Hades Narrando
Meu nome é Hades. Ninguém ousa perguntar se é apelido ou verdade. Eu deixo que a dúvida trabalhe por mim. O silêncio é minha melhor arma.
Passei a vida construindo um império onde cada respiração é vigiada e cada passo precisa ser calculado. O caos é previsível quando você sabe comandá-lo. E eu comando. Na minha certidão de nascimento, está escrito Thiago Silva. É o nome que os meus pais me deram, Hoje tenho trinta e quatro anos. Tenho pele clara e olhos verdes, cabelos castanhos e uma parte do meu corpo é tatuada. 1,91 de altura. Áurea sombria de quem já viveu muita coisa. De quem já viveu o pior dessa vida.
Eu cresci no engenho da rainha, um bairro que fica do lado do complexo, cresci com a minha mãe. Tinha horas que era uma boa pessoa, em outro momento era uma boa bisca. Sou filho único, meu pai nunca tive muito contato. Ele mäl aparecia, e quando vinha, era tarde. Madrugada. Eu não via ele, mas ouvia os gritos da minha mãe, os gemidos. Era uma vulgaridade que eu não entendia.
Eu tinha de doze para treze anos, quando mataram o meu pai. E o BOPE invadiu a minha casa, Não fizeram nada comigo, mas bateram na minha mãe, até ela desmaiar. Quando ela acordou, fez uma mochila e se mandou. Sem nem olhar para trás, me deixou sozinho no mundo.
Por uns dias eu consegui me virar, comia o que tinha. Tentava cozinhar, ia para escola e assistir a TV, até dormir. Uma certa madrugada tava dormindo no sofá da sala, quando ouvi um barulho, pulei assustado. Era dois dos meus vizinhos, me agarraram, rasgaram a minha roupa e abusaram de mim, até eu desmaiar de dor. Do jeito que eles me deixaram eu fiquei, não sei quanto tempo. Mas eu não levantei, nem para comer, nem para beber água. Só me levantei quando uma vizinha me encontrou. Ela me ajudou, em vez de me levar para o hospital, ela me levou para o complexo do alemão. E foi lá que eu descobri, que o temido MM. Era o meu tio.
Ele me acolheu, a esposa dele cuidou de mim. Eles não tinham filhos, acho que era um problema dela, mas ela cuidou de mim como se fosse seu. Foi a minha tia Mônica que me mostrou o amor de mãe. Eu passei a ser a sombra do meu tio, não demorou muito eu tava tomando até o pescoço no submundo. E com 17 anos eu voltei, voltei no engenho da rainha, foi a primeira vez que eu desci o morro. Desci para fazer justiça, e não tive dó, Matei os dois que abusaram de mim, e matei olhando nos olhos deles, enquanto imploravam misericórdia. A partir daí passei a ser ainda mais respeitado.
Fui crescendo cada vez mais, e quando meu tio adoeceu. Ele me colocou em seu lugar, assumi, mostrei para o mundo quem eu sou. Impiedoso, um verdadeiro sem alma. Meu tio faleceu há alguns meses, e hoje eu não divido meu território com ninguém. Minha tia, a qual eu chamo de mãe, ainda está viva, Eu cuido dela com toda a dedicação, que um dia ela cuidou de mim. Além dela, não tenho dedicação a mais ninguém. Nunca amei, Não me prendo a mulheres. Não gasto minha energia com o que não acho necessário.
Hoje recebi um convite, E aceitei por curiosidade. Já fui em leilão de carros, até mesmo de cavalos, tenho haras. Mas leilão de pessoa, é a primeira vez.
A noite sempre tem um cheiro próprio no complexo do alemão.
É mistura de pólvora, fumaça, dinheiro sujo e medo.
O medo tem um perfume, aprendi a reconhecê-lo de longe. Ele cola na pele de quem entra no meu território sem saber onde está pisando.
Naquela noite, o salão improvisado no galpão no porto fervia de tensão. As luzes eram baixas, os seguranças espalhados nos pontos estratégicos. Eu observava tudo de cima, com o copo de uísque na mão e o olhar frio como aço.
— Tudo sob controle, chefe — murmurou Falante, meu braço direito, encostado no parapeito.
Assenti, sem tirar os olhos do movimento lá embaixo. O dinheiro passava de mão em mão como corrente elétrica. Gente importante, engravatada, de moral duvidosa, fingindo que o luxo escondia a podridão.
Era assim que o submundo respirava: comprando silêncio, vendendo poder.
Mas algo naquela noite me incomodava. Não era medo, faz tempo que não sei o que é isso. Era um pressentimento. A sensação de que alguma coisa prestes a acontecer poderia mudar o equilíbrio.
A cortina se abriu e o murmúrio cessou.
O leiloeiro fez sinal. Luz sobre o centro.
E então eu a vi.
Ela entrou devagar, os pulsos marcados, o olhar preso no chão. Morena clara, cabelos longos, castanhos, pele tremendo sob a luz forte.
Não era a primeira vez que eu via alguém assim, mas havia algo de diferente.
Ela ergueu os Olhos azuis.
De um azul que não pertencia àquele lugar.
Havia medo, sim. Mas também raiva. E essa combinação, é perigosa.
Falante falou algo ao meu lado, mas não ouvi.
Meu olhar ficou preso nela, nos movimentos tensos, nos lábios apertados tentando conter o choro.
— Quem é ela? — perguntei, a voz saindo baixa, quase rouca.
— Nova. Chegou do México. Disseram que é virgem — respondeu ele, consultando o tablet onde controlava as fichas.
— Nome?
— Yolanda — ele pausou, tentando ler o sobrenome difícil — Ramirez, algo assim.
O som do nome ecoou na minha cabeça. Não sei explicar o motivo, mas senti algo dentro de mim se mover.
Não piedade. Nunca piedade.
Era curiosidade. E curiosidade, no meu mundo, é veneno.
O leiloeiro começou a gritar os lances.
As vozes se atropelavam.
A cada valor anunciado, meu sangue parecia pulsar mais devagar, como se tudo ao redor perdesse importância.
Não pensei, e eu nunca ajo sem pensar.
Levantei o queixo, sinalizei discretamente com o copo.
Silêncio.
O leiloeiro gaguejou, olhou pra cima, e a tensão tomou o salão.
— Senhoras e senhores, o lance é de cem mil. Vendido.
O som do martelo ecoou.
Ela ergueu o olhar novamente, direto pra mim.
E naquele instante, eu soube que cometi um erro que custaria caro.
Não era desejo. Era algo pior: descontrole.
Aquela garota não fazia ideia de quem eu era, nem do que significava estar sob meu domínio.
Desci as escadas, cada passo calculado, o barulho das botas sobre o metal ecoando no galpão.
Quando cheguei perto, os seguranças recuaram sem que eu precisasse falar.
Fiquei a poucos metros dela.
— Olha pra mim — ordenei.
Ela hesitou. Depois obedeceu.
O olhar dela não tinha súplica. Tinha fogo.
— A partir de agora, você responde a mim. — Minha voz saiu firme, sem espaço pra discussão. — Entendeu?
Nenhuma resposta.
Um segundo de silêncio que me irritou mais do que qualquer palavra.
Segurei seu queixo, forçando-a a me encarar.
— Eu perguntei se entendeu.
— Sí... señor.
O sotaque cortou o ar.
E algo dentro de mim trincou. Soltei devagar, mantendo o controle. Falante assumiu o volante, sem dizer uma palavra. Eu sentei no banco de trás com ela, vamos direto para o complexo.
— Leva ela pra um dos quartos de hóspedes. Quero um médico, banho e roupa decente. — pausei — E ninguém toca nela.
Falante arqueou a sobrancelha.
— Chefe, isso não costuma ser o protocolo.
Olhei pra ele, e bastou.
— Eu mudei o protocolo.
Ele engoliu seco e saiu.
Fiquei sozinho, observando enquanto ela acompanhava ele.
Cada passo dela deixava um rastro estranho, uma fissura no meu autocontrole.
Não era por ela. Era pelo que ela representava: o erro que eu jurei nunca cometer.
Eu sempre acreditei que tudo pode ser comprado. Lealdade, silêncio, medo.
Mas olhando praquela garota sendo arrastada entre sombras e luxo, algo me dizia que nem todo preço é suficiente.
Subi pra minha sala.
O relógio marcava quase três da manhã.
O Morro dormia, mas o submundo continuava acordado, alimentado pela ganância e pela violência.
Olhei pela janela, Meu império. Meu inferno segue intacto.
Apertei o punho, tentando afastar o incômodo que insistia em crescer.
Eu sou Hades, o inferno e o inferno não sente.
Mas nessa noite, pela primeira vez em muitos anos, senti.
E odiei cada segundo disso.