04 - Hades

1144 Palavras
Hades Narrando O sol mäl tinha nascido quando voltei, tava resolvendo umas paradas no QG. A casa ainda estava silenciosa, só o barulho distante da quebrada subindo o morro. Passei pelos vapores de seguranças que desviaram o olhar, ninguém fala comigo sem ser chamado. Subi as escadas, só queria um minuto de paz, a porta do quarto dela estava entreaberta. Parei por um segundo, sem entender o motivo, e depois empurrei. O cheiro do quarto era diferente do resto da casa, sabonete e medo. Ela estava sentada na beira da cama, o cabelo ainda úmido, a pele marcada pelo cansaço. Tinha uma bandeja de comida intocada ao lado, e os olhos fixos na janela, como se calculasse a distância até a liberdade. — Não adianta — falei, a voz baixa, firme. — Lá fora tem gente armada. E ninguém atravessa aquele portão sem a minha permissão. Ela se virou devagar. Olhos azuis. Frios e quentes ao mesmo tempo. O tipo de olhar que te desafia sem dizer uma palavra. — Vai continuar muda? — perguntei. Ela respirou fundo, ergueu o queixo. — Qué quieres de mí? O sotaque arrastado soou bonito demais praquele lugar. Cruzei os braços. — Quero obediência. É simples. — Ela franziu o cenho. — Y si no quiero? Sorri de canto, sem humor. — Então vai aprender a querer. De um jeito ou de outro, todo mundo aprende. Dei um passo à frente, e ela recuou até encostar na parede. Não gritou, não implorou, só me encarou. E essa teimosia me irrita mais do que medo. — A partir de agora, você vive sob as minhas regras. — Minha voz saiu dura, cortante. — Não sai desse quarto sem ordem. Não fala com ninguém sem permissão. E, principalmente, não me desafia. Entendeu? Silêncio. A raiva dela tremia no ar, quase palpável. — Entendeu? — repeti, mais baixo. — Sí… señor. O som me atingiu como uma lembrança, do leilão, daquele olhar que me feriu mais do que bala. Abaixei o rosto, buscando o controle. — Boa menina — murmurei, virando as costas. Mas antes que eu saísse, ela falou, num tom firme, carregado de orgulho quebrado: — No soy tuya. ( Não sou tua.) Parei. Por um segundo, o silêncio pareceu pesar o dobro. Virei o rosto devagar, só o suficiente pra encarar ela de novo. — Ainda não entendeu o lugar onde tá, mexicana — falei, frio, sem elevar a voz. — Aqui, tudo e todos têm dono. Ela manteve o olhar firme, e pela primeira vez em anos, senti algo me atravessar. Não era raiva. Era desconcerto. Fechei a porta devagar, trancando por fora. O clique do trinco ecoou como sentença. E, mesmo assim ainda senti o peso do olhar dela queimando nas minhas costas. Tomei banho frio e demorei no chuveiro mais do que de costume. A água lava a sujeira, mas não apaga o resto. Vesti a roupa limpa, o perfume leve, ajeitei o cabelo e saí pro andar de baixo como se fosse mais um dia comum, porque no meu mundo, rotina é poder. Na cozinha, o café estava do jeito que gosto: forte, sem afetação. Sentado à mesa, peguei o copo, dei um gole largo e deixei o silêncio preencher o ambiente. Tudo certo. Tudo alinhado. A casa obedecia meu ritmo, os homens no posto e eu no centro. Nada deveria desviar isso. Foi quando a porta arrebentou com a entrada da D. Mônica a minha tia, pequena, mas parece um furacão, cinquenta e poucos anos comprimidos num metro e meio de mulher que impõe medo só de cruzar o corredor. Ela não pediu licença. Nunca pede. Veio direta, olhos de fogo. — Que história é essa que você comprou uma garota, Thiago? — ela cuspiu, sem rodeio. — Você perdeu o juízo, menino? Isso não se faz. Devolve. Isso é gente, Garoto, não é mercadoria. Fiquei olhando pra ela, o café na mão, o rosto calmo. A casa inteira congelou por um segundo. Falante apareceu na outra ponta da escada, curioso. Os outros fingiram que não ouviam, mas todo mundo ouviu. — Foi quem que falou? — perguntei, deixando a voz sair lenta, pesada. — Foi o falante? Só pode ser língua solta do Carälho. Eu vou arrancar a língua do desgraçado que falou. Ela arregalou os olhos, como quem já conhecia a minha pressão, mas não o suficiente pra recuar. A única pessoa que me desafia, e ela sabe que pode. Também é a única pessoa que eu obedeço. — Não interessa quem falou. Isso é errado. Você não é Louco pra comprar gente. Devolve. — A voz dela tremia de raiva e de vergonha ao mesmo tempo. Nesse instante, ela olhou por cima do meu ombro e viu. Segui o movimento do olhar pra escada. Parei também. E ali estava ela: Yolanda. Vestia uma camiseta minha velha, daquelas que eu uso pra dormir, rosada, larga, que caía no ombro e marcava o contorno do peïto de um jeito que me deu um choque seco no estômago. Não vou mentir: olhei. A cena me desestabilizou num segundo que me deu raiva de mim mesmo. — Água, por favor, me duele la cabeza — ela falou baixo, em espanhol. Minha tia como sempre, foi logo se oferecendo, com aquele jeito que tem de transformar afeto em ordem. — Eu cuido dela. Deixa que eu cuido. — disse ela, calma, prática. — Não fica assim, filha. Se está doente, vamos tratar. Mulher, a gente cuida, ouviu Garoto. A voz da minha tia tinha aquele poder antigo: apaziguar tempestade. Eu senti os ombros afrouxarem por um segundo. Não era fraqueza. Era cálculo. A raiva que tinha nascido do meu próprio desconforto precisava ser domada, colocada no lugar certo. — Não precisa, tia — falei num tom curto, cortando o calor que a discussão vinha gerando. — Ela sabe se cuidar. É só tomar um remédio que passa. — Você não entende, Thiago — rebateu a tia, cortando — Você não pode simplesmente tratar essa garota como mercadoria, ela é linda, Parece uma boneca. Mas não esqueça, ela é um ser humano, não uma peça de enfeite da sua casa. O silêncio veio de novo, pesado. Yolanda ficou ali, encolhida na camiseta alheia, pedindo água como quem pede ar. Minha tia devia ter visto o que vi: não era só uma garota vulnerável. Havia um fogo contido naquele olhar azul que me perfurou antes mesmo dela abrir a boca direito. Eu me levantei, fui até a geladeira e peguei uma garrafa de água, peguei um copo limpo no armário. E também uma caixa de analgésico. Coloquei tudo em cima da mesa. E falei dando uma ordem. — Toma o remédio e senta aí, vai comer e depois dormir. Minha tia me olhou, parecia querer me fulminar. Mas dei de ombros, minha casa, minha compra. Minhas regras.
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