Capítulo 3

1824 Palavras
Beca As palavras ecoam na minha cabeça como uma sentença: — Seu pai arranjou nosso casamento antes de morrer. Encaro Marco do outro lado da sua mesa imensa, tentando encontrar qualquer indício de ironia, uma expressão no rosto dele que desminta a seriedade da frase. Mas não há nada — apenas a firmeza glacial no olhar de um homem que está acostumado a dar ordens que decidem a vida ou a morte de alguém. O horizonte de Manhattan, que se estende através da parede de vidro atrás dele, se turva enquanto as lágrimas ameaçam cair. Mas eu me recuso a chorar. Não aqui. Não na frente dele. Não nesse escritório que exala poder antigo, com suas paredes de madeira escura, couro italiano e armas que se disfarçam de arte moderna. Meu estômago se revira. Menos de 48 horas atrás, eu estava no meu estúdio, misturando pigmentos para a defesa da minha tese. Agora, estou diante do monstro do qual meu pai sempre me protegeu. O melhor amigo dele. Marco Mancini. O nome que faz homens perigosos empalidecerem. — Isso é impossível — consigo dizer, orgulhosa de que minha voz não treme. — Meu pai jamais... — Seu pai — interrompe Marco, com a voz baixa, firme como aço, mas com uma gentileza ensaiada que me faz desconfiar — sabia exatamente o que aconteceria se ele morresse. Os abutres já estão rondando, Rebecca. Sem proteção, você será forçada a se casar com alguém muito pior do que eu. Uma risada amarga escapa da minha garganta antes que eu consiga contê-la. Imagens do passado piscam na minha mente como fragmentos de um pesadelo: Marco nos jantares de domingo, sempre à margem, mas sempre no controle. A maneira como os outros homens se calavam quando ele entrava na sala. Os sussurros abafados sobre o que ele fez com a última família que ousou traí-lo. — Pior que você? — As palavras saem como lâminas. — Você é o melhor amigo do meu pai. Você é dezesseis anos mais velho que eu. Você é... — Minha voz falha. Mas nós dois sabemos o que eu estava prestes a dizer. Você é um assassino. Meus dedos se fecham em punhos. Anseio pelo conforto de um pincel, da tela em branco onde eu sempre consegui fugir da violência e da sujeira do nosso mundo. A arte era meu único refúgio — e agora até isso parece estar escapando pelos meus dedos manchados de tinta. Marco se levanta com calma, mas seu tamanho e presença me obrigam a conter o impulso de dar um passo para trás. Ele contorna a mesa como um predador acostumado a cercar sua presa, e para perto o suficiente para que eu sinta o perfume amadeirado de sua colônia misturado ao leve aroma de uísque caro. Meu coração bate rápido demais. Odeio meu corpo por reagir. Sempre estive consciente dele, mesmo quando não queria estar. Mesmo pintando, às vezes me via pensando nele — nos gestos, na intensidade do olhar, no... Pare. Isso é loucura. Isso é errado. — Eu também sou o único que pode mantê-la viva — diz ele, a voz quase um sussurro. — Nicolai Greco já fez uma proposta pela sua mão. Você sabe o que ele faz com as esposas, Rebecca? O chão parece sumir sob meus pés. Toda criança neste mundo sabe da história da última esposa de Nicolai, que acidentalmente caiu da sacada. E da anterior, que tragicamente teve uma overdose. O que elas têm em comum? Todas bonitas. Todas jovens. Todas mortas. — Isso é loucura — sussurro, mais para mim mesma do que para ele. — Eu deveria estar me preparando para a exposição da minha tese. Eu deveria me formar na primavera. Eu deveria... — Você deveria estar viva — diz Marco, e sua voz agora tem vestígios de dor. — Todo o resto é secundário. Uma batida seca na porta me faz pular. Dário entra sem esperar permissão, o sorriso oportunista deixando meu estômago ainda mais embrulhado. Meu tio. O homem que sempre me olhou como um objeto fora de lugar. Agora vejo com clareza: com meu pai morto e eu... casada, ele enxerga a oportunidade perfeita. — Ah, ótimo. Você deve estar contando a ela sobre os preparativos. — Saia, Dário — rosna Marco, e algo em seu tom faz até aquele verme hesitar por um segundo antes de sorrir de canto e recuar. — Claro. Mas lembrem-se, precisamos de uma resposta essa noite. A família Greco não vai esperar para sempre. Assim que a porta se fecha, meu mundo desaba de novo. Abraço meus próprios braços, tentando manter os cacos unidos. Sempre soube que não havia espaço para mim neste mundo — a filha artista, a que não queria o império, apenas paz, cor, silêncio. Marco me observa. Ele sempre observou. Desde que eu era menina. E agora, o que vejo em seus olhos me assusta mais do que qualquer ameaça externa: Culpa. Desejo. Um tipo de ternura distorcida que me faz querer fugir e me lançar em seus braços ao mesmo tempo. — Quando? — consigo perguntar, odiando o tremor na minha voz. — Três dias — ele responde. — Depois do funeral. Precisa ser rápido, Rebecca. Para garantir sua segurança... e manter o controle do território. — Território? — Minha voz sobe. — É só disso que se trata? Terra, armas e poder? Por um momento, vejo algo quebrar no olhar dele. Dor, talvez. Arrependimento. Ou apenas a lembrança de uma promessa feita a um amigo morto. — Trata-se de manter você viva — ele diz. — E de cumprir o último pedido do seu pai. — Me forçando a casar com você?! — As lágrimas transbordam, quentes, dolorosas, como ácido. — Essa é sua ideia de proteção? Marco estende a mão, pairando no ar como se fosse tocar meu rosto. Mas eu me afasto. Não posso permitir esse tipo de toque. Não depois de sonhar com isso por tanto tempo. Não quando o que me espera é um casamento imposto, uma vida que nunca pedi. E, ainda assim, uma parte terrível de mim — uma parte que me enoja — quer saber como seria ceder. Ele deixa a mão cair, e por um instante vejo algo que se assemelha a arrependimento em seu rosto. — A escolha é sua, Rebecca — diz ele, baixo. — Mas entenda uma coisa: se recusar, não poderei impedir o que vem a seguir. Nicolai Greco a reivindicará, e o império do seu pai cairá nas mãos do homem que ordenou sua morte. A acusação paira no ar entre nós como uma sentença. Minhas pernas perdem a força, e afundo na cadeira de couro atrás de mim. — A família Greco... eles mataram meu pai? O silêncio de Marco é resposta suficiente. Fecho os olhos, tentando agarrar as lembranças do meu pai — sua risada, seu olhar orgulhoso quando visitou meu estúdio no mês passado, a promessa de estar na minha formatura. Tudo isso se foi, apagado por um mundo do qual sempre tentei fugir. E agora estou aqui, diante de uma “escolha” que nunca foi realmente minha. Casar com Marco Mancini — o homem que me assusta e me fascina, a sombra constante na minha infância, o amigo mais íntimo do meu pai. O homem que, mesmo sem querer, invadiu meus pensamentos mais secretos. Ou aceitar Nicolai Greco... e acabar em outro "acidente trágico". Minha mente de artista me trai, pintando contrastes em tons sombrios. O controle contido de Marco contra a brutalidade impiedosa de Nicolai. O olhar de Marco — cheio de algo que sempre foi mais do que simples interesse — contra os olhos famintos e vazios de Nicolai, que tratam mulheres como coisas quebráveis. Marco, sempre presente, sempre à espreita... Nicolai, e as histórias que sussurram sobre o destino de suas esposas. Abro os olhos. Estão secos agora. — Quero condições — digo, com uma firmeza que não sinto, tentando me agarrar a qualquer vestígio de autonomia. Essa pode ser uma jaula, mas pelo menos que algumas das grades sejam minhas. A sobrancelha escura de Marco se ergue levemente. Há algo parecido com respeito no brilho dos seus olhos. — Nomeie-as. — Eu termino minha faculdade. Mantenho meu estúdio. Tenho minha própria conta bancária. — Inspiro fundo. — E esse casamento... será apenas no papel. Podemos morar juntos, se for necessário. Mas não vamos... — minha voz falha — não vamos dividir a cama. — Dividir a cama? — A voz dele baixa como uma ameaça, grave como trovão à distância. Ele se inclina, apoiando as mãos nos braços da minha cadeira, me cercando. — Não imponha condições que você não entende completamente, garotinha. Esse casamento será real em todos os sentidos. Qualquer coisa menos que isso levantaria suspeitas. Meu corpo reage antes da razão. Um calor traiçoeiro me sobe pelo pescoço, corando minhas bochechas. O cheiro dele me envolve — colônia cara e uísque, perigosamente masculino. Vejo os detalhes com clareza artística: a barba por fazer, os fios grisalhos nos cabelos escuros, a cicatriz sutil acima da sobrancelha direita. Tudo nele exala poder bruto e contenção feroz. Dividir a cama com ele. As palavras giram dentro de mim, provocando imagens que não quero ter. Sinto-me doente com a forma como meu corpo responde — não com medo, exatamente, mas com algo mais confuso, mais inquietante. Ele é o melhor amigo do meu pai. Um homem perigoso. Um assassino. A personificação do mundo do qual passei a vida tentando escapar. E agora serei sua esposa. O golpe é físico. Tudo pelo que lutei — minha liberdade, minha arte, minha independência — desmorona. Em vez de desenhos e telas manchadas de tinta, minha vida será feita de eventos sociais mafiosos, vestidos de gala e sorrisos falsos. Será que vou ter que abandonar minha arte? Ver meu estúdio se tornar apenas mais um cômodo inútil em sua mansão, minhas tintas secando no esquecimento? E filhos... oh, Deus, ele vai querer filhos. Pequenas vidas lançadas nesse mundo c***l e cheio de segredos. A ideia me dá ânsia. — Temos um acordo? — ele pergunta, suave, seu hálito quente roçando meu rosto. Penso no meu pai. Penso em Nicolai. Na minha mãe, que se transformou em uma estátua vestida de grife e entorpecida por calmantes. Penso em Dário , aguardando para usar meu casamento como trampolim para o poder. Penso em Marco — minha sombra, meu Carrasco, meu salvador. Ficarei presa numa gaiola dourada. Não terei mais noites em claro no estúdio, nem liberdade para caminhar pela cidade sem escolta. Cada passo será vigiado. Cada gesto, monitorado. E à noite... à noite terei que deitar ao lado dele. Um calafrio me percorre. Não sei se é nojo, medo ou... desejo. E esse último pensamento é o que mais me assusta. Por fim, ergo o olhar e o encaro diretamente. — Sim — sussurro. E com essa única palavra, selo meu destino.
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