Hades Narrando
O sol mäl tinha nascido quando voltei, tava resolvendo umas paradas no QG.
A casa ainda estava silenciosa, só o barulho distante da quebrada subindo o morro.
Passei pelos vapores de seguranças que desviaram o olhar, ninguém fala comigo sem ser chamado.
Subi as escadas, só queria um minuto de paz, a porta do quarto dela estava entreaberta. Parei por um segundo, sem entender o motivo, e depois empurrei.
O cheiro do quarto era diferente do resto da casa, sabonete e medo.
Ela estava sentada na beira da cama, o cabelo ainda úmido, a pele marcada pelo cansaço. Tinha uma bandeja de comida intocada ao lado, e os olhos fixos na janela, como se calculasse a distância até a liberdade.
— Não adianta — falei, a voz baixa, firme. — Lá fora tem gente armada. E ninguém atravessa aquele portão sem a minha permissão.
Ela se virou devagar.
Olhos azuis. Frios e quentes ao mesmo tempo.
O tipo de olhar que te desafia sem dizer uma palavra.
— Vai continuar muda? — perguntei.
Ela respirou fundo, ergueu o queixo.
— Qué quieres de mí?
O sotaque arrastado soou bonito demais praquele lugar.
Cruzei os braços.
— Quero obediência. É simples. — Ela franziu o cenho.
— Y si no quiero?
Sorri de canto, sem humor.
— Então vai aprender a querer. De um jeito ou de outro, todo mundo aprende.
Dei um passo à frente, e ela recuou até encostar na parede.
Não gritou, não implorou, só me encarou.
E essa teimosia me irrita mais do que medo.
— A partir de agora, você vive sob as minhas regras. — Minha voz saiu dura, cortante. — Não sai desse quarto sem ordem. Não fala com ninguém sem permissão. E, principalmente, não me desafia. Entendeu?
Silêncio. A raiva dela tremia no ar, quase palpável.
— Entendeu? — repeti, mais baixo.
— Sí… señor.
O som me atingiu como uma lembrança, do leilão, daquele olhar que me feriu mais do que bala.
Abaixei o rosto, buscando o controle.
— Boa menina — murmurei, virando as costas.
Mas antes que eu saísse, ela falou, num tom firme, carregado de orgulho quebrado:
— No soy tuya.
( Não sou tua.)
Parei. Por um segundo, o silêncio pareceu pesar o dobro.
Virei o rosto devagar, só o suficiente pra encarar ela de novo.
— Ainda não entendeu o lugar onde tá, mexicana — falei, frio, sem elevar a voz. — Aqui, tudo e todos têm dono.
Ela manteve o olhar firme, e pela primeira vez em anos, senti algo me atravessar.
Não era raiva. Era desconcerto.
Fechei a porta devagar, trancando por fora. O clique do trinco ecoou como sentença.
E, mesmo assim ainda senti o peso do olhar dela queimando nas minhas costas.
Tomei banho frio e demorei no chuveiro mais do que de costume. A água lava a sujeira, mas não apaga o resto. Vesti a roupa limpa, o perfume leve, ajeitei o cabelo e saí pro andar de baixo como se fosse mais um dia comum, porque no meu mundo, rotina é poder.
Na cozinha, o café estava do jeito que gosto: forte, sem afetação. Sentado à mesa, peguei o copo, dei um gole largo e deixei o silêncio preencher o ambiente. Tudo certo. Tudo alinhado. A casa obedecia meu ritmo, os homens no posto e eu no centro. Nada deveria desviar isso.
Foi quando a porta arrebentou com a entrada da D. Mônica a minha tia, pequena, mas parece um furacão, cinquenta e poucos anos comprimidos num metro e meio de mulher que impõe medo só de cruzar o corredor. Ela não pediu licença. Nunca pede. Veio direta, olhos de fogo.
— Que história é essa que você comprou uma garota, Thiago? — ela cuspiu, sem rodeio. — Você perdeu o juízo, menino? Isso não se faz. Devolve. Isso é gente, Garoto, não é mercadoria.
Fiquei olhando pra ela, o café na mão, o rosto calmo. A casa inteira congelou por um segundo. Falante apareceu na outra ponta da escada, curioso. Os outros fingiram que não ouviam, mas todo mundo ouviu.
— Foi quem que falou? — perguntei, deixando a voz sair lenta, pesada. — Foi o falante? Só pode ser língua solta do Carälho. Eu vou arrancar a língua do desgraçado que falou.
Ela arregalou os olhos, como quem já conhecia a minha pressão, mas não o suficiente pra recuar. A única pessoa que me desafia, e ela sabe que pode. Também é a única pessoa que eu obedeço.
— Não interessa quem falou. Isso é errado. Você não é Louco pra comprar gente. Devolve. — A voz dela tremia de raiva e de vergonha ao mesmo tempo.
Nesse instante, ela olhou por cima do meu ombro e viu. Segui o movimento do olhar pra escada. Parei também. E ali estava ela: Yolanda. Vestia uma camiseta minha velha, daquelas que eu uso pra dormir, rosada, larga, que caía no ombro e marcava o contorno do peïto de um jeito que me deu um choque seco no estômago. Não vou mentir: olhei. A cena me desestabilizou num segundo que me deu raiva de mim mesmo.
— Água, por favor, me duele la cabeza — ela falou baixo, em espanhol.
Minha tia como sempre, foi logo se oferecendo, com aquele jeito que tem de transformar afeto em ordem.
— Eu cuido dela. Deixa que eu cuido. — disse ela, calma, prática. — Não fica assim, filha. Se está doente, vamos tratar. Mulher, a gente cuida, ouviu Garoto.
A voz da minha tia tinha aquele poder antigo: apaziguar tempestade. Eu senti os ombros afrouxarem por um segundo. Não era fraqueza. Era cálculo. A raiva que tinha nascido do meu próprio desconforto precisava ser domada, colocada no lugar certo.
— Não precisa, tia — falei num tom curto, cortando o calor que a discussão vinha gerando. — Ela sabe se cuidar. É só tomar um remédio que passa.
— Você não entende, Thiago — rebateu a tia, cortando — Você não pode simplesmente tratar essa garota como mercadoria, ela é linda, Parece uma boneca. Mas não esqueça, ela é um ser humano, não uma peça de enfeite da sua casa.
O silêncio veio de novo, pesado. Yolanda ficou ali, encolhida na camiseta alheia, pedindo água como quem pede ar. Minha tia devia ter visto o que vi: não era só uma garota vulnerável. Havia um fogo contido naquele olhar azul que me perfurou antes mesmo dela abrir a boca direito.
Eu me levantei, fui até a geladeira e peguei uma garrafa de água, peguei um copo limpo no armário. E também uma caixa de analgésico. Coloquei tudo em cima da mesa. E falei dando uma ordem.
— Toma o remédio e senta aí, vai comer e depois dormir.
Minha tia me olhou, parecia querer me fulminar. Mas dei de ombros, minha casa, minha compra. Minhas regras.