o ar era quente e úmido. O som do motor nunca parava. De vez em quando, alguém abria a porta pra deixar comida, arroz frio, água suja. Eu perguntava: — Pra onde estão me levando? E eles riam. — Você vai gostar do Brasil, mexicana. O Brasil. Nunca imaginei chegar num país assim, escondida, perdida, sem nome. Na quinta noite, o navio parou. Escutei gritos, barulhos de cordas, gente subindo e descendo. O coração disparou. Quando abriram a porta, a luz me cegou por um instante. Um homem segurou meu braço e me puxou pra fora. O ar fresco bateu no meu rosto. Estava amanhecendo. Pela primeira vez vi o mar, lindo, mas crüel. Tudo que eu tinha imaginado sobre liberdade se perdeu ali, no porto sujo de uma cidade estranha. — Anda logo. — disse o homem, empurrando meu ombro. — Bem-vinda ao Rio de Janeiro. O nome soou como sentença. Me colocaram num carro preto, com vidros escuros. Dirigindo por ruas que eu nunca tinha visto. A cidade acordava, mas eu só conseguia pensar na minha mãe. Será que ela já percebeu que algo deu errado? Será que minhas irmãs estão chorando? Encostei a testa no vidro e fechei os olhos. A sensação era de vazio. Eu estou viva, mas não livre. Respirar doía. Pensar, mais ainda. Prometi a mim mesma que, se um dia conseguisse sair dali, contaria tudo. Gritaria pro mundo ouvir o que fazem com meninas como eu, que só queriam ajudar a família, que acreditaram em promessas bonitas e acabaram presas em jaulas invisíveis. Mas naquele momento, dentro daquele carro, o que existia era o medo. O medo e o som do motor, me levando pra um destino que eu não conhecia. Olhei pro céu cinzento e sussurrei: — Por favor, Dios, no me abandones ahora. “Por favor, Deus, não me abandone agora” E o carro seguiu, descendo as ruas do Rio, até sumir completamente da luz da manhã.
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