Capítulo 2

1941 Palavras
Marco O uísque queima ao descer, mas eu acolho a dor. Vinte e quatro horas desde a morte de Alessandro, e o peso das promessas não ditas repousa sobre meus ombros como uma mortalha. Atrás da minha mesa de mogno, observo o horizonte de Manhattan através do vidro à prova de balas. A cidade brilha como cacos de vidro sob a noite, bela e c***l. O copo de cristal na minha mão é o terceiro da noite — ou talvez o quarto. Perdi a conta, mas nunca perco o controle. Controle. É o que separa homens como eu de bandidos comuns. É o que me manteve vivo por quinze anos à frente deste império, o que transformou o nome Mancini em uma lenda. Mas ver meu melhor amigo morrer naquela cama de hospital, ver a luz se apagar dos seus olhos enquanto eu não podia fazer nada... há dores que nem o poder consegue evitar. O gelo tilinta no copo, e minha mão se fecha em torno dele. Eu não deveria tê-lo deixado ir sozinho àquela reunião. Sabia que algo estava errado — o modo como ele insistiu em encontrar os Grecos sem apoio, como vinha organizando tudo nas últimas semanas. Como se soubesse. — Outro relatório, chefe. — Daniel surge das sombras, como sempre faz. Silencioso, preciso. Meu capitão mais leal coloca uma pasta parda sobre a mesa. Seu rosto carrega as linhas de quem já viu demais. — Imagens de vigilância confirmam. Foi a família Greco. Meu maxilar se contrai até o gosto metálico do sangue se espalhar na boca. Eu avisei Alessandro. Três semanas atrás. Mostrei os movimentos dos Grecos, os riscos. Mas ele foi teimoso. — “Já lidei com gente como eles antes”, — disse, desdenhando da ameaça. Agora ele está morto. E sua filha... Cristo. Rebecca. A imagem dela no hospital me persegue. Cabelos escuros e selvagens, olhos castanhos devastados. Um eco da mãe, antes de Katherine se transformar na socialite amarga e obcecada que é hoje. Mas onde a beleza de Katherine sempre foi cuidadosamente moldada, a de Rebecca é crua. Autêntica. Dolorosamente real. Ela não percebe o perigo que representa — e é isso que a torna ainda mais perigosa. — Qual é a nossa exposição? — pergunto, mantendo a voz firme, mesmo quando o estômago se contorce. Anos de prática me ensinaram a esconder tudo — inclusive o desespero. — Eles estão se movimentando nos territórios Maranzanos. Sem Alessandro... — Daniel hesita. — Dário já está sendo procurado para possíveis alianças. Algumas famílias acham que os Maranzano estão vulneráveis. — Eles estão. — Levanto-me e caminho até a janela. O reflexo que me encara é o de um homem no auge do poder — 38 anos, fios grisalhos nas têmporas, presença imponente. Mas nem toda autoridade do mundo salvou meu melhor amigo. — E Rebecca? O silêncio de Daniel diz mais do que ele gostaria. — Tem havido rumores. — Ele pigarreia, desconfortável. — Nicolai Greco está perguntando por ela. Dizem que quer forçar um casamento. Para garantir o controle do patrimônio dos Maranzano. O copo se parte na minha mão. Cacos se cravam na pele, e o sangue pinga sobre o carpete. Eu m*l sinto a dor. Tudo que consigo ver é Nicolai Greco colocando as mãos nela. Um monstro com duas esposas mortas em cinco anos — ambas chamadas de “acidentes”. Um casamento com ele seria uma sentença de morte. Meu celular vibra. Mensagem de Dário: Precisamos discutir o futuro de Rebecca. Os abutres estão rondando. Fecho a mão ensanguentada com força. A última conversa com Alessandro me invade como um filme projetado em minha mente: o terraço do complexo Mancini, charutos cubanos, uísque envelhecido, o sol morrendo no horizonte. Ele estava calmo. Quase resignado. — Se algo me acontecer, Marco... proteja-a. Rebecca é tudo que há de bom em mim. Não deixe que o nosso mundo destrua isso. — Você sabe que sim — prometi. Sem imaginar que teria que cumprir aquelas palavras tão cedo. Sem imaginar o que isso custaria. Daniel pigarreia. Seu olhar cai na minha mão ferida, mas eu o ignoro. A dor física é insignificante comparada à culpa. Uma batida leve na porta corta o silêncio. — Sr. Mancini? — minha assistente espreita, a máscara profissional vacilando ao ver o sangue. — A funerária está pronta para revisar os preparativos. E... a Srta. Maranzano está aqui. Levanto a cabeça, alerta. — Rebecca? — O nome tem um peso novo. Mais denso. Mais definitivo. — Mande-a entrar. Enrolo um lenço na mão ensanguentada e ajeito a gravata. Quando a porta se abre, o mundo muda de eixo. A luz fria do corredor a molda por um instante. Meu Deus. Ela trocou as roupas sujas por um vestido preto simples que realça a palidez da pele. Os cabelos escuros caem em ondas sobre os ombros — da cor de Alessandro, com os cachos rebeldes da mãe. Ela está diferente, e ao mesmo tempo, assustadoramente igual. Uma mistura de dor, força e algo selvagem que não se dobra. Tudo nela grita contradição: a alma artística presa num luto sufocante, a menina transformando-se diante dos meus olhos. A sensualidade inconsciente que ela carrega me atinge como uma lâmina, afiada, perigosa. Eu a vi crescer. Sempre de longe. Sempre protegendo. Nunca... nunca me permitindo pensar nela assim. Mas agora, cada batida do meu coração é um lembrete brutal: a garota que prometi proteger é a mulher que pode me destruir. E talvez eu já esteja quebrado demais para resistir. Ela parece perdida no meu enorme escritório — como uma pomba que se escondeu num ninho de falcão. O espaço ao seu redor é todo madeira escura e couro, armas disfarçadas de decoração, poder camuflado sob o verniz do bom gosto. Só há uma foto na sala — uma imagem de grupo dos homens Mancini. Meu pai, Giuseppe Mancini, está no centro, imponente, com uma das mãos no meu ombro. Meu Deus, eu não devia ter mais de quatorze anos ali. Mantenho o porta-retrato ligeiramente virado para longe da minha mesa, mas noto o olhar de artista dela o captando, catalogando-o junto com todo o resto. Imagino o que ela vê — a ostentação calculada de riqueza e influência ou o vazio sufocante por trás de tudo isso? Será que percebe como a mão do meu pai no meu ombro parece menos orgulho e mais posse? Há uma firmeza de aço em sua postura quando ela encontra meu olhar, e por um instante, vejo Alessandro em seu maxilar tenso. A força silenciosa que ela provavelmente nem sabe que carrega pulsa sob a pele. Isso faz meu peito doer com algo perigosamente próximo da ternura. Seus olhos castanho-esverdeados, ainda avermelhados de tanto chorar, brilham com um fogo que me atrai como mariposa à chama. — Sr. Mancini — ela diz, a voz firme apesar do que carrega, e meu corpo me trai quando ela se aproxima — o coração dispara, os músculos se enrijecem como se eu estivesse prestes a entrar numa briga. Mas a única guerra acontecendo aqui é dentro de mim. Ela se acomoda na beirada de uma das minhas cadeiras de couro, com a postura ereta herdada dos anos de treino da mãe. O vestido sobe um pouco, revelando um pequeno calo artístico no polegar — um detalhe quase invisível, mas que diz muito. Uma imperfeição tão singela. E, ainda assim, tão perigosa por tudo o que desperta em mim. — Minha mãe disse que você está cuidando dos preparativos do funeral. — Sua voz está rouca de tanto chorar, e isso me atinge com mais força do que qualquer bala já poderia. Alessandro me mataria se pudesse ver dentro da minha cabeça agora. — Seu pai teria preferido... — começo, mas ela me interrompe. — Meu pai queria me ver me formar na primavera. — Sua voz falha, e o som me atravessa como lâmina. — Queria me levar ao altar algum dia. Queria envelhecer e mimar os netos. Mas o que ele queria não importa mais, não é? A acusação em seu tom é como uma faca entre as costelas. Ela tem razão. Eu falhei. Alessandro morreu porque eu não fui rápido o suficiente, não fui esperto o suficiente. Não vi a traição se aproximando até ser tarde demais. Mas não falharei com ela. Mesmo que isso signifique que ela venha a me odiar. Enquanto ela fala, flashes do passado me invadem como fotografias: seu sexto aniversário, mostrando orgulhosa sua primeira pintura; sua formatura do ensino médio, onde assisti da última fileira, escondido; a exposição do mês passado, na qual estive em silêncio, observando seu talento florescer em meio a um mundo que quer esmagar tudo que é belo. O sol já se foi, deixando sombras densas sobre meu escritório. Uma mecha escapa de seu coque e cai sobre o rosto. Minhas mãos desejam afastá-la, mas cerro o punho, sentindo os cortes ainda frescos da taça estilhaçada. Tenho quase o dobro da idade dela. Sou o melhor amigo do pai dela. O homem que está prestes a destruir tudo o que ela conhece em nome da proteção. Meu telefone vibra de novo. Outra mensagem de Dário . Nicolai Greco vai fazer a jogada dele hoje à noite. O tempo acabou. A raiva que me consome ao pensar em Nicolai sequer olhando para ela me assusta. Já matei homens por menos. O sentimento que vibra no meu peito vai além da promessa feita ao pai dela. É algo que me queima. Algo impuro. Mais um pecado. Ela tem quase metade da minha idade. É filha do meu melhor amigo. A única coisa pura que ainda resta neste mundo. Olho para Rebecca — de verdade. Tão jovem, feroz, e inconsciente do abismo que a rodeia. A tinta ainda mancha seus dedos — azul-escuro, como os hematomas que Nicolai deixaria se a tocasse. Ela não sabe o que homens como ele fazem com coisas bonitas. Ela não tem ideia da selvageria que engole meninas como ela vivas. Mas Deus me perdoe, minha mente não para de registrar cada mudança nela. A tatuagem discreta no ombro — quando foi que ela fez isso? O jeito como prende o cabelo atrás da orelha quando está nervosa, expondo o pescoço delicado. A curva dos cílios contra a pele quando abaixa os olhos. Passei anos protegendo-a das sombras. Agora vou arrastá-la para dentro delas. Ela se remexe, e o perfume de jasmim me alcança. O mesmo que ela começou a usar aos dezoito anos. Lembro exatamente. Lembro de como aquele aroma mudou tudo. Como suavizou suas feições, como me fez enxergá-la não mais como a filha de Alessandro, mas como mulher. Naquele momento, tomo minha decisão. Penso na promessa. Penso em Nicolai. Penso em tudo o que está prestes a ruir. Ela pode me odiar pelo que vou fazer, mas estará viva para isso. É melhor o ódio dela do que o caixão. — Sente-se, Rebecca — digo, a voz baixa, sem espaço para discussão, enquanto volto para trás da mesa. — Há algo que precisamos discutir... sobre os últimos desejos do seu pai. O crepúsculo mergulha o cômodo em penumbra, e por um instante, quase posso fingir que não vejo o medo nos olhos dela. As mãos dela tremem quando se senta diante de mim. E mesmo assim, há uma centelha no seu olhar — como se, no fundo, ela soubesse que sua vida está prestes a mudar para sempre. Passei anos afastando o mundo dela do nosso. Agora, para salvá-la, terei que trazê-la direto para o centro dele. Deus me perdoe pelo que estou prestes a fazer.
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